Paulo Roberto Rodrigues Soares¹
“Mas lendo atingi o bom senso” Tim Maia
Nada fora do (novo) normal. Tudo conforme o script anunciado. De um governo povoado por tantos negacionistas e anticiência era de se esperar que suas cargas se jogassem sobre o Censo Demográfico. Este, desde 1940, é realizado a cada dez anos sem interrupções. A exceção foi 1990, adiado para 1991 por cortes no orçamento e pela desconfiança da população em fornecer informações para um “governo” (na verdade para o Estado) que há poucos meses havia confiscado suas economias.
Agora amargamos o possível cancelamento do Censo de 2020, adiado ano passado em função da pandemia de covid-19. Além da pandemia, o corte de verbas para que o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (o quase centenário IBGE) possa realizá-lo. E não é pouco dinheiro! Realizar um Censo Demográfico digno deste nome (mais que a simples “contagem de população”) em um país continental com mais de 210 milhões de habitantes e 8,5 milhões de km² não é barato, requer planejamento, recursos e vontade política. Mas, também por isso, um Censo Demográfico é mais que necessário para conhecermos o país. Se é que alguns o querem!
Antes de discutir esses pontos, vamos à nossa tão atacada e remendada Constituição de 1988: “Art. 21. Compete à União (…) XV – organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional”. Portanto, em um exercício de interpretação, podemos afirmar que a realização do Censo a cada dez anos é quase uma obrigação constitucional, para que a União mantenha os serviços de estatística e geografia, os quais devem ser sustentados por dados atualizados, caso contrário correm o risco de se converter em arquivos históricos.
O Censo Demográfico é importante para conhecermos nosso país, nossa população, quantos somos e, mais importante, quem somos. E na última década nosso país passou por uma série de transformações econômicas, sociais e culturais significativas, que poderiam ser aferidas com o censo.
Entre 2011 e 2020, o país saiu de um momento de elevado crescimento econômico, de expansão do consumo e da chamada “nova classe média” para uma crise sem precedentes, agravada ainda mais com a pandemia. Houve a transição demográfica, a queda acentuada da natalidade e o aumento da idade média da população. Verificou-se uma grande expansão do ensino técnico e universitário, alterando nossa escolaridade. Políticas públicas e sociais de transferência de renda e de ações afirmativas raciais e de gênero impactaram a população, além do reconhecimento de direitos e territórios de populações tradicionais (indígenas e quilombolas, especialmente). Os resultados dessas políticas poderiam ser verificados no Censo. Também foi a década de um novo padrão de consumo, da revolução digital, da afirmação dos novos arranjos familiares, de novas identidades de gênero, de mudanças na distribuição da população por religiões (crescimento dos pentecostais e de outras formas de religiosidade), que podem ser confirmadas (ou não) por um censo demográfico.
No âmbito territorial, temos as migrações internas e internacionais que afetaram o país (quantos estrangeiros passaram a viver no Brasil? Onde? Quantos brasileiros saíram do país?); a expansão do agronegócio e a modernização da agricultura, que afetou a distribuição da população urbana e rural; o crescimento das cidades medias, o esvaziamento demográfico e o envelhecimento das cidades pequenas, o surgimento de novas regiões metropolitanas, entre outros processos não menos relevantes. As políticas habitacionais e o boom imobiliário impactaram as cidades, especialmente quanto à sua extensão e na distribuição da população em suas zonas e bairros e nas formas de segregação socioespacial.
Evidente que não poderíamos deixar de nos referir à pandemia e seus impactos na população, especialmente no que tange à mortalidade e ao crescimento populacional. Como noticiado, no mês de março de 2021 houve 24% mais óbitos que nascimentos no RS. E em nível nacional a estagnação da reposição demográfica também vem sendo constatada. E temos ainda o devastador choque no emprego e na renda das pessoas.
O Censo, portanto, é imprescindível para se planejarem políticas públicas. Logicamente, é melhor planejar a partir de um censo do que a partir de estimativas. Ainda mais que estas são baseadas nos censos anteriores e à medida que nos afastamos do último realizado, comprometemos séries históricas. A não ser que o Estado não queira planejar tais políticas, e esta parece ser a tônica, seguindo a linha de desmonte dos serviços sociais que vem ocorrendo desde 2016.
Nosso governo atual não lida bem com dados científicos, como seu comportamento relativo à pandemia vem comprovando. Os cortes orçamentários e o desmonte de políticas de ciência e tecnologia também corroboram nossa posição. Somem-se os diversos posicionamentos presidenciais e ministeriais que contrariam dados e pesquisas consolidadas em questões como mudanças climáticas, desmatamento, uso de agrotóxicos e qualidade alimentar, para ficar em alguns exemplos.
Pode-se alegar ainda que a persistência da pandemia dificulta a realização do Censo, comprometendo a saúde dos recenseadores. Nesse caso, teríamos a possibilidade de vacinação desses trabalhadores (se houver vacinas) e de informatização de parte do Censo, que poderia ser realizado com o auxílio de aplicativos. Obviamente que grande parte da população, especialmente a de baixa renda, teria dificuldades, daí a necessidade de campanhas de conscientização e de (muito) trabalho de campo. Historicamente, porém, os mais pobres tendem a cooperar, estão acostumados a cadastros e questionários, pois sabem que a assistência do Estado depende da sua colaboração. Em nosso país, a sonegação de informações sempre é maior entre os mais ricos.
São os desafios de um dos censos mais importantes e de mais difícil realização em nossa história. Mas, como colocamos, isso requer vontade de realizar, de produzir dados, de conhecer a realidade, enfim, requer bom senso com o censo.
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¹ Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É coordenador do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.
*Artigo publicado originalmente no Jornal da UFRGS.