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Em artigo para o Outras Palavras, o Dicionário de Favelas Marielle Franco analisa a estatização da morte no Grande Rio. Com premiação de policiais violentos, massacres tornaram-se cotidianos – e converteram-se em arma contra qualquer tentativa de controle democrático da segurança pública.

O texto, escrito pelos pesquisadores Daniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Renato Dirk, faz parte da divulgação do material produzido, em forma de verbetes na plataforma wikiFAVELAS, que apresenta uma série histórica das chacinas policiais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com especial destaque para as realizadas entre 2019-2022 e sua alta letalidade.

A iniciativa é resultado de uma parceria entre o Dicionário de Favelas, o GENI/UFF, o CASA (IESP-UERJ) e o Radar Saúde nas Favelas (FIOCRUZ). O Observatório das Metrópoles é parceiro e integra o Conselho Editorial do Wikifavelas, colaborando também na produção de diversos verbetes da plataforma. Saiba mais em: wikifavelas.com.br

WikiFavelas: A chacina sem capuz

Daniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Renato Dirk

Um dia antes de ser assassinada a tiros na região central do Rio de Janeiro, em 2018, Marielle Franco, cria da Maré, defensora dos direitos humanos e vereadora pelo PSOL na cidade do Rio de Janeiro, entoou em suas redes sociais a pergunta que ecoa em nossos ouvidos até os dias atuais: “Quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe?”. De lá até aqui, a política de segurança pública do estado do Rio experimentou intervenções federais, operações policiais e programas de militarização que sitiaram as cidades e foram capazes de promover um fenômeno ainda mais perigoso na Região Metropolitana: a expansão das milícias. Segundo o relatório “Mapa Histórico dos Grupos Armados” (2022), produzido pelo GENI/UFF em parceria com o Fogo Cruzado, as áreas dominadas pelas milícias cresceram 387% em 16 anos, e milicianos já dominam mais da metade das áreas controladas por grupos armados na região. Os ilegalismos e a perpetuação da “guerra às drogas” têm produzido graves consequências para a vida dos moradores e moradoras do Rio de Janeiro.

Em tempos decisivos para a democracia, como o período das eleições, precisamos compreender a centralidade que o direito à vida deve ter para o Estado brasileiro e fortalecer construções que sejam capazes de estancar a epidemia de mortes causadas pelas forças de segurança. A defesa do direito à vida não deveria ser uma bandeira de esquerda ou de direita, mas uma pauta urgente, única capaz de sustentar qualquer projeto de democracia. Enquanto os ilegalismos pautarem as estratégias de segurança, a democracia estará em risco. Todes nós somos vítimas desta “guerra” operada pelo Estado.

Foi também entre janeiro de 2019 e maio de 2022 que o Rio de Janeiro presenciou mais de 178 chacinas policiais durante os governos de Wilson Witzel (PSC) e Cláudio Castro (PL). A partir de um levantamento realizado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) publicado no Dicionário de Favelas Marielle Franco, apenas entre os anos 2019-2022 foram contabilizadas mais de 752 mortes de civis decorrentes de operações policiais que tiveram como resultado, ao menos, 3 mortes por operação. E quem atira, também é vitimado. Apenas em 2021, 25 policiais foram mortos em serviço no estado do Rio de Janeiro, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Em pouco mais de um ano que Cláudio Castro está à frente do governo do estado, foram realizadas três das cinco maiores chacinas da história do estado – e esses números vêm sendo utilizados como plataforma política para sua reeleição. Foram 28 mortes no Jacarezinho em maio de 2021, 24 mortos no Complexo da Penha em maio de 2022 e 17 mortos no Alemão em julho de 2022. Esse alto número de chacinas, por si só, já deveria acender um “alerta” de que algo não anda bem no campo das políticas de segurança pública. Quantas mais mortes serão banalizadas como políticas de estado?

Operação em favela no Rio de Janeiro. Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil).

Além dos momentos de terror protagonizados, em especial, pelas Polícias Militar e Civil, operações policiais nas favelas e periferias do Rio de Janeiro significam a interrupção da rotina dos seus moradores e moradoras, a limitação do direito de ir e vir, as invasões de moradias e violações de direitos, o “esculacho” nas ruas e becos e mais incontáveis perdas. A cada dia, os episódios e a espetacularização da violência parecem maiores, como superproduções de cinema. E os impactos são sentidos em toda parte – inclusive, é claro, na própria organização das políticas na cidade. Em 2019, com o fim da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG), as polícias ganharam mais autonomia para a realização de suas operações – a despeito da decisão perpetrada pelo Ministro Edson Fachin durante a pandemia, em 2020. No último mês, em meio à campanha eleitoral, o candidato a deputado federal e ex-secretário da Polícia Civil de Cláudio Castro (PL), Allan Turnowski, é preso por suspeita de envolvimento com o crimeWilson Witzel (PSC) e Cláudio Castro (PL) também são citados em outros casos de corrupção, aprofundando a grave crise do estado.

Preocupados com o avançar da violência policial e com o agravamento de sua letalidade, quatro organizações lançam ao público um painel com dados sobre Chacinas em Favelas do Rio de Janeiro. Os grupos são o Dicionário de Favelas Marielle Franco (ICICT/Fiocruz), o Grupo CASA (IESP-UERJ), o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e o Radar Saúde em Favelas (Fiocruz). Trata-se de um trabalho em andamento. Mas, no material organizado até o momento, há informações em diferentes formatos sobre chacinas realizadas em favelas e periferias do Rio de Janeiro, com linhas do tempo, levantamento de dados de frequência e número de mortos, artigos e pesquisas acadêmicas, materiais audiovisuais e outros. Além disso, entende-se que além da discussão sobre as chacinas em si, de forma isolada, é importante ampliar os olhares sobre as políticas urbanas, as políticas de segurança pública e o surgimento de alguns movimentos sociais em cada período, como forma de compreender o panorama das políticas no Rio de Janeiro dos últimos anos. Assim, mais de 100 verbetes nos ajudam a seguir os rastros de um estado que é altamente letal e violento – sobretudo em favelas e contra pessoas pobres e negras.

Como o esquecimento é uma das estratégias de normalização da violência, o objetivo desse trabalho conjunto é fortalecer a memória e organizar informações dispersas sobre esse enorme volume de mortes praticadas por agentes estatais no Rio de Janeiro. A ideia de sistematizar os acontecimentos é de preservar a memória de momentos de severa violação dos direitos da população negra e moradora de favelas e periferias, como forma de reivindicar uma mudança nas políticas de segurança pública e denunciar sua intrínseca relação com diferentes ilegalismos. Além disso, há a expectativa que instituições de outros estados venham a participar com a mesma metodologia para construção de um mapa nacional futuramente.

Etimologicamente, a palavra chacina significa o ato de esquartejar e salgar porcos. No Rio de Janeiro, historicamente, o termo assume um sentido político entre moradores de favela, utilizado para classificar massacres, sobretudo de civis, que ultrapassam os já altos parâmetros de violência que caracterizam esses locais. Em geral, esses massacres são diretamente associados a grupos de extermínio, cuja atuação conta com a participação de agentes de segurança da ativa. Finalmente, uma terceira forma de definir as chacinas parte de uma perspectiva estatística e considera toda ação policial com três ou mais mortos civis enquanto tal. A presença das chacinas no cotidiano da vida da população brasileira é um indicativo assustador da violência de estado contra segmentos sociais específicos.

Não podemos esquecer nenhuma das 178 chacinas realizadas pelos governos dos últimos quatro anos no Rio de Janeiro e tantas outras que ocorreram em outras partes do país, uma vez que elas são um analisador de um tempo e espaço em que as vidas de algumas pessoas são um bem sem-valor, usadas como combustível para políticos que se servem do populismo penal e agitam suas bases com as bandeiras da morte, do encarceramento e do aniquilamento das possibilidades de viver com dignidade. E não podemos ignorar: aquele corpo que morre, que é encarcerado ou que tem suas possibilidades de vida aniquiladas é construído a partir de uma estrutura social cujas forças determinantes mais intensas são o racismo e o colonialismo – são os jovens, negros e pobres em sua maioria, reféns de uma realidade que os têm como alvo.

Para conhecer uma dimensão do painel da necropolítica fluminense que tem nas chacinas um importante mecanismo de produção de mortes, acesse o Dicionário de Favelas Marielle Franco e conheça o verbete Chacinas em Favelas do Rio de Janeiro. Leia agora o verbete “A chacina sem capuz e a estatização das mortes“, de Daniel Hirata, Carolina Grillo, Diogo Lyra e Renato Dirk, publicado originalmente na revista Piauí, e disponível no Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução e seleção: Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco | Pesquisa e organização: Grupo CASA (IESP-UERJ); GENI/UFF, Radar Saúde Favelas (Fiocruz) e Dicionário de Favelas Marielle Franco).

Leia o texto completo em: outraspalavras.net/crise-brasileira/wikifavelas-a-chacina-sem-capuz