As violações do direito humano à moradia cometidas pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro através da prática das remoções não são casos isolados, mas se constituem numa política de reorganização do lugar dos pobres na capital fluminense, conforme os interesses imobiliários e as oportunidades de negócios geradas com os megaventos esportivos. O Observatório das Metrópoles, em parceria com o Comitê Popular da Copa do Rio, passa a divulgar os resultados do dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio” a partir dos seus eixos temáticos com o objetivo de promover o debate sobre o direito à cidade.
Dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio”
Tema: Moradia
O que fica claro no caso do Rio de Janeiro é que o projeto de atração de investimentos tão propagandeado pelo poder público municipal e estadual com a realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 tem como um componente importante a expulsão dos pobres das áreas valorizadas ou que serão contempladas com investimentos públicos. Outra faceta dessa política é a criação das Unidades de Política Pacificadora (UPPs) tendo em vista que não é possível deslocar todos os pobres das áreas “nobres” da cidade.
Em áreas de expansão do capital imobiliário, a máquina destruidora de casas populares, operada pela Prefeitura Municipal, atua de forma mais intensa. Ou seja, a maioria das remoções está localizada em áreas de extrema valorização imobiliária, como Barra da Tijuca, Recreio, Jacarepaguá e Vargem Grande. Os investimentos públicos realizados em transporte (BRTs) privilegiaram essas mesmas áreas, multiplicando as oportunidades de investimento e retorno financeiro na produção habitacional para classe média e alta e na produção de imóveis comerciais.
A produção de moradia popular através do Programa Minha Casa Minha Vida nas áreas periféricas, completa o quadro da política de reorganização do lugar dos pobres na cidade. A grande maioria dos conjuntos habitacionais produzidos pelo Programa Minha Casa Minha Vida (destinado às famílias com rendimentos de até três salários mínimos) não está localizada nas áreas beneficiadas com investimentos para a Copa e as Olimpíadas, mas nas áreas periféricas da cidade. Essas áreas apresentam baixa cobertura dos serviços públicos e da infraestrutura urbana. Cabe destacar que em alguns casos, a ausência ou precarização dos serviços públicos será provocada pelo recebimento de um contingente enorme de pessoas sem a correspondente ampliação dos serviços. O caso da educação é exemplar, tendo em vista que o município tinha universalizado o acesso à educação e agora se observa a ausência de vagas ou queda da qualidade de ensino provocada pela ampliação do número de alunos por sala de aula.
Não por coincidência, é grande o contingente de famílias de baixa renda que estão sendo removidas das áreas beneficiadas com investimentos e transferidas para as mesmas áreas periféricas selecionadas pelo Programa Minha Casa Minha Vida. Além das comunidades removidas, identifica-se no mapa as comunidades ameaçadas de remoção. Entretanto, como o processo das remoções orquestrado pela Prefeitura Municipal não é transparente e grande parte das obras não foi iniciada, o número de comunidades ameaçadas pode ser muito superior ao apresentado no Mapa.
Também cabe denunciar a política de transferência de terras públicas da União, do Estado e do município para o setor privado através das operações urbanas consorciadas e das parcerias público-privadas (PPP). A chamada revitalização da área portuária Projeto Porto Maravilha está recheada de exemplos de desvio da prioridade estabelecida em lei do uso prioritário de terrenos de propriedade do Poder Público para habitação de interesse social (Art. 4 da lei 11.124 de 16 de junho de 2005 que cria o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social).
Enfim, o que estamos assistindo no Rio de Janeiro é a transferência de patrimônio público e de ativos (posse) das famílias de baixa renda para projetos de interesse de alguns setores econômicos privados. As remoções de famílias se caracterizam por promover processos de espoliação urbana nos quais os imóveis em posse das classes populares são adquiridos por outros agentes sociais econômicos a preços aviltados, e através de processos de revitalização ou reurbanização, transformados em novos ativos nos circuitos de valorização econômica, permitindo altos ganhos de capital, na forma de mais valia fundiária e/ou das novas atividades econômicas as quais vão dar lugar.
A seguir são apresentados exemplos de comunidades removidas ou ameaçadas pelo processo de preparação do município para a realização dos Jogos, bem como os tipos de violações do direito humano à cidade e à moradia.
– Comunidades removidas ou ameaçadas de remoção em função da Copa e das Olimpíadas
Tendo em vista o objetivo deste dossiê, trataremos apenas dos casos de remoção direta ou indiretamente relacionados aos Jogos.
A sistematização dos casos aqui relatados tem como base o documento da Relatoria pelo Direito Humano à Cidade (Projeto Relatores da Plataforma dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais) em visita ao município do Rio de Janeiro (em função das denúncias realizadas pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas e das notícias veiculadas pela imprensa) e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
– Comunidades removidas em função da construção do corredor dos BRTs Transcarioca e Transoeste
Para a primeira etapa do BRT Transcarioca que fará a ligação Barra da Tijuca Penha, destaca-se a remoção da comunidade de Campinho e as ameaças de remoção à comunidade Arroio Pavuna, além das diversas desapropriações de imóveis formais. No site do governo federal , a Prefeitura prevê despesas com desapropriações para essa obra no valor de 300 milhões. Várias notícias veiculadas pela imprensa apontam que mais de 3.000 famílias serão afetadas na primeira fase da Transcarioca.
Para a construção do BRT Transoeste, que fará a ligação da Barra da Tijuca com Santa Cruz e Campo Grande, destacam-se as remoções das comunidades da Restinga, Vila Harmonia e Recreio II. O que chama a atenção é a proximidade dessas comunidades com condomínios habitacionais de classe média/alta.
Cabe ressaltar que devido à falta de transparência por parte da Prefeitura, não se tem acesso ao número total de famílias e de comunidades que estão em risco de remoção. Várias obras relativas à implantação dos BRTs ainda não foram iniciadas, como é o caso da segunda etapa da Transcarioca, da Transolímpica e da Transbrasil.
Comunidade do Campinho – A Comunidade do Campinho, localizada no Largo do Campinho, foi extinta em junho de 2011 devido à remoção de 65 famílias. A remoção foi promovida pela prefeitura para a construção de um mergulhão do corredor Transcarioca de BRT.
Rua Domingos Lopes (Madureira) – Na Rua Domingos Lopes, cerca de 100 casas foram desapropriadas para a implantação da primeira fase do BRT Transcarioca, que fará a ligação entre a Barra da Tijuca e a Penha.
Rua Quáxima (Madureira) – Na Rua Quáxima, 27 famílias foram removidas para a implantação da primeira fase do BRT Transcarioca.
Comunidade Vila das Torres (Madureira) – A comunidade foi totalmente removida para a construção de um Parque Municipal, afetando cerca de 300 famílias que viviam no local. Mesmo que o motivo da remoção não esteja diretamente ligado à realização dos Jogos, a remoção desta comunidade se coaduna com os demais investimentos na área, favorecendo um processo de expansão imobiliária. A comunidade, formada em 1960, possuía enorme tradição cultural e fortes vínculos com a Escola de Samba Portela.
Comunidade Arroio Pavuna (Jacarepaguá) – Localizada em Jacarepaguá, a comunidade sofreu a primeira remoção em 2006, na época dos preparativos da cidade para a realização dos Jogos Pan-americanos. Naquele período, a justificativa era a construção de equipamento esportivo, mas 68 famílias foram removidas para a implantação de um jardim de um condomínio de luxo ao lado da comunidade. Agora, as 28 famílias que restam na comunidade estão ameaçadas de remoção devido à construção de viaduto para a implantação do BRT Transcarioca.
Comunidade Restinga – Na Restinga, cerca de 80 famílias e 34 estabelecimentos comerciais foram demolidos em razão da construção do corredor da Transoeste.
Comunidade Vila Harmonia – Na Vila Harmonia viviam cerca de 120 famílias, em uma ocupação bastante consolidada, restando agora apenas poucos moradores que resistem por conta de algumas liminares impetradas pela Defensoria do Rio de Janeiro. O processo de remoção foi justificado, segundo relato dos moradores, pela ampliação da Avenida das Américas e a construção de um anel viário vinculado à construção do corredor da Transoeste. Entretanto, o projeto da Prefeitura nunca foi apresentado aos moradores.
Comunidade Vila Recreio II – Na comunidade Vila Recreio II, localizada na Avenida das Américas, residiam cerca de 235 famílias, em uma área demarcada como de interesse social. Atualmente, todas as casas já foram destruídas em razão da construção da Transoeste. Segundo relato dos moradores, a maioria residia no local há mais de 20 anos.
Vila Autódromo – A comunidade da Vila Autódromo está situada no bairro de Jacarepaguá e tem cerca de 500 famílias residindo no local. A maioria das famílias é de baixa renda e está nessa área há mais de 20 anos. A área é cobiçada pelos grupos imobiliários e da construção civil devido à grande valorização imobiliária verificada na região, seja pelo apelo de estar situada no entorno da Lagoa de Jacarepaguá e da praia do Recreio, seja pelos lançamentos imobiliários destinados às classes média e alta, e ainda pelos grandes projetos culturais e esportivos realizados e projetados para a região. A ocupação foi iniciada em meados da década de 1980, e, em 1989, outras famílias oriundas da Comunidade Cardoso Fontes foram assentadas no local.
Diferentemente de outras comunidades removidas, parte dos moradores possui documento de concessão real de uso pelo poder público expedido pelo ex-governador Leonel Brizola em 1998, dificultando as ações de remoção.
A Vila Autódromo tem um histórico de resistência popular contra as tentativas de remoção promovidas pelo poder público desde a década de 1990. Agora as ameaças de remoção ganham uma nova dimensão no contexto do projeto de preparação dos Jogos Olímpicos. A comunidade foi informada oficialmente de que a Prefeitura pretende removê-la para viabilizar a construção de instalações esportivas através de (PPP) – Parceria Público-Privada, onde a utilização privada de terra urbana abundante para a promoção de novos lançamentos imobiliários seria um dos vários benefícios para atrair a participação dos grupos privados. Ou seja, a retirada de uma comunidade de baixa renda, consolidada, tem sido colocada como prioritária pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro para viabilizar mais um projeto de mercantilização da cidade. Para os moradores estaria reservado um empreendimento do Programa Minha Casa Minha Vida próximo à comunidade. O projeto era cadastrar as famílias e removê-las ainda em outubro de 2011. Enquanto as unidades habitacionais não estivessem concluídas, as famílias receberiam aluguel social da Prefeitura. O cadastro das famílias foi iniciado. Entretanto, após denúncias de que o terreno no valor de quase 20 milhões de reais, destinado ao reassentamento, era de propriedade de doador de campanha do prefeito Eduardo Paes, a Prefeitura cancelou sua aquisição.
Quando lançado o edital para a licitação da PPP do Parque Olímpico, os moradores, em conjunto com a Defensoria Pública do Estado, conseguiram obter uma liminar de suspensão da mesma, até que a prefeitura esclarecesse que o direito à moradia das famílias da Vila Autódromo estaria garantido. Desmentindo informações que a própria prefeitura havia dado anteriormente, a procuradoria do município, em resposta, afirmou que a remoção da comunidade não seria em função do Parque Olímpico, mas das obras de mobilidade previstas para a região, da Transcarioca e Transolímpica, que cortariam a área. Estudos técnicos elaborados e divulgados pela prefeitura também não confirmam a informação, já que as vias no máximo tangenciam a área, sem implicar na necessidade de remoção. As informações contraditórias cada vez mais confirmam a hipótese de que a principal motivação para a remoção é o interesse imobiliário.
Os moradores em conjunto com o ETTERN/IPPUR/UFRJ e NEPHU/UFF, elaboraram um projeto de urbanização que demonstra a viabilidade da regularização fundiária para toda a comunidade e sua compatibilidade com a implantação dos equipamentos esportivos e obras de mobilidade urbana.
Comunidade Asa Branca (Curicica) – A Comunidade Asa Branca é composta de 2.000 famílias e está ameaçada de remoção devido à construção do BRT Transolímpica.
Comunidade Vila Azaleia (Curicica) – A Comunidade Vila Azaleia tem aproximadamente 100 famílias que estão ameaçadas de remoção devido à construção do BRT Transolímpica.
Taboinha (Vargem Grande) – 400 famílias da Comunidade Taboinha estão ameaçadas de remoção. Entretanto, a justificativa não são os megaeventos, mas a reintegração de área, que por sua vez, tinha sido ocupada desde 1990. Essa comunidade foi incluída na listagem pelo fato de estar localizada em Vargem Grande, área de expansão imobiliária, que tem apresentado extrema valorização.
Para acessar o texto integral sobre o eixo temático “Moradia”, do dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio”, acesse aqui.