A entrevista da Revista e-metropolis nº 16 é com o professor Carlos De Mattos, do Instituto de Estudios Urbanos e Regionales da Universidad Católica de Chile, e uma referência latino-americana na área dos estudos urbanos. De Mattos fala sobre a sua trajetória desde sua chegada em Montevidéu para estudar Arquitetura até sua ida ao Chile, onde vive há mais de quarenta anos. Na entrevista ele faz importantes considerações sobre a história da urbanização do Chile e sobre as tendências atuais de transformação das cidades latino-americanas.
A Revista eletrônica e-metropolis é uma publicação trimestral que tem como objetivo principal suscitar o debate e incentivar a divulgação de trabalhos, ensaios, resenhas, resultados parciais de pesquisas e propostas teórico-metodológicas relacionados à dinâmica da vida urbana contemporânea e áreas afins.
É direcionada a alunos de pós-graduação de forma a priorizar trabalhos que garantam o caráter multidisciplinar e que proporcionem um meio democrático e ágil de acesso ao conhecimento, estimulando a discussão sobre os múltiplos aspectos na vida nas grandes cidades.
Um olhar para a cidade a partir do social
ENTREVISTA: Carlos De Mattos
O Senhor pode falar um pouco sobre sua trajetória acadêmica e como aparece o interesse sobre o tema urbano?
CM – Bom, eu sou uruguaio. Do interior do Uruguai. Minha família paterna era originaria da zona sul do Rio Grande do Sul. Dessas famílias muito grandes. Meu pai era o mais jovem de 12 ou 14 filhos, não me recordo muito bem. Meus avós paternos tinham terras no Rio Grande Sul, fundamentalmente na zona de Bagé e Pelotas. E tinham terras também no Uruguai. Meu pai foi o último filho, portanto, no momento em que meu avós morreram meu pai passou a viver no Uruguai. Ele nasceu no Uruguai, ademais.
Assim, eu, quando criança, falava nada mais do que um “portunhol”. Tanto era assim que, quando aos nove anos, passei a viver na cidade capital do departamento do interior do Uruguai, tiveram que me alfabetizar por falava uma mescla. Mas logo fui a Montevidéu, quanto tinha 14 anos. E lá, para alguém que vinha do interior, não era fácil entrar na sociedade. Montevidéu, de fato, é a única grande cidade do Uruguai, onde mora 50% da população do país. Aproveito pra fazer uma digressão: Faz pouco tempo, me elegeram para o Prêmio Geocrítica e Horácio Capel, que é quem coordena a Geocrítica1, me disse que teria que fazer uma reflexão sobre um pouco o que você me pergunta: Por que cheguei a isto? A princípio não me encaixou bem a ideia. Mas, no final, me entreteve bastante fazendo-a e tive que refletir sobre tudo isso. E tive que começar a pensar em como havia conseguido inserir-me no meio montevideano. E,como dizia, não é fácil, vindo do interior, relativamente muito jovem, imbricar-se, articular-se na sociedade de Montevidéu.
Eu me articulei através de um grupo que fundamentalmente era um grupo que se organizada em torno dos cafés. Montevidéu estava muito organizado nessa época em torno do que nós chamávamos de “las barras de los cafés”, grupos de pessoas que se juntavam, portanto, em determinados cafés. Eu entrei em um grupo de intelectuais que estavam vinculados mais ao mundo das artes: à pintura, à literatura, ao teatro. E a isso eu cheguei pela discussão com os amigos, quando estabelecemos uma relação bastante intensa, quando eu tinha entre 15 e 20 anos, suponho. E comecei a me interessar cada vez mais pelas atividades artísticas. Isso me levou a estudar arquitetura. Mas com um interesse mais artístico. A mim entusiasmava muito as obras de Frank Lloyd Wright nessa época.
Quando cheguei na faculdade de arquitetura com essa missão, a faculdade de arquitetura no Uruguai era uma faculdade muito neoclássica. Assim os projetos não me agradavam muito. Recordo-me de um que se chamava “templo do pensamento na ilha do silêncio”, coisas assim. E, nesse momento, se iniciou alí um movimento renovador, muito influenciada por experiências de mudanças nos programas de estudo, motivados pela preocupação com questões sociais, que haviam se desenvolvido anteriormente especialmente em Porto Alegre, e também no Chile; dessa maneira, , ganhou força uma espécie de revolução estudantil encabeçada pela associação de estudantes da faculdade de arquitetura para desconectar o ensino dessa questão abstrata – mais neoclássica – para encaminhá-la para um enfoque mais relacionado aos problemas sociais do Uruguai naquele momento. Onde aparecia um tema, fundamentalmente não tratado na faculdade de arquitetura: o tema da moradia dos setores rurais. Nessa época também começam a aparecer as primeiras favelas uruguaias, lá chamadas de rancheríos. E então eu entrei na faculdade e comecei a militar no movimento estudantil e me entusiasmei muito com essa missão, que não era a missão artística, senão a missão social da arquitetura. E isso mudou minha vida. Porque, a partir desse momento, minha preocupação foi fundamentalmente, não tanto pelo lado da arquitetura individual da casa, senão da cidade.
E já nesse momento comecei a me interessar muito pelas questões sociais e políticas. Eu fui presidente de Centro de Estudantes, depois secretário geral da Federação Nacional dos Estudantes e estive cada vez mais na militância estudantil. E sempre com uma preocupação social e, assim, cheguei ao tema da cidade, que abandonei por um tempo. Mas logo, por essas preocupações com os temas sociais, vim a estudar no Chile. Fiz o curso do ILPES/CEPAL e fui bem. Assim, me convidaram a vir como professor aqui. Mas eu não queria sair do Uruguai. Eu era uruguaio. Eu me sentia uruguaio. Mas as coisas ficaram feias no Uruguai, com a ditadura. Então eu vim para o Chile, viria por dois anos, mas fiquei aqui até os dias de hoje. Fazem mais de quarenta anos. Comecei trabalhando nas Nações Unidas, no ILPES, onde trabalhei por vinte anos. E lá estive vinculado aos temas regionais. Na verdade comecei a trabalhar com o tema da cidade, depois passei a trabalhar com os temas regionais. Ali trabalhei muito tempo. E quando me aposentei das Nações Unidas, o pessoal daqui, da Universidad Católica, me convidou para vir trabalhar aqui e então voltei aos temas urbanos. E aqui estou até os dias de hoje!
JR – No Chile o senhor experimentou importantes transformações pelas quais o País passou. O País, inclusive, é colocado como uma primeira experiência neoliberal do mundo. O senhor há pouco usou a expressão “tubo de ensaio” desse modelo. Pode ser considerado, inclusive, a partir da perspectiva de seus protagonistas, uma experiência exitosa de seu modo mais ortodoxo. O que o senhor pode comentar a respeito dos impactos sobre a realidade do País?
CM – Eu cheguei ao Chile quando estava em curso o modelo desenvolvimentista, industrialista. Eu diria que se tivesse que buscar algo parecido na América Latina (salvada as enormes diferenças entre os países que vou mencionar), o mais parecido que se encontraria era a experiência de Kubitschek no Brasil. Isso se tentou fazer aqui a partir da Crise Mundial de 1929, com os governos de frente popular. Especificamente, com Aguirre Cerda2 de presidente. E se tentou, nesse momento, estabelecer um modelo industrialista no Chile. Que tinha muito mais dificuldades que no Brasil, pelo tamanho do país, pela constelação de recursos, etc. Assim, a partir dos anos 30 se ensaia no Chile um modelo industrial desenvolvimentista. E eu creio que este modelo culmina com o governo de Frei Montalva3, entre 1964 e 1970. Mas esse modelo já vinha com uma caída da rentabilidade empresarial muito forte, com a caída da produtividade também. E os próprios limites do País e suas próprias dimensões impediam uma industrialização de outro tipo. Era uma industrialização muito artificial, muito protegida pelo Estado. Por exemplo, se havia decidido ter uma indústria de automóveis, mas, com um País, que nesse momento tinha mais ou menos 12 milhões de habitantes, não dava. Então era uma indústria muito artificial e muito pouco competitiva, e, para protegê-la, o país tinha um protecionismo muito grande. Aqui, quando cheguei, era muito difícil conseguir produtos importados.
Por exemplo, estava proibido a importação dos cassetes musicais. Era considerado um produto suntuário. Se quisesse a esse tipo de produto, tinha que comprar em Buenos Aires. Então, essa indústria muito protegida entra em crise ao final do Governo Frei. A partir daí, se vai à alternativa da transição socialista (democrática socialista) com o Governo Allende4, que ganha as eleições por um terço, mas sem a maioria em nenhum lado do país. E esse governo entra – eu creio – buscando uma solução socialista ao modelo de industrialização. Os operários começam a tomar as empresas e a pedir que passassem à proteção do Estado. E, por outro lado, a burguesia se organizava para tratar de impedir que esse processo seguisse adiante. E se viu uma situação muito conflitiva e Allende foi perdendo o controle da situação econômica. Então fica cada vez mais difícil, começam os problemas de desabastecimento e um enfrentamento muito potente com os organismos da burguesia industrial chilena que se opõem ao modelo do Frei.
Assim se chegou ao golpe de Estado. Minha impressão é que era praticamente impossível evitá-lo. E, quando chega o governo militar, minha impressão é que a única certeza que realmente tinha a Junta Militar é que o que deviam fazer era aplicar políticas que fossem o mais diferente possível do modelo de Frei e do modelo de Allende. Porque suas forças, as forças que o sustentavam, eram as forças que vinham se opondo a Frei e que se opunham, a Allende, obviamente, e, claro haviam ganhado a batalha. E o governo militar durante dois anos não teve muito clara a política econômica. Mas, quando estava Allende no governo, um grupo de economistas desta Universidade5 havia ido estudar nos Estados Unidos por um convênio que tinha a Universidade Católica com a Universidade de Chicago, daí a denominação Chicago Boys6. Eles elaboraram um programa alternativo de governo, que se conhece aqui como el ladrillo, por que estava editado, mimeografado, em folhas amarelas que, antes de tudo, são muito grandes, e as pessoas diziam: és un ladrillo. E esse programa chega ao governo militar, chega ao general Pinochet. E Pinochet admite não ter um programa econômico – tinha um projeto político, não um programa econômico –, decide adotá-lo. E nomeia uma equipe econômica para implementar esse modelo, que é o modelo dos Chicago Boys.
Acesse no link a seguir a entrevista completa com o professor Carlos De Mattos, destaque da Revista e-metropolis nº 16.