Como analisar as metrópoles brasileiras no período 1980/2010? Podemos falar de transição de modelo de desenvolvimento do capitalismo nacional? Estamos em uma nova rodada de “desenvolvimentismo” ou em uma longa transição de transformações liberais? O INCT Observatório das Metrópoles divulga o texto “Transformações na Ordem Urbana na Metrópole Liberal-Periférica: hipóteses e estratégica teórico-metodológica”, documento base do projeto que visa oferecer a análise mais completa sobre a evolução urbana brasileira nos últimos 30 anos. O foco do texto é avançar na formulação conceitual da metrópole brasileira constituída pelas condições econômicas, políticas, sociais e geográficas concretas que presidiram o desenvolvimento do capitalismo periférico e associado.
O Observatório das Metrópoles realizou, no período de 28 a 30 de março no Rio de Janeiro, o Seminário Interno “Transformações na Ordem Urbana nas Metrópoles brasileiras”. O evento reuniu pesquisadores da rede nacional a fim de debater a última etapa do projeto que resultará em estudo comparativo sobre as 15 principais regiões metropolitanas do país, relacionando as mudanças econômicas, sociais e políticas às dinâmicas urbanas nacionais, regionais e locais.
O projeto de análise comparativa das metrópoles brasileiras (1980-2010) representa a última etapa do Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) para o Observatório das Metrópoles. “O nosso instituto vem acumulando expertise sobre a temática metropolitana há mais de 15 anos, a partir da consolidação de um trabalho em rede multidisciplinar, de produção de conhecimento científico, de metodologias e ferramentas para a pesquisa da questão metropolitana. Há quatro anos passamos a fazer parte do Programa INCT, integrando o conjunto de 123 centros de excelência em pesquisa do país. Agora estamos diante do nosso maior desafio: incorporar os dados do Censo 2010 relacionados às transformações ocorridas nas principais metrópoles na última década, e oferecer à sociedade brasileira a análise mais completa sobre a evolução urbana nos últimas 30 anos”, explica o coordenador nacional do instituto, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro.
APRESENTAÇÃO
Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles
O objetivo deste documento é apresentar e fundamentar teórica e metodologicamente a proposta de roteiro dos 15 livros que pretendemos publicar com as análises comparativas sobre as mudanças das metrópoles brasileiras, no período 1980-2010. A busca do enfoque comparativo tem sido uma das características do Observatório das Metrópoles enquanto rede de pesquisas. Algumas tentativas que realizamos têm se limitado a descrições empíricas de temas parciais do nosso programa de pesquisa. Na linha I, por exemplo, avançamos consideravelmente na construção da análise comparativa sobre a diversidade do processo de metropolização dos aglomerados urbanos, da qual resulta a identificação do que chamamos de hierarquia metropolitana.
Ao mesmo tempo, também comparamos aspectos relevantes dos diferentes graus de organização interna – na escala intermunicipal – dos diversos aglomerados identificados como regiões metropolitanas e aglomerados urbanos. Porém, não chegamos a realizar um esforço sistemático e coletivo de compreensão das possíveis diferentes dinâmicas subjacentes. Na linha II, realizamos também alguns louváveis esforços de comparação das estruturas sociais e espaciais, mas agora temos o desafio superar a descrição e avançar na interpretação da mudança. Por outro lado, desde o primeiro projeto do Observatório (1996) anunciamos a necessidade da adoção de um enfoque holístico em nosso trabalho, que nos permitisse compreender as mudanças das metrópoles como resultantes das três dinâmicas que organizam as nossas linhas de pesquisa: relação economia e território (linha I), relação entre sociedade e território (linha II) e relação entre Estado e território (linha III). No entanto, a nossa prática de pesquisa tem sido realizada de maneira fragmentada, sem que tenhamos buscado integrar os conhecimentos e informações geradas no plano das linhas e mesmo no dos projetos de pesquisa.
Superar estas lacunas na busca da realização dos nossos objetivos é uma tarefa complexa e plena de desafios, especialmente em se tratando de um projeto coletivo e realizado em rede. Creio, não obstante, ser fundamental empreendermos nosso esforço nesta direção, no momento em que nos preparamos para concluirmos o programa INCT. Enfrentar as dificuldades decorrentes da complexidade desta tarefa se justifica por vários motivos. Em primeiro lugar, os motivos acadêmicos, na medida em que devemos e podemos aproveitar o enorme potencial presente em uma rede de pesquisa, traduzido pela sua pluridisciplinaridade da rede e pelo acúmulo de reflexões e de análises, pela competência técnica para usar amplas e sistemáticas bases de dados e pelos sofisticados procedimentos técnico-metodológicos. Em segundo lugar, pelos novos horizontes que vêm surgindo para o Observatório ingressar em uma etapa de interlocução com o debate internacional sobre as mudanças urbanas.
Com efeito, em consulta rápida via web sobre o tema urban comparatives studies evidenciam-se a importância deste tema nos mais relevantes centros acadêmicos das universidades americanas e europeias. O Observatório vem, ao mesmo tempo, buscando articulações acadêmicas Sul-Sul, em especial com países da América Latina, que justificam também a necessidade de enfrentarmos os desafios mencionados. Além destas razões, elaborar uma estratégia consciente de análise comparativa, menos intuitiva e descritiva, torna-se importante neste momento de nosso programa de pesquisa, em função da necessidade de participarmos ativamente da atual conjuntura do campo intelectual-acadêmico, na qual estão em disputa várias vertentes de pensamentos propondo, cada uma, intepretações das mudanças macro-econômicas e macro-sociais do Brasil, às quais se associam, naturalmente, projetos políticos de futuro.
Trata-se de um debate não apenas alimentado por fatos que vêm ocorrendo no país, nestes últimos 20 anos (crescimento econômico, distribuição da renda, novas posições na estrutura social, inclusão social via consumo, emergência de um discurso desenvolvimentista por atores do Estado, etc.), mas também pela leitura das mudanças estruturais na dinâmica global da expansão do capitalismo, e pelos claros efeitos da diminuição da hegemonia do projeto neoliberal.
Temos, portanto, razões fundamentadas para enfrentarmos os desafios da comparação. Duas tarefas nos parecem fundamentais. A primeira, como enunciamos acima, é a construção da estratégia metodológica e a segunda a construção das hipóteses que orientarão a realização da comparação. Falamos em estratégia comparativa em razão da existência de amplo debate teórico sobre o uso do método comparativo nas ciências sociais, cujo conhecimento é necessário para adoção de orientações conscientes dos trabalhos empíricos. Pretendemos na segunda parte deste texto sugerir algumas direções que podemos adotar para a construção de uma estratégia metodológica para avaliarmos comparativamente as mudanças das metrópoles no período 1980/2010. Como sabemos, nas ciências sociais a metodologia adotada, bem como a estratégia da sua operacionalização – na forma de procedimentos – dependem diretamente do problema que buscamos explicar.
Portando, devemos enunciar de maneira fundamentada o que entendemos por mudanças das metrópoles, o que somente é possível se construir um conjunto de hipóteses teoricamente argumentadas com as quais devemos buscar interpretar os dados empíricos. Em se tratando de pesquisa comparativa, a construção destas hipóteses é ainda mais fundamental, pois, em nosso caso, trata-se de comparar a metrópole brasileira conceitualmente construída, com as metrópoles empiricamente descritas através da nossa metodologia e dos procedimentos técnicos que adotamos em nosso programa de pesquisa.
O que estamos buscando enunciar com esta formulação? Que a comparação entre casos se realiza à luz de um fenômeno conceitualmente construído, e não entre os casos empíricos. Por exemplo, os estudos comparativos realizados por Saskia Sassen sobre Nova Iorque, Paris, Londres e Tóquio se realizaram a partir de um conceito que é a cidade global, construído através de um conjunto de operações dedutivas-indutivas. Este conceito não é resultante da análise empírica, mas de seu pressuposto analítico.
Não se trata, portanto, de comparar as mudanças de São Paulo com as mudanças do Rio de Janeiro e com as ocorridas em Belo Horizonte, por exemplo. Esta operação apenas nos levaria a análises ideográficas sobre as metrópoles e suas dinâmicas de transformação, sem atingir o nível analítico necessário à comparação interpretativa.
Coloca-se, portanto, como tarefa inicial a todos nós, construirmos conceitualmente a metrópole brasileira e suas transformações no período 1980-2010.
O objetivo deste texto é contribuir nesta direção. Como já anunciado em nossas reuniões, assumimos como ponto de partida comparar as mudanças ocorridas nas metrópoles na dimensão expressa através da Linha II do nosso programa de pesquisa. Na proposta submetida ao CNPq/FAPERJ, os projetos previstos nesta linha têm como objetivo geral evidenciar que “os processos sócio-espaciais que organizam internamente as metrópoles brasileiras” (e que) “têm enorme importância na compreensão dos mecanismos societários de exclusão e integração, através de seus efeitos sobre a estruturação social, sobre os mecanismos de produção/reprodução de desigualdades e as relações de interação e sociabilidade entre os grupos e classes sociais. Para fins da pesquisa trabalhamos com a distinção e conceituação de 3 processos de organização social do território metropolitano: diferenciação, segmentação e segregação” (Projeto INCT, 2008).
Por outro lado, assumimos a hipótese segundo a qual as mudanças macroeconômicas e macrossociais em curso no Brasil no período dos anos 1980-2010 tornariam ainda mais relevante a compreensão dos efeitos da organização social do território metropolitano em consequência da desarticulação dos modos de integração econômica constituído na fase anterior do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Com efeito, tomamos como chave para a nossa análise de mudança “o conceito de modos de integração econômica” formulado por Polanyi (2000) e utilizado por Harvey (1973) em seu pioneiro estudo sobre a cidade e a justiça social e contemporaneamente por Mingione (1991).
Partimos da identificação das três esferas de relações sociais que determinam os recursos acessíveis no plano do bairro e do domicílio. Estes recursos são essenciais nos processos de integração e exclusão, na medida em que são necessários para a plena participação na sociedade. Eles se apresentam sob a forma de três distintos modos de interação: as trocas mercantis, a redistribuição institucional e a reciprocidade interpessoal, os quais, pelo menos nas sociedades modernas, se interpenetram formando combinações características no tempo e no espaço que Mingione (1991) denomina “social mixes”. É a posição dos grupos sociais em relação a estes mecanismos e as formas como estes estão presentes nos planos domiciliares e do bairro que condiciona as relações destes grupos de integração ou de exclusão com o conjunto da sociedade.
A análise da existência destes modos de integração, suas articulações, as condições que regulam a mobilidade entre eles, permitem avaliar o quanto estamos diante ou não de dinâmicas de coesão ou fragmentação sócio-territorial de uma dada metrópole. Na maioria das metrópoles contemporâneas dos países desenvolvidos, podemos admitir que o mercado seja a esfera dominante de acesso aos recursos. Entretanto, esta esfera convive com a redistribuição realizada pelos regimes de bem-estar social que se implantaram nestes países.
As metrópoles brasileiras são, basicamente, produtos da predominância das esferas do mercado e da reciprocidade, na ausência de um sistema estatal de bem-estar social bem estabelecido. Este é um fato de alta relevância, uma vez que o desenvolvimento de um capitalismo urbano-industrial altamente concentrador de renda, riqueza e poder característico do processo de acumulação no Brasil tem sido, em parte, viabilizado pela vigorosa esfera da reciprocidade que tem suas bases na formação de bairros operários e populares que se constituíram em verdadeiros hinterlands supridores de bens e serviços que atendem às necessidades (individuais e coletivas) de reprodução deixadas de fora da forma salário ” (Projeto INCT, 2008).
Esta problemática teórica fundamenta em nosso projeto a hipótese de que “os novos fenômenos de diferenciação, segmentação e segregação espaciais, relacionados ao quadro de crise das relações de integração com o mercado de trabalho e ao avanço da modernização cultural com o consequente incentivo ao ethos individualista, interferem significativamente sobre as bases institucionais da manutenção desta esfera de integração, alterando o “social mix” brasileiro e produzindo processos de exclusão, cuja manifestação mais visível é a constituição de territórios de grupos desafiliados (Castel, 1995) da sociedade e vulnerabilizados quanto às possibilidades de recriar dinâmicas individuais e coletivas de integração.
Esta situação torna-se mais complexa se considerarmos que ao menos nos 15 últimos anos surgiram tendências de universalização em alguns setores da política social, notadamente da saúde e da educação, que promovem através do Estado o acesso a certos recursos até então controlados exclusivamente pelos mais ricos e poderosos. Porém, esta promessa de democratização de oportunidades pode hoje esbarrar nas limitações de apropriação real dos grupos sociais em razão dos efeitos anômicos da desestruturação em curso no plano do domicílio e do bairro que dificultam a reprodução dos laços de reciprocidade historicamente constituídos” (Projeto INCT, 2008).
A problemática teórica formulada para a Linha II e as hipóteses de pesquisa delas decorrentes deveriam se materializar em um conjunto de estudos que percorreriam as seguintes dimensões analíticas.
(a) Análise da dinâmica e evolução da organização social das metrópoles.
(b) Análise dos mecanismos produtores do espaço metropolitano relacionados a dinâmicas demográfica e imobiliária.
(c) Análise das relações entre organização social do espaço metropolitano e as desigualdades sociais em matéria de acesso às condições urbanas de vida, às desigualdades por cor e à estrutura de oportunidades.
(d) Estudos de caso de tipos de espaços que expressam a organização social do território das metrópoles.
(e) Aprofundamento conceitual e metodológico do quadro de referência que vem sustentando o modelo de análise dos fenômenos de diferenciação, segmentação e segregação residencial aqui apresentado e a interpretação do seu impacto na vida social da metrópole” (Projeto INCT, 2008).
Tendo como referência estes pontos de partida do nosso Programa de Pesquisa no que concerne à linha II, passamos em seguida à parte do presente documento que propõem um quadro de questões que fundamentam a problemática teórica e as hipóteses do projeto. A preocupação central do texto é avançar na formulação conceitual da metrópole brasileira constituída pelas condições econômicas, políticas, sociais e geográficas concretas que presidiram o desenvolvimento do capitalismo periférico e associado. O nosso ponto central é a compreensão de que a articulação do mix de modos de integração econômica com a organização social do território, com os padrões de sociabilidade e com as formas de intervenção pública resultou na constituição de uma ordem urbana da metrópole liberal-periférica. São necessários três comentários que justificam o uso deste conceito.
Confira o argumento completo na Apresentação (pág. 7) do livro METRÓPOLES BRASILEIRAS: síntese da transformação na ordem urbana 1980 a 2010.