O trabalho que o Observatório das Metrópoles vem desenvolvendo desde 1996 com o propósito de gerar e difundir conhecimentos sobre a temática urbana e metropolitana será agora contado em tese de doutoramento da pesquisadora Neiara de Morais, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Ao definir como objeto de pesquisa os chamados “observatório de políticas públicas”, Morais encontrou na experiência do instituto brasileiro a produção inovadora em rede, presente em 15 metrópoles brasileiras, e o diálogo estreito da academia com movimentos sociais, conselhos e fóruns vinculados ao tema urbano.
O projeto “Observatório de Políticas Públicas: um estudo sobre a mobilização de conhecimentos para a democratização da elaboração e controle das políticas públicas”, da pesquisadora Neiara de Morais, faz parte do programa de doutoramento “Democracia do Século XXI” do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC), sob a orientação de Giovanni Allegretti e Silvia Maeso.
Coordenado pelo professor Boaventura de Souza Santos, o CES é referência nos estudos relacionados à democracia. O projeto de Neiara de Morais parte de um contexto de “desencanto” com a democracia representativa de um lado, e do outro com o fortalecimento dos ideais democráticos. Esse “conflito vital” tem-se manifestado de forma vigorosa, tanto através de mudanças institucionais que estão ocorrendo quanto em ruas e praças de vários lugares do mundo (como a Primavera Árabe) que recente viraram palco de manifestaões populares pela democracia.
“Cada vez mais, discute-se sobre a necessidade de aprimorar a democracia para além dos estreitos muros do sufrágio universal, com a inclusão de novos atores políticos, a criação de novos espaços de participação dos cidadãos na tomada de decisões públicas e a implementação de mecanismos que permitam um maior controle da sociedade sobre as ações estatais em todas as esferas”, afirma Neiara.
Foi pensando em instrumentos da democracia participativa que a pesquisadora chegou nos chamados “observatório de políticas públicas”, ou seja, organizações que têm em comum o propósito de gerar e difundir bases informacioais que apoiem a elaboração e o controle social das políticas públicas. São organizações mediadoras, as quais produzem conhecimento e que, em alguns casos, estão em diálogo permanente com os diversos atores sociais.
No levantamento inicial da pesquisa, Neiara de Morais constatou que a prática já é bastante disseminada em várias partes do mundo – com alguns casos em Portugal e incontáveis no Brasil. Na tipologia elaborada pela pesquisadora, os observatórios foram dividos em grandes blocos a partir dos seus objetivos: i) aumentar a visibilidade de certos problemas sociais; ii) divulgar o conhecimento produzido por experts/peritos/especialistas; iii) potenciar a ação de grupos, instituições e movimentos sociais, fortalecendo redes sociais pré-existentes e iv) constituir espaços de co-produção de saberes pelas políticas públicas.
Segundo a pesquisadora, ao conhecer o trabalho do Observatório das Metrópoles, ela ficou surpresa com a variedade de elementos do seu processo de produção de conhecimento – trabalho em rede, diálogo com os diversos atores sociais, entre outros fatores. “Logo, caracterizei o Observatório das Metrópoles como uma organização do grupo IV, já que busca um novo papel social, que supere a produção e difusão tradicionais do conhecimento acadêmico na avaliação de políticas, promovendo uma aproximação com movimentos sociais, conselhos e fóruns vinculados à sua temática. Por conta, disso escolhi o instituto como meu objeto”, explica.
Leia a entrevista com Neiara de Morais sobre o papel dos chamados “observatório de políticas públicas”, as razões para a escolha do Observatório das Metrópoles como o objeto de estudo do projeto, como será contada a história do instituto e o papel que ele vem representando para o fortalecimento da democracia no Brasil.
ENTREVISTA: Neiara de Morais, doutoranda Universidade de Coimbra
– Como surgiu o interesse de estudar os chamados “observatório de políticas públicas”?
A minha ideia partia de algumas vivências em processos participativos para pensar Quer dizer, avaliar se o conhecimento popular era subalternizado em detrimento de um conhecimento acadêmico.
No caso dos “observatórios”, eles surgiram como uma escolha de um espaço para olhar a relação entre a democracia e os seus conhecimentos, ou seja, partindo de algumas vivências em processos participativos quero pensar como o conhecimento científico e o dito conhecimento popular são tratados nos espaços de participação. Outra razão é que existe hoje um grande número de observatórios de políticas públicas. Me interessa, nesse contexto, entender o por quê desse movimento, a relevância de núcleos capazes de produzir e difundir conhecimento com esse caráter. A princípio, os observatório surgem num contexto da governanças (governance) no qual a participação se coloca; era preciso pensar a partir daí de que conhecimento e divulgação estamos falando nesses processos. No meu levantamento inicial, encontrei experiências de observatório criados no meio acadêmico, instâncias governamentais, movimentos sociais.
A ideia inicial é como estudar essas organizações, que têm em comum o propósito de manter uma base de informação e divulgar pesquisas com o objetivo de diminuir assimetrias de conhecimento e propor soluções em políticas públicas. No levantamento já realizado, encontrei em Portugal cerca de 20 observatórios, sobre os mais variados temas, como Trabalho, Saúde, Mulher, Justiça; no Brasil, o número de observatório é incontável, são muitos exemplos e tipos.
– E quais critérios você usou para definir o objeto, ou seja, que tipo de “observatório de políticas públicas” será o foco da pesquisa?
Como o que quero avaliar nos observatórios diz respeito mais à dinâmica e aos fluxos de produção de conhecimento e divulgação, e menos ao impacto nas políticas públicas, busquei organizações com essas características. Quero analisar como se dá a produção dos diferentes saberes, como são colocados em conexão e que isso emplica dentro das organizações.
E, é claro, que esse tipo de produção terá dinâmicas diferentes em observatórios com características distintas. Por exemplo, encontrei observatórios que têm como missão denunciar violações etc; outros que trabalham mais na produção do conhecimento tradicional – por exemplo, o perito no conhecimento científico que produz conhecimento e o divulga para a sociedade. Isso pode gerar algum impacto para as políticas públicas? Talvez. Já que alguma instância governamental pode ter acesso a essas informações, ou algum formador de opinião pública pode divulgar. No entanto, encontrei um terceiro tipo de observatório que atua além do espaço acadêmico e dos portais de internet. São organizações cujos pesquisadores atuam por meio de outras vias na sociedade, isto é, dialogam por meio de capacitações e formações, participação em redes locais, regionais e nacionais; no diálogo com os conselhos, fóruns sociais. Esse tipo de observatório me chama a atenção porque pode apontar para uma outra forma de produção de conhecimento, quero saber como esse saber acadêmico é impactado pelo diálogo mais amplo com uma variedade de atores.
A minha hipótese é que esse tipo de conhecimento científico é influenciado no contato com os diversos atores sociais, ou seja, esse saber ganha assim um outro valor. Porque o pesquisador que está em contato com os fóruns, que participa de formações com os movimentos sociais, isso dá a ele outra condição para a produção acadêmica. Uma produção que eu acredito diferenciada.
– A escolha do Observatório das Metrópoles está relacionado a esse tipo de dinâmica?
No trabalho de pré-campo que realizei, tive contato com muitas experiências brasileiras de “observatórios de políticas públicas” via site, leitura de artigos, visitas etc. No caso do Observatório das Metrópoles, ele me pareceu o caso perfeito para a metodologia que pretendo utilizar que é a do “caso alargado”, pois ao tentar comparar os vários tipos de observatórios, me interessa avaliar uma experiência com muitos elementos, com um gama de possibilidades de atuação.
Nesse sentido, o Observatório das Metrópoles, acredito, é um dos melhores exemplos, pelo trabalho em rede, pelo fato de na própria composição do instituto existirem atores da sociedade civil, do meio acadêmico, governamentais; além dessa diversidade que compõe o núcleo, o Observatório também tem uma atuação muito intensa na sociedade, ou seja, sua produção não está apenas no site. Esses vários elementos irão me permitir avaliar como esse encontro de saberes se dá? Vou trabalhar um conceito do professor Boaventura de Souza Santos que é o da “ecologia de saberes”, que acho tem a ver com o papel que o Observatório das Metrópoles vem representando na sociedade brasileira, ou seja, de mediador, de tradutor desses saberes.
Quero mostrar como os profissionais que fazem parte do Observatório são permeados por esses saberes; de que maneira essa produção que é diferente conseguiu pautar, influenciar a agenda política nacional ou local; ou pautar a política numa dada comunidade. Me interessa, assim, perceber a atuação do Observatório em diferentes níveis – na academia, na ação direta em alguma comunidade, em articulações que são nacionais.
– Em que consiste a chamada metodologia do “caso alargado”? O que você pretende levantar sobre o Observatório das Metrópoles na pesquisa?
Primeiro, pretendo levantar um histórico do Observatório, compreender de onde vêm as pessoas, qual era a ideia inicial, o que se pretendia no começo em termos de atuação e pesquisa, quais eram os objetivos iniciais, o que foi feito para atingir esses objetivos ao longo do tempo diante das mudanças conjunturais – políticas, econômicas e socias? Como se dá a comunicação do Observatório das Metrópoles com seus parceiros e com a sociedade? Ele tenta potencializar essa ação por meio de contatos com a mídia, como se dá isso? Também quero conversar com parceiros do Observatório – pessoas da sociedade civil, pesquisadores formados no IPPUR e nos outros núcleos que compõem a rede, pessoas dos movimentos sociais etc. Quero tentar entender como esses saberes são mobilizados, trabalhados dentro das estratégias do instituto.
Espero fazer esse levantamento da produção acadêmica, das impressões das pessoas envolvidas com esse trabalho, com os pesquisadores dos vários núcleos, já que o Observatório está presente em 15 metrópoles brasileiras, mostrando também o potencial e as características dessa produção em rede.
– Dentro do escopo da tua pesquisa há também um interesse em analisar o papel da produção acadêmica no Brasil, o modo como ela se dá? Como é isso?
Sem dúvida. Um capítulo da tese vai pensar o conhecimento. De que maneira é construído o espaço do conhecimento científico na sociedade e sua relação com os outros conhecimentos. Quais são as perspectivas de produção de um outro conhecimento acadêmico? Uma das minhas hipóteses é de que o conhecimento científico produzido com uma proximidade e preocupação com uma agenda política local e nacional, com um diálogo com aquilo que os movimentos sociais estão fazendo e pensando, acho que esse conhecimento é, por si só, diferenciado. E quero analisar se esse saber tem ajudado, e de que maneira, a democratização das políticas públicas. Ou seja, a democratização desse conhecimento para a democratização das próprias políticas.
Eu acredito que uma boa saída é o encontro desses saberes, e vejo que o Observatório das Metrópoles tem sido um espaço para essa conexão. No levantamento que realizei, encontrei artigos de pesquisadores do instituto dizendo que o interesse é produzir conhecimento direcionado para a participação. E essa é uma perspectiva inovadora, de democratização do conhecimento e das políticas.