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Paíque Duques Santarém*

Este artigo analisa em três textos, a partir de um resgate histórico, a proposta de Tarifa Zero aos domingos e feriados recentemente anunciada pelo atual governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB-DF). As transformações recentes da política de transporte foram o foco do primeiro texto, nesta segunda parte apresento um breve histórico da tarifa zero no Distrito Federal.

Breve Histórico da Tarifa Zero no DF

Até onde sabemos, a primeira defesa pública de Tarifa Zero universal no Distrito Federal foi proposta pelo Movimento Passe Livre (MPL) a partir do ano de 2007, após tomar conhecimento das  proposta do Lúcio Gregori, ex-secretário de transportes de São Paulo e principal formulador da medida. O MPL passou a divulgar, difundir e defender a bandeira a por meio de manifestações, textos, seminários, palestras, oficinas e intervenções públicas. A organização do Distrito Federal e Entorno fazia isso conjuntamente com os outros MPL’s de dezenas de cidades do Brasil.

Rapidamente a ideia ganhou apoio e se desenvolveu para além do movimento que a apresentou. Organizações da Sociedade Civil, sindicatos, setores da Universidade, outros movimentos sociais, alguns mandatos parlamentares e setores de partidos políticos passaram a refletir e defender a proposta publicamente, mas sem ações concretas.

A partir de 2011, houve rumores de que setores internos de estudiosos próximos ao governo eleito elaboraram uma proposta de tarifa zero que não chegou a ser implementada por disputas internas da coalizão do arco de alianças governistas e dificuldades vinculadas à recente Lei de Responsabilidade Fiscal.

Porém, em 2013 o tema alcançou outro nível de debate público. O Governo do Distrito Federal (GDF) passou a discutir publicamente a possibilidade de Tarifa Zero a partir de uma manifestação convocada pelo MPL nas chamadas jornadas de junho daquele ano. O secretário de transportes do DF falou, pela primeira vez, que era possível implementar a tarifa zero. Um grupo de estudos sobre o tema foi feito e o GDF chegou a realizar um seminário de dois dias acerca do tema. Por fim, sabe-se que uma proposta chegou a ser elaborada pelo governo, mas foi derrotada internamente por setores vinculados ao vice-governador da ocasião – Tadeu Filipelli (MDB-DF).

Nas eleições de 2014, de forma difusa, dezenas de candidatos de todos os matizes fizeram propostas tímidas sobre tarifa zero para a Câmara distrital, Federal, Senado e Governo do Distrito Federal. A pauta ganhou contornos de pauta pública a partir das mobilizações das jornadas de junho de 2013, mas não se materializou em consistentes programas político-partidários. À esquerda e à direita não houve qualquer iniciativa ampla e consistente de apresentar propostas eleitorais que considerassem a tarifa zero de forma coletiva. O Governo subsequente de Rollemberg, que chegou a afirmar em debates eleitorais que implementaria a gratuidade, foi amplamente contrário à medida, fazendo inclusive diversas ações e pronunciamentos no sentido de ridicularizar a ideia.

O Movimento Passe Livre apresentou, em 2015, o primeiro projeto de lei pela Tarifa Zero protocolado na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF). A proposta tratava de mudança na fórmula de cálculo (do IPK para o custo do serviço), operação pública do serviço, financiamento progressivo, criação de um fundo público do transporte coletivo, gestão popular e abrangência do Distrito Federal e Entorno. A proposta gestou debate público em variados grupos da sociedade mas, como de costume no período, teve pouca atenção institucional.

Tarifa zero é pauta nacional

O primeiro mandato de Ibaneis negou constantemente qualquer possibilidade de debate público sobre a ideia. Na impossibilidade de qualquer interlocução estatal sobre o tema, as pressões se fizeram mais intensas nos debates públicos, nas ruas e na nacionalização do debate. O crescimento das políticas Tarifa Zero em diversas cidades brasileiras pós-pandemia – que hoje chega a 123 com gratuidade total e mais dezenas com gratuidades parciais – e também o avanço das organizações nacionais sobre o assunto influenciaram gestores, movimentos e organizações locais. A cidade de Formosa (GO), por exemplo, implementou o programa municipal “Transporte para todos” em 2021, instituindo gratuidade em meio à crise pandêmica.

A transição entre o primeiro e segundo mandato de Ibaneis foi permeada pela discussão nacional da Tarifa Zero. Dado o avanço da pauta, o presidente do MDB, Baleia Rossi, propôs que a bandeira se tornasse pauta nacional do partido. A ideia não foi pra frente, entre outros motivos, pela forte resistência demonstrada pelo governador do DF à ideia. Mesmo que o GDF tenha criado um grupo de estudos para analisar a medida, afirmou internamente que se contrapunha visceralmente a qualquer adoção da mesma. Ibaneis inclusive chegou a vetar uma emenda à lei orçamentária proposta pelo deputado Fábio Felix (Psol-DF) que, com 600 milhões de reais, financiaria a gratuidade no DF a partir de 2023. Este debate foi, porém, abafado pelo afastamento do governador do cargo em razão dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Nos últimos dois anos a tarifa zero ganhou corpo no debate local e nacional. Do ponto de vista nacional surgiu a Proposta de Emenda Constitucional 25/2023, elaborada pela deputada Luiza Erundina (Psol-SP) e Lúcio Gregori em conjunto com diversos movimentos sociais que institui o Sistema Único de Mobilidade com tarifa zero para todo o Brasil. Muitas prefeituras implementaram a política pública da gratuidade. Em 2024, a Prefeitura de São Paulo, na gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), instituiu a tarifa zero nos domingos e feriados.

Localmente, houve avanço na CLDF, com a eleição de alguns parlamentares abertamente favoráveis à proposta.

A Comissão de Transportes e Mobilidade Urbana, por exemplo, é presidida pelo deputado Max Maciel (Psol-DF), egresso de movimentos sociais e que tem a tarifa zero como uma de suas bandeiras centrais. Além disso, foi criada Frente Parlamentar pela Tarifa Zero, presidida pelo deputado Fábio Felix. Um projeto de ampliação do passe livre para estudantes foi apresentado pelo deputado Ricardo Vale (PT) tem o nome de Tarifa Zero Estudantil, sendo concebido como uma forma de incentivar a gratuidade geral. O deputado Chico Vigilante (PT-DF) propôs uma passagem única para famílias pagarem semanalmente, como experiência inicial à gratuidade.  O deputado Gabriel Magno (PT-DF) integra, junto a outros supracitados, a subcomissão parlamentar pela Tarifa Zero. Diversas atividades, seminários e documentos foram produzidos discutindo a proposta, com a elaboração de diferentes pareceres e inclusive aprovação de projetos de lei que favoreceriam a realização da medida.

Ibaneis, combatendo este cenário, agiu pela manutenção do atual modelo: por exemplo, vetou e perseguiu judicialmente a lei que criava o Fundo de Transporte Coletivo do Distrito Federal. Alegando que havia vício de iniciativa, ele conseguiu tornar inconstitucional a consolidação de um fundo que receberia recursos diversos para direcionar ao funcionamento do sistema de transporte gratuito. Em novembro de 2023 Luziânia (GO), região do Entorno do DF, implementou também o seu “Programa Tarifa Zero”.

Seminário Internacional realizado em Brasília, em 2023. Foto: Divulgação Fundação Roxa Luxemburgo.

Os Movimentos Sociais também avançaram no debate e pautaram novas questões. A partir de encontros internacionais sobre transporte como direito e os caminhos para tarifa zero realizados em 2019 (Niterói e Maricá – RJ) e 2022 (Belo Horizonte e Caeté – MG), foi criada a Coalizão Mobilidade Triplo Zero – Zero Tarifa, Zero Emissões e Zero Mortes no Trânsito, que constituiu uma proposta pública detalhando o Sistema Único de Mobilidade, seus princípios e formas de organização.

A Coalizão, depois de criada, realizou seu primeiro encontro em junho de 2023 no Distrito Federal e Entorno, no 3º Seminário Internacional Transporte como Direito e os Caminhos para a Tarifa Zero (organizado pelo Inesc, Fundação Rosa Luxemburgo e MPL), atividade que refletia, analisava e celebrava os dez anos das jornadas de junho. O encontro juntou pesquisadores, ativistas, parlamentares e movimentos diversos do Brasil e de fora para discutir o tema e visitar a experiência de Formosa (GO). Em 2024 o debate foi impulsionado pelas propostas nacionais e locais de fundos para implementar política pública, por meio da elaboração de estudos, intervenções, debates e oficinas.

É em torno deste cenário que chegamos à proposta, aparentemente repentina, de Ibaneis Rocha de Tarifa Zero aos domingos e feriados, anunciada como um teste para implementação da tarifa zero em todos os dias da semana.


*Paíque Duques Santarém é Antropólogo e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo, Mestre em Antropologia, com formação em Ciências Sociais. Co-Organizador e Co-Autor do livro Mobilidade Antirracista. Militante do Movimento Passe Livre, com atuação no Distrito Federal e Entorno e membro do Núcleo Brasília do INCT Observatório das Metrópoles.

Artigo publicado originalmente no Brasil de Fato DF, no dia 27 de fevereiro de 2025.