O dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos” aponta três pontos polêmicos em relação às políticas públicas de segurança no contexto da preparação do Rio de Janeiro para a Copa do Mundo e Olimpíadas. O primeiro refere-se à privatização do espaço público para a Fifa; o segundo, à permanência dos sistemas de vigilância depois da realização da Copa; e o terceiro ponto está relacionado aos altos gastos na área e ao risco de aumento do problema do tráfico de armas.
Os pesquisadores do Observatório das Metrópoles participaram, em parceria com o Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, da elaboração do dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro”, o qual foi lançado no dia 19 de abril no Clube de Engenharia no Centro do Rio de Janeiro, reunindo a relatora da ONU para o direito à moradia, Raquel Rolnik; o presidente da Associação de Moradores da Vila Autódromo, Altair Antunes Guimarães, e o professor Orlando Santos Júnior, representante do Comitê Popular da Copa e do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).
Após o lançamento, a equipe do Boletim Observatório tem divulgado, a cada semana, os eixos temáticos do dossiê com o objetivo de ampliar, ainda mais, o debate sobre os megaeventos na capital fluminense. Nesta edição, o destaque é o tema da Segurança Pública. Leia a seguir as principais questões discutidas.
DOSSIÊ: “Megaeventos e Violação dos Direitos Humanos no Rio”
Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas
Tema: Segurança Pública
Uma das prioridades dos organizadores dos megaeventos é a organização da segurança pública. Seja a Copa do Mundo, as Olimpíadas ou uma conferência internacional das Nações Unidas como a Rio+20, tais eventos reúnem importantes autoridades e chefes de Estado de diversos países, centenas de milhares de turistas internacionais e nacionais, equipes com seus atletas multimilionários, repórteres e jornalistas de diversos canais de comunicação, produtores, VIPs e VVIPs, entre outros.
No Rio de Janeiro, onde a segurança pública é considerada uma questão sensível, defende-se a necessidade de medidas extraordinárias de segurança. Mas cabe perguntar o que está sendo segurado, como, onde, e quais serão os efeitos de curto, médio e largo prazo das medidas que estão sendo adotadas.
Tomando o caso do Rio de Janeiro como paradigmático, podemos perceber que os novos sistemas de segurança pública estão voltados para atender os interesses do mercado, usando medidas baseadas em armamentos pesados, na importação de tecnologias de última geração e na centralização de comando e controle visando vigiar as zonas turísticas e as infraestruturas voltadas para os eventos (estádios, centros de treinamento, transporte, centros de mídia, hotéis). Como foi evidenciado nas últimas edições das Olimpíadas e das Copas Mundiais de Futebol, o aparato de segurança não se estende na cidade de forma igualitária, mas tende a estar focado em pequenos delitos e na repressão do mercado informal em favor dos interesses das grandes empresas. Identificadas como ameaças, algumas categorias sociais e algumas áreas da cidade são os alvos preferenciais dos novos aparatos.
Antecipa-se que o aparato de segurança armada da Copa do Mundo custará R$2,1 bilhões e envolverá 53.000 novos agentes. Esse investimento é mais do que dobro gasto na última Copa, realizada na África do Sul. O povo brasileiro terá que arcar com todos os custos de segurança dos jogos e dos espaços a eles relacionados (Fan Fests, entorno dos estádios, aeroportos, etc.). Conforme o Artigo 40 da Lei Geral da Copa, a União “promoverá a disponibilização para a realização dos Eventos, sem qualquer custo para o seu Comitê Organizador, de serviços de sua competência relacionados, entre outros, a segurança; saúde e serviços médicos; vigilância sanitária; e alfândega e imigração.”
O investimento público em segurança pelos megaeventos pode ser considerado um experimento no monitoramento de pessoas e lugares. No caso do Rio de Janeiro, a segurança pública relacionada aos megaeventos Copa do Mundo e Olimpíadas está voltada para os interesses do mercado e terá o efeito de marginalizar ainda mais camadas sociais mais vulneráveis. A maior parte dos custos não tem retorno e é irrecuperável, porque são gastos em salários, combustível, uniformes e na administração e coordenação de estruturas temporárias.
No Rio de Janeiro, o recente programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) representa o maior investimento do Estado em segurança pública. Só em 2014, o 30 investimento será de R$ 720 milhões, prevendo um efetivo de 12 mil policiais . O programa das UPPs inspira-se no conceito de policiamento comunitário, que tem como estratégia a busca de uma parceria entre a população e as instituições de segurança.
Seu objetivo é “levar a paz às comunidades”, através da ocupação de territórios empobrecidos dominados há décadas por traficantes de drogas e da promoção de políticas sociais. Embora venha tendo a aprovação da maioria da população, as UPPs se tornaram objeto de grande polêmica, visto que ao mesmo tempo em que trazem uma série de benefícios para os moradores, como a redução dos homicídios decorrentes dos confrontos entre policiais e traficantes e a sua inserção no mercado formal de bens e serviços, o crescente processo de especulação imobiliária destes espaços tem gerado, entre outros efeitos, a progressiva expulsão dos mais pobres. Não é por acaso, aliás, que quase todas as primeiras 18 UPPs foram instaladas em favelas existentes nas regiões mais nobres da cidade, formando um “cinturão” associado explicitamente às áreas das competições Olímpicas, aos sistemas de transporte que os entrelaçam e aos centros de maior poder aquisitivo. As complexidades e contradições do projeto das UPPs são, portanto, profundas. É claro que esses investimentos em segurança fazem parte de um projeto maior de reterritorialização urbana e de controle social elementos chaves dos megaeventos no século XXI.
Em relação à Copa do Mundo e às Olimpíadas, para além das UPPs, podemos identificar três pontos polêmicos no que tange às políticas públicas de segurança. O primeiro tem relação com a privatização do espaço público, antes, durante e depois do evento. O contrato assinado entre a FIFA e as cidades-sedes da Copa indica que os estádios serão entregues à FIFA um mês antes do evento e permanecerão sob sua responsabilidade até duas semanas depois do mesmo para que ela possa melhor explorá-los.
Cada estádio terá um raio geográfico de 2Km em torno da qual a FIFA também terá direitos exclusivos de uso. Em outras palavras, promove-se a privatização do espaço público para promoção de lucros privados. Dentro dos territórios da FIFA, não será permitida segurança armada além da necessária para tratar de situações emergenciais. Os agentes de segurança serão contratados e trabalharão para a FIFA, mas suas despesas serão pagas com recurso público. Ou seja, o dinheiro público será gasto para “controlar” espaços públicos cedidos sem remuneração a uma empresa suíça, onde atuarão firmas de segurança privada com o suporte das forças armadas do Estado para garantir os “direitos” da empresa e de seus parceiros financeiros para a exploração econômica de tais espaços.
O segundo ponto polêmico é a permanência dos sistemas da vigilância depois da realização da Copa. O governo pretende investir R$ 80 milhões em câmeras de segurança nos estádios, onde as tecnologias de segurança têm a finalidade de vigiar e controlar o torcedor e os cidadãos, dando visibilidade ao seu comportamento nos estádios, enquanto o arcabouço institucional de gestão do futebol permanece opaco. Não há garantias que as imagens coletadas pela FIFA e por seus parceiros comerciais sejam apagadas depois do evento. Há um grande perigo que as técnicas e tácticas utilizar para “proteger”, “controlar” e “vigiar” violarão direitos de privacidade individual e de associação coletiva.
O terceiro ponto está relacionado aos altos gastos em segurança pública e privada e ao risco de aumento do já grave problema do tráfico de armas. Megaeventos estão associados a grandes trocas em termos de tácticas e tecnologias de policiamento. A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro assinou um contrato com o fabricante de armas Glock, de origem austríaca, para que estas sejam a marca “oficial” utilizada em suas unidades durante as Olimpíadas. Essa é uma tendência crescente nos megaeventos. Por exemplo, a operação policial nas Olimpíadas de Londres, em 2012, contará com um efetivo de mais de 50.000 homens armados, representando um custo 31 de R$ 3 bilhões . Durante um evento menor, os Jogos Mundiais Militares de 2011, o Rio de Janeiro usou um efetivo de 10.000 policiais. Há de fato uma indústria global de segurança voltada para os grandes eventos com implicações geopolíticas. Se projetarmos esses números para as Olimpíadas no Rio de Janeiro, podemos antecipar uma completa militarização da cidade em 2016. O que acontecerá com todas essas armas e equipamento de segurança depois do evento?
O quarto ponto polêmico é que o show do megaevento não pode acontecer hoje em dia sem o showda segurança.A realização de um megaevento é um momento propício para o país-sede mostrar ao mundo que é capaz de garantir a segurança em seu território, tornando-o atraente para a acumulação de capital e permitindo que os negócios (de armas de fogo, inclusive) possam florescer sob um regime de segurança opulenta e ostensiva. Só que nas áreas de consumo dos eventos (Fan Fest, Estádios), a força das armas não pode se mostrar, visto que ela interfere negativamente na experiência do consumidor. Desse ponto de vista, as políticas de segurança pública não têm a ver tanto com a segurança em si, mas sim com uma imagem de segurança.
Considerando esses pontos, resta analisar quais serão os efeitos para a segurança pública antes, durante e depois da Era Olímpica do Rio. Antes de tudo, os efeitos de curto prazo podem ser vistos nas comunidades onde estão instaladas as UPPs. O programa tem representado importantes conquistas em relação à segurança pública das comunidades faveladas, que, no caso do Rio de Janeiro, era historicamente dominada pela política de combate e repressão. Porém, a população teme que, ao término das Olimpíadas, cessem os investimentos em policiamento comunitário, deixando uma brecha para a volta dos traficantes armados. Além disso, há outras centenas de comunidades que ainda não receberam as UPPs e seguem vivendo uma situação de segurança pública precária. Vale mencionar que o Estado e a Prefeitura (que atua no âmbito na UPP Social) tem se omitido em relação à grave situação das localidades controladas por milícias, sobretudo favelas e bairros da Zona Oeste da cidade. Uma ameaça tão violenta para a população quanto aquela representada pelo tráfico de drogas, as milícias tem ainda como agravante o fato de serem grupos criminosos constituídos em grande parte por agentes públicos que deveriam prezar pela segurança e bem estar da própria população.
De imediato, vemos que os gastos com segurança pública estão aumentando num ritmo acelerado e a contratação de empresas para prestar serviços nessa área já está em andamento. Os cursos de treinamento e capacitação são amplos, abrindo o mercado de trabalho para mão de obra qualificada. Com os baixos salários da Polícia Militar, pode-se elevar ainda mais o risco de mudança na prestação dos serviços de segurança, passando do setor público para o setor privado, que poderia ser 32 considerado outra forma de privatização de um bem público, tal como a segurança.
Em médio prazo, que se estende da Copa das Confederações, em Junho de 2013, até o final da Para-Olimpíadas, em Dezembro 2016, estará erigido um estado paralelo com a contratação de dezenas de milhares de efetivos privados e públicos para controlar o espaço e o tempo urbano. Eles receberão treinamento específico (financiado pelo Estado) para controlar pessoas dentro do contexto do evento. Não há nenhuma dúvida de que as cidades que recebem megaeventos também recebem milhares de câmeras, novas tecnologias de monitoramento e novas regras de comportamento, modos de circulação, e leis punitivas. No caso das Olimpíadas, as autoridades gerarão uma lista de ativistas, sindicalistas, críticos, e outros que temem levantar a “voz da razão” contra a “fanfarra do evento”. Se as experiências de Vancouver e Londres são uma indicação, essas pessoas serão vigiadas no decorrer do evento.
Em longo prazo, pode-se antecipar que os investimentos em segurança pública vão permanecer de alguma forma, seja na sua forma física, institucional, tecnológica ou estratégica. Como um experimento em controlar massas humanas e extirpar ameaças, o megaevento deixará um saber governamental sobre as novas configurações da cidade. Esse saber não é neutro ou despolitizado, mas contextualizado dentro de um complexo cultural que identifica ameaças particulares que são socialmente construídas. A montagem do aparelho para “proteger” os interesses dos megaeventos pode ser adotada e utilizada para proteger os mesmos interesses pós-evento. O Brasil terá milhares mais de homens e mulheres treinados nessa indústria, armamentos e tecnologia para concretizar os ganhos do evento (o chamado legado), e uma nova estrutura centralizada que teria passado pelos testes “de guerra” com seu funcionamento cada vez mais refinado e pontual. Pode-se afirmar que as políticas públicas de segurança dos megaeventos têm seu lado positivo e necessário, mas também danos colaterais. Por um lado, o anel Olímpico parece mais seguro e as comunidades que tenham recebido UPP demonstram um aumento em qualidade da vida. Por outro lado, as políticas públicas de segurança voltadas para esses eventos criminalizam a pobreza, protegem direitos mercantilistas e vigiam vozes dissonantes. No primeiro momento, eles ocultam as raízes neoliberais do evento, ao mesmo tempo em que fabricam justificativas para a instalação de medidas extraordinárias. Depois, as novas políticas de segurança pública normalizam estratégias de acumulação, privilegiando “certas” regiões e bairros da cidade e reproduzindo uma noção limitada de segurança. Além disso, os megaeventos tendem a transferir a segurança para o setor privado ao mesmo tempo em que introduzem novas tecnologias e armas que poderiam ter o efeito de piorar a segurança pública pós-evento (falhas nos sistemas, altos custos de manutenção, mercado ilegal de armas). No contexto atual do Brasil, onde o governo deixou de investir mais de um bilhão de reais destinados à segurança publica , e no Rio de Janeiro, onde a Polícia Militar é mal renumerada, violenta e sabidamente atravessada pela corrupção, os altos gastos em segurança pública voltados para os megaeventos correm o risco de não melhorar a situação de insegurançaque predomina na cidade.
Depois da Copa e das Olimpíadas, corre-se o risco de se acordar numa cidade onde os que consomem, vivem e lucram no mercado formal das partes mais nobres da cidade podem ter acesso quase instantâneo à segurança, enquanto que as camadas sociais menos favorecidas vivem sob a vigilância de um regime militar altamente armado e treinado para defender as interesses mercantis.
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