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Com o avanço da informalidade nos últimos anos, a luta pelos direitos das mulheres camelôs deve estar no topo das prioridades. No mês das mulheres, as pesquisadoras do Observatório das Metrópoles, Mariana Werneck e Bruna Ribeiro, dão destaque ao tema a partir do infográfico “8M também é dia internacional das mulheres camelôs”. Confira!

Por Mariana Werneck¹ e Bruna Ribeiro²

Desde a reversão das políticas de orientação desenvolvimentista e a adoção do ajuste fiscal em 2015, agravada após o golpe parlamentar de 2016, o país mergulhou na maior recessão da história e o desemprego mais que triplicou. A taxa de desocupação atingiu o maior valor da série histórica em 2017, com, pelo menos, 14,2 milhões de brasileiros desempregados e, apesar da queda discreta do desemprego no ano seguinte, a subutilização – índice que reúne, além de desempregados, pessoas que não conseguiram uma posição em regime integral e aqueles que desistiram de procurar emprego – continuou a crescer. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 27 milhões de brasileiros estavam subutilizados no fim de 2018, o que representa nada menos que 23,9% da força de trabalho.

Frente à crise econômica, o trabalho por conta própria ou em vagas sem carteira assinada superou o emprego formal pela primeira vez em 2017. Muitos foram empurrados para as ruas para garantir seu sustento. Cerca de 200 mil novos ambulantes passaram a disputar as calçadas dos centros urbanos somente entre 2014 e 2017, quando o número de brasileiros ganhando a vida como camelôs chegou a quase 1,7 milhão. Em São Paulo, estado com a maior população de ambulantes, os camelôs cresceram 26% nos últimos três anos e chegaram a 287 mil em 2017. Bahia e Rio de Janeiro também observaram um crescimento de, respectivamente, 25% e 20%, alcançando 198 mil no estado baiano e 145 mil no estado fluminense no mesmo ano. Segundo o IBGE, apenas 5% deles têm licença para trabalhar.

A nova onda de informalidade – que também abarca o crescimento de empregos domésticos – representa uma piora na qualidade do emprego frente aos postos de trabalho com carteira assinada, que teimam em mostrar sinais de recuperação. De modo geral, são ocupações precárias: sem garantias trabalhistas, são comumente caracterizadas por extensão das jornadas de trabalho, baixa remuneração, falta de proteção previdenciária e, até mesmo, insalubridade e periculosidade do ambiente e das condições de trabalho, com impactos na autoestima individual e na organização coletiva dos trabalhadores. E o quadro deve piorar com a ofensiva sobre o sistema previdenciário, imposta pelo atual governo como o novo sacrifício social necessário para a retomada da economia.

Priorizando a todo custo os índices macroeconômicos de crescimento, a política de austeridade posta em marcha pouco deve fazer para retomar os postos de trabalho com carteira assinada, já que o setor financeiro que sustenta Paulo Guedes continuará a exigir corte nos gastos públicos e taxas de juros elevadas – o que multiplica os rendimentos financeiros, mas é péssimo para o investimento produtivo. Para além da financeirização, aqui e acolá, a revolução robótica e a reorganização da divisão internacional do trabalho – que transferiu, em escala mundial, as plantas fabris para a China e o Sudeste Asiático – avançam sem qualquer comprometimento com a geração de empregos no país.

Assim, uma nova onda de precarização vem a se combinar à velha precariedade estrutural do trabalho, uma vez que, no contexto brasileiro, a informalidade não deixou de persistir historicamente onde a integração social pelo mercado foi restrita ou inconclusa. E essa vulnerabilidade – no passado e no presente – atinge desigualmente a população. Quase metade dos trabalhadores pretos ou pardos (46,9%) está na informalidade, contra 33,7% da força de trabalho autodeclarada branca. As mulheres também são maioria: entre elas, 44% da população economicamente ativa se insere no mercado de trabalho pela informalidade, percentual que cai a 37% quando observamos os trabalhadores do sexo masculino.

A VULNERABILIDADE É MAIOR ENTRE ELAS

O trabalho camelô ainda é majoritariamente masculino, com 52,1% de homens trabalhando no varejo informal. O retrato pode ser reflexo tanto da desigualdade no acesso ao espaço público como das hierarquias que sustentam a divisão sexual do trabalho. Todavia, com a crise econômica, este panorama está sendo invertido. Entre 2015 e 2017, 55,5% das pessoas que procuraram o trabalho nas ruas como sobrevivência são mulheres, conforme detalha o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). A grande maioria delas é negra.

Os dados gerais respaldam a recente pesquisa produzida pelo Observatório das Metrópoles (IPPUR) em parceria com o Movimento Unidos dos Camelôs (MUCA) acerca das condições de trabalho dos ambulantes no centro do Rio de Janeiro, que ainda traz dados sobre o grau de vulnerabilidade do trabalho ambulante feminino. Segundo o levantamento, a remuneração feminina, pelo mesmo trabalho ambulante, é sensivelmente mais baixa: 17% das mulheres ganham menos de R$ 200, contra 11,2% dos homens. Por outro lado, as mulheres apresentam índices menores com relação aos rendimentos mais altos: contra 9,3% dos homens, nenhuma das mulheres entrevistadas recebia mais de R$ 1000 por semana.

As mulheres também têm menos autonomia no trabalho. Proporcionalmente, elas têm menos acesso à licença que eles, uma diferença que alcança 10,8%. Dentre aquelas formalizadas, o índice de mulheres titulares da TUAP é, impressionantemente, 41,6% menor que o de homens. Além disso, um número quatro vezes maior de mulheres relata ter que pagar para trabalhar, seja alugando TUAP, seja pagando taxas cobradas ilegalmente por agentes fiscalizadores do poder público, grupos criminosos de traficantes e milicianos ou administradores informais dos pontos de venda, numa rede de exploração que pressiona as mulheres desigualmente.

O dia de trabalho comumente é mais extenuante para o trabalho ambulante feminino. As mulheres são as mais impactadas por fatores como a ausência de creches em tempo integral, as condições precárias de higiene das ruas, a insegurança na volta para casa e as dificuldades de acesso a instalações como banheiros, que se agravam no caso de estarem grávidas. Quando comparadas a eles, aproximadamente metade das mulheres, 6,1% contra 11,9%,  faz suas refeições em bares e restaurantes – o que, provavelmente, está associado ao menor rendimento delas no trabalho, mas também devido à inexistência de uma rede de relações estáveis no entorno que possibilite à mulher se ausentar e se distanciar das mercadorias comercializadas. Assim, as trabalhadoras camelôs, em número acima da média total, comem na própria barraca, como também é maior, face o percentual total, o volume de mulheres que deixam de se alimentar durante jornadas que se estendem de oito a até doze horas. E algumas delas ainda se dividem entre atender os fregueses e cuidar dos filhos, que acompanham o trabalho na rua quando as mães não podem contar com redes de suporte femininas mais extensas.

Diante de tamanha urgência, a demanda por creches públicas é reivindicação comum entre as mulheres camelôs sem provocar, no entanto, uma política pública estruturada. Em seu lugar, as respostas ensaiadas têm caráter emergencial, como a ação levada a cabo no último feriado, quando a operação Proteja Rio, posta em prática pela Secretaria Municipal de Educação e pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, acolheu as crianças cujos responsáveis trabalharam como ambulantes cadastrados pela Riotur durante o Carnaval 2019. Embora positiva, a iniciativa é pontual e não oferece alternativa concreta para a autonomia econômica das trabalhadoras ambulantes; pelo contrário, diz mais sobre a fragilidade das condições de trabalho dos camelôs frente às arbitrariedades do poder municipal, que libera sua presença nas ruas no feriado popular em que a cidade é abarrotada por turistas, mas reprime a atividade ambulante no resto do ano, deixando, segundo dados do IBGE, mais de cinco mil cadastrados sem licença para trabalhar.

MAIS QUE UMA OPÇÃO TEMPORÁRIA DE TRABALHO

Ainda que o crescimento do varejo informal seja reflexo direto da crise, é preciso dizer que o trabalho camelô não se configura apenas como uma opção contingente de renda enquanto não são disponibilizadas vagas no mercado formal de empregos. A pesquisa do Observatório das Metrópoles e do MUCA também revela que a mais da metade dos entrevistados (51,9%) exerce a atividade há mais de dez anos.

Se os dados evidenciam a heterogeneidade estrutural da economia brasileira, em que amplas parcelas da população são impedidas de usufruir de relações de trabalho estáveis e acesso ao sistema de proteção social, a escolha pelo comércio ambulante também diz respeito às estratégias das classes populares para gerar condições de sustento a si e a suas famílias. Para as mulheres, em especial, o trabalho camelô pode significar a chance de ter maior liberdade com relação aos horários, dando margem de manobra para colocar a refeição à mesa ou levar os filhos ao posto de saúde.  Além disso, muitas relatam a possibilidade de escapar das humilhações e explorações praticadas no setor formal, principalmente nos serviços que exigem baixa qualificação. A atividade camelô, portanto, configura-se como profissão.

O desprezo por esse ponto de vista do trabalho ambulante é um dos fatores do insucesso das políticas de cadastramento realizadas pelas prefeituras, que, ao compreender o setor como ocupação temporária ou atividade para mera complementação de renda, disponibiliza licenças de trabalho a públicos-alvo distintos (como aposentados, egressos penitenciários e deficientes físicos) sem observar o tempo de trabalho daqueles que já ocupam tradicionalmente as ruas. No caso do Rio de Janeiro, esse processo, levado a cabo pela gestão de Eduardo Paes (2009-2016), gerou um novo mercado de aluguel de licenças que expôs homens e mulheres camelôs a uma nova rede de exploração – e constitui um dos motivos de contestação da categoria com relação ao ordenamento atual das ruas da cidade. A reversão de tais distorções é, no entanto, apenas o primeiro passo para a luta pelo trabalho digno e por uma cidade socialmente mais justa. Como diz Maria dos Camelôs: “Estamos aqui pra disputar”.

CONFIRA AQUI o infográfico completo.

¹Mariana Werneck é mestra em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e pesquisadora vinculada ao Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro.

²Bruna Ribeiro é mestra em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e pesquisadora vinculada ao Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro.