A região metropolitana de Santarém ilustra um padrão de metrópole em formação incomum, em que a diversidade socioespacial atende tanto ao perfil hegemônico metropolitano, quanto a origem amazônica ribeirinha. Este artigo da Revista Cadernos Metrópole nº 40 expõe as coalizões criadas entre agentes econômicos do capitalismo global, elites locais e forças governamentais e o quanto as novas correlações de forças favorecem os interesses do setor imobiliário e financeiro, em detrimento da população local que historicamente tem sabido manejar seus espaços.
As trajetórias das sedes de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos, quando contrapostas às centenas de assentamentos rurais, reafirmam as limitações da institucionalização oficial dessa região metropolitana, excluindo comunidades tradicionais e beneficiando grandes agentes capitalistas, além de desperdiçar potenciais de inovação em direção ao equilíbrio entre o meio urbano e o natural.
O artigo “Santarém (PA): um caso de espaço metropolitano sob múltiplas determinações”, assinado pelos pesquisadores Taynara do Vale Gomes, Ana Cláudia Duarte Cardoso, Helder Santos Coelho e Kamila Diniz Oliveira, é um dos destaques do dossiê especial “Metropolização e diferenciações regionais” da Revista Cadernos Metrópole nº 40.
Abstract
The Metropolitan Region of Santarém illustrates an unusual metropolization pattern in which socio–spatial diversity satisfies both the metropolitan hegemonic profile and the Amazonian riverside origin. This article approaches coalitions created among economic agents of global capitalism, local elites and the public sector, and how the new correlation of forces favors the interests of the real estate and financial sectors, to the detriment of the local population, which, historically, has been wise in the management of their spaces. The trajectory of Santarém’s, Belterra’s, and Mojuí dos Campos’ municipality seats, when opposed to hundreds of rural settlements, reaffirms the limitations of the official institutionalization of this metropolitan region, excluding traditional communities and benefitting large capitalist agents, wasting innovative potentials that head towards a balance between the urban and the natural environment.
O PROBLEMA DA URBANIZAÇÃO E METROPOLIZAÇÃO INDUSTRIAIS NA FLORESTA
Santarém é a cidade mais importante do oeste paraense. Ela teve sua fundação portuguesa há 355 anos, mas seu sítio teria sido ocupado há mais de dez mil anos. O lugar abrigou civilizações portadoras de dinâmicas urbanas, cultura e organização social próprias e serviu de nó para redes que conectavam populações de diferentes territórios da Amazônia, segundo evidências já apresentadas por autores ligados aos campos da Ecologia Humana e Antropologia Biológica (Neves, 1992). Registros de ocupações pré-cabralinas apresentados no trabalho da arqueóloga Anna Roosevelt (Roosevelt, 1992) – pinturas rupestres, artefatos cerâmicos, vestígios de organização espacial, além do manejo florestal e dos rios – são as evidências que dão suporte às estimativas de que a região tenha sido ocupada desde 11 mil anos e seja reportada como uma das áreas de ocupação mais antiga de toda a América do Sul.
Apesar das frases de efeito do material publicitário usado para justificar a forma como ocorreu a integração econômica da Amazônia ao Brasil durante o governo militar – tais como a famosa “Terra sem homens para homens sem terra” – não teria havido efetivo vazio demográfico naquela região, mas sucessivas colonizações, sujeitas às ondas migratórias que modificaram as formas de ocupação do território e os modos de vida, além de geraram híbridos socioespaciais ainda pouco compreendidos, em face da ignorância de tais entrelaçamentos. Após décadas de desqualificação dos povos originários pelas vertentes hegemônicas da arqueologia (Leite, 2009), tornou-se mais fácil a conversão desse território à lógica capitalista e urbana-industrial.
Nessa perspectiva, a missão jesuítica estabelecida em 1661 metabolizou a estratégia de ocupação indígena e metamorfoseou a aldeia tapajônica em vila portuguesa. Santarém foi elevada à categoria de vila em 1758, e cerca de um século depois (1848) se tornou cidade. A localização estratégica no ponto médio entre Belém e Manaus explica a importância que essa cidade ribeirinha e portuária assumiu durante o período de exploração da borracha, entre 1850 e 1910, e sua capacidade de sustentar o papel de capital regional posteriormente. Isto ocorreu graças à intensa migração de nordestinos para a Amazônia em fuga das grandes secas de 1915 e 1942 (ver Figura 1) e à diversidade de produtos que alavancaram ciclos menores. Entre 1920 e 1960, o carro-chefe foi a produção de juta nas várzeas próximas e, entre 1950 e 1970, a exploração de ouro em garimpos que se estenderam até Itaituba e sustentaram as funções já consolidadas em Santarém. Mas, de modo menos perceptível, a ação do caboclo extrativista, camponês convertido ao extrativismo, dos índios urbanos e quilombolas foi subjacente à identidade cultural da região, baseada no manejo bem-sucedido dos recursos naturais para o sustento da família, e não para acumulação.
A partir de 1960, obras de infraestrutura provocaram grandes mudanças, alterando radicalmente as condições de acesso e produção (implantação de aeroporto, rodovias, construção de hidrelétrica, porto, etc.) que culminaram na atual integração da região ao eixo de exportação e produção de soja. A visão geopolítica para a Amazônia, concebida no âmbito dos I e II Planos de Desenvolvimento Nacional na escala macro (global), tinha foco na produção extrativa mineral e na agricultura (Tavares, 1986) e nenhum compromisso com as esferas de vida intermediária e cotidiana, intrínsecas para a compreensão do processo de urbanização em sua totalidade (Lefebvre, 2008).
O território amazônico teria sido integrado à matriz produtiva industrial, por meio de um processo de urbanização extensiva, conforme descrito por Monte-Mór (1994) em suporte à política de substituição de importações do País, como uma espécie de “almoxarifado”. Sua população original (indígenas, ribeirinhos, caboclos, quilombolas, etc.) foi facilmente mantida invisível, uma vez que o controle do território por tais populações era feito pela posse e efetivo trabalho no território, enquanto as políticas federais pressupunham a propriedade privada da terra e o incentivo à produção por meio de crédito bancário. A nova lógica era direcionada para a atração do capitalista pioneiro, oriundo do centro-sul, movido pelo sonho do enriquecimento rápido, graças à facilidade de acúmulo de terras, de exploração de madeira e do crédito para pecuária (ver Figura 2). Diferentemente do migrante nordestino, esse novo pioneiro contou com meios para introduzir suas próprias formas de produção na região e não se adaptou às práticas anteriores. Aspectos sociológicos, econômicos e políticos – que extrapolam o escopo deste artigo – geraram uma nova elite, interessada na produção dirigida para o consumo das sociedades industriais.
Contudo, todas as transformações nas condições de produção não resultaram no assalariamento ou na universalização do acesso da população local à renda, gerando na prática superposições e conflitos entre visões e formas de relacionamento com o território e com a natureza. Em um extremo, emergiu o interesse pelo fortalecimento das funções da cidade e da reestruturação do espaço regional e de criação de uma nova região metropolitana, para exercer papeis típicos das antigas metrópoles – o controle econômico da sua área de influência, a difusão de novos valores (urbano-industriais) na sociedade local e a articulação como centros de comando localizados em outras regiões do País ou internacionais – que, via de regra, demandam produtos que dependem de controle, destruição ou exaustão da natureza.
No outro extremo, é visível a resistência da população “invisível”, que mantém suas formas de vida e sustenta traços de identidade importantes, traduzidos em arranjos produtivos e em alternativas de viver, produzir e preservar historicamente bem-sucedidas, mas que dependem da natureza viva.
Contra esse pano de fundo, este artigo espera tecer considerações sobre o significado da criação da região metropolitana de Santarém e o surgimento de um novo padrão de metrópole, herdeira da logística e dos dividendos da exportação de commodities, paraíso da acumulação primitiva para o setor imobiliário articulado globalmente, mas palco de profundas desigualdades, violências e conflitos contra a população que sempre soube como usufruir e preservar seus tesouros. Espera-se com esse debate discutir alternativas para a cidade amazônica, aproveitando a literatura que aborda cidades boas para se viver nos países centrais, e expor o imperativo da interdisciplinaridade e do compromisso com a totalidade da vida, para a produção dessa e de outras regiões metropolitanas periféricas, em pleno século XXI.
Leia o artigo completo na edição nº 40 da Revista Cadernos Metrópole.
Publicado em Artigos Científicos | Última modificação em 14-12-2017 15:29:25