Santa Maria e o colapso da gestão urbana
A tragédia ocorrida no dia 27 de janeiro em Santa Maria (RS) é mais um exemplo do colapso da gestão urbana no Brasil. O incêndio, que destruiu a boate Kiss e matou pelo menos 231 pessoas, não pôde ser contido devido a uma série de falhas do sistema de segurança e pela ausência de fiscalização e regulação por parte do poder público. Mas o que liga a tragédia de Santa Maria às 168 mortes no Morro do Bumba, em Niterói (2010), ou às incontáveis tragédias cotidianas presentes nas cidades brasileiras? A resposta é a ausência de planejamento urbano duradouro e eficiente, maquiado pela velha infraestrutura e fragilidade institucional em termos de gestão pública.
A explicação para a suposta fatalidade das catástrofes que assolam as nossas improvisadas cidades é o padrão catastrófico de gestão urbana que continua sendo reproduzido historicamente. Como já apontaram vários analistas sobre as relações entre Estado e Sociedade no Brasil, o poder público somente consolidou as chamadas burocracias técnicas (estrutura fundamental para a adoção do universalismo de procedimentos que permite que a administração funcione sob baixa influência do jogo político imediato e particularista) nas áreas de interesses de frações das classes capitalistas modernizantes como forma de proteger os pedaços do Estado que asseguram as condições gerais da acumulação de capital.
São exemplos, ainda hoje, de ilhas de racionalidade técnica o BNDES, o Banco do Brasil, a Petrobrás, o Ministério da Fazenda, o Ministério do Planejamento. Nos outros setores de atuação do Estado, via de regra aqueles cuja função é atender as necessidades de reprodução social, prevalecem outras gramáticas cujo denominador comum é a predominância dos interesses particularistas e imediatos no funcionamento dos aparelhos públicos. Quando o assunto é saúde, moradia, saneamento básico, transporte, entre outros, o poder público age de forma emergencial e pontual; sendo que não há no país um corpo burocrático eficiente e qualificado para pensar as necessidades sociais da população.
A nossa fragilidade de gestão pública se agrava, ainda mais, ao se constatar que o Brasil assume uma configuração essencialmente urbana, com quase 85% dos domicílios brasileiros localizados em áreas urbanas e, desses, mais de 36% localizados em uma das dez principais regiões metropolitanas do país. No entanto, os governantes brasileiros ainda não compreenderam o significado desse fato: grande contingente populacional vivendo em cidades e necessitando de serviços integrados e eficientes. E o papel do poder público? Planejar, regular e fiscalizar todos os serviços, oferecendo bem-estar e condições para a população crescer e se desenvolver.
Quando os serviços essenciais urbanos não funcionam, a cidade paralisa. O mais grave dos casos é quando as tragédias urbanas resultam em perda de vidas. Foi o que aconteceu no incêndio da boate Kiss em Santa Maria, no estado do Rio Grande do Sul. Durante uma festa universitária, a banda que se apresentava usou efeitos pirotécnicos no palco, que se alastraram e começaram a incendiar o teto do estabelecimento coberto com espuma. A boate que estava lotada só possuía uma saída de emergência. As pessoas desesperadas não conseguiram sair. A tragédia resultou na morte de pelo menos 238 pessoas e deixou 106 pessoas feridas.
Após o incidente, a Prefeitura de Santa Maria e o Corpo de Bombeiro tentaram se desvencilhar das acusações de omissão, já que autorizaram o funcionamento da boate mesmo sabendo que o estabelecimento só tinha uma saída de emergência e que o plano de prevenção de incêndios estava vencido.
A tragédia de Santa Maria serve de exemplo para mostrar quando se trata das necessidades sociais o poder público atua no Brasil, sempre de forma emergencial, pouco planejada e ineficiente. Uma semana após o incêndio, o Jornal O Globo noticiou que prefeitos de vários estados do país determinaram uma fiscalização mais rigorosa das casas noturnas, afirmando que seria realizada uma fiscalização mais rígida dos estabelecimentos. É como se antes da tragédia o poder público não precisasse fazer uma regulamentação mais série. O que se vê é a velha confusão entre interesse público e interesse privado: as casas noturnas geram renda e servem como atrativos de lazer e cultura para a população, por conta disso as prefeituras fazem vista grossa até a regularização de todos os procedimentos.
Gestão urbana brasileira: lógicas particularistas
Prevalece no Brasil lógicas políticas particularistas que co-existem na organização e no funcionamento da administração urbana, bloqueando, como consequência, a adoção dos necessários instrumentos de planejamento e gestão pública de correntes da afirmação da lógica do universalismo de procedimentos. Estas lógicas esquartejam a máquina pública em vários centros de decisão que funcionam segundo os interesses que comandam cada uma delas. São elas:
a) o clientelismo urbano que trouxe para as modernas cidades brasileiras o padrão rural de privatização do poder local. Trata-se da lógica que está na base da representação política no Poder Legislativo Municipal, mas que precisa controlar parte da máquina administrativa para fazer a mediação do acesso pela população ao poder público. O clientelismo urbano é alimentado por práticas perversas de proteção de uma série de ilegalidades urbanas que atendem a interesses dos circuitos da economia subterrânea das nossas cidades (comércio ambulante, vans, etc.) e a necessidades de acessibilidade da população às condições urbanas de vida, dando nascimento as nossas favelas e as entidades filantrópicas que, travestidas de ONgs, usando recursos públicos para prestar privada e seletivamente serviços coletivos que deveriam ser providos pela Prefeitura. Atualmente, esta lógica vem se reconfigurando pela presença nas câmaras de vereadores de representantes dos interesses da criminalidade, como é caso do fenômeno das milícias no Rio de Janeiro.
b) o patrimonialismo urbano fundado na coalisão dos históricos interesses presentes nos circuitos da acumulação urbana, representados pelas empreiteiras de obras públicas, concessionárias dos serviços públicos, entre elas o poderoso setor de transportes coletivos, e os do mercado imobiliário. Esta lógica de gestão das cidades constitui-se historicamente na etapa de transição da economia agro-exportadora para a economia industrial, pela reconfiguração do capital mercantil em capital urbano, mas que mantém os traços fundamentais desta forma de acumulação, ou seja, a manipulação dos preços e a corrupção, obtidas pelo controle privatista de parte da máquina pública. Nos anos 1950-1970 este circuito se afirma e seus atores passam a constituir importante parcela do poder urbano em razão da explosão demográfica e econômica das nossas cidades impulsionadas pela expansão do Estado Desenvolvimentista impulsionando a realização de vultosas obras viárias, pontes, túneis, etc, custosas mas de finalidades duvidosas. Por outro lado, a criação do Sistema Financeiro da Habitação comandado pelo BNH consolidou o setor imobiliário, fez expandir as empresas de construção civil e sua presença no comando da administração das cidades.
c) o empreendendorismo urbano é uma lógica emergente impulsionada pelo surgimento de um complexo circuito internacional de acumulação organizado em torno da transformação das cidades em “máquinas de entretenimento”, para usar a expressão cunhada pelo sociólogo americano Terry Clark. Integra este circuito uma miríade de interesses, protagonizados pelas empresas de consultoria em projetos, pesquisas, arquitetura, de produção e consumo dos serviços turísticos, empresas bancárias e financeiras especializadas no crédito imobiliário, empresas de promoção de eventos, entre outras empresas. Tais interesses têm como correspondência local as novas elites locais portadoras das ideologias liberais que buscam na aliança com aqueles interesses recursos e fundamentos de legitimidade do projeto de competição urbana.
As novas elites buscam a representação política através do uso das técnicas do marketing urbano, traduzido em obras exemplares da “nova cidade”, o que é facilitado pela fragilidade dos partidos políticos. A política urbana passa a centralizar-se na atração de médios e mega-ventos e na realização de investimentos de renovação de áreas urbanas degradadas, prioridades que permitem legitimar tais elites e construir as alianças com os interesses do complexo internacional de entretenimento. Na maioria dos casos, esta orientação se materializa na constituição de bolsões de gerência técnica, diretamente vinculados aos chefes do executivo e compostos por pessoas recrutadas fora do setor público. Portanto, a lógica do empresariamento urbano, que se pretende mais eficiente, implica no abandono e mesmo desvalorização da organização burocrática. Os salários dos funcionários clássicos são aviltados, suas carreiras perdem prestígios, não são capacitados, os cadastros são abandonados e mesmo a base técnica dos órgãos públicos é fragilizada.
d) o corporativismo urbano traduzido na presença dos segmentos organizados da sociedade civil nas arenas de participação abertas pela Constituição de 1988, cuja promessa era a constituição de um padrão republicano de gestão da cidade que, se implantado, criaria a condições para o surgimento de uma gestão urbana fundada no universalismo de procedimento. Nos municípios onde a correlação de forças levou ao comando das Prefeituras coalisões de forças comprometidas com o projeto de constituição de uma verdadeira esfera pública local vem sofrendo reveses decorrentes, de um lado, em razão do baixo índice de associativismo vigente na sociedade – apenas 27% da população adulta integra as formas de organização cívica como sindicato, associações profissionais, partidos, entidades de bairro, etc. – e , de outro lado, pela diminuição do ímpeto dos movimentos sociais nas cidades. Estes dois fatos vêm bloqueando a constituição de uma aliança entre o escasso mundo organizado civicamente organizado e o vasto segmento da população urbana que se mobiliza politicamente apenas de maneira pontual e temporária. O resultado é que as experiências participativas resultam no atendimento dos interesses destes segmentos organizados, não forçando a adoção de um universalismo de procedimentos, pressuposto da constituição de uma burocracia planejadora.
Desse modo, uma das saídas para a gestão urbana no Brasil é a consolidação de um corpo técnico qualificado nos três níveis federal, estaduais e municipais; a elaboração de políticas integradas; a execução e mensuração das ações. E, especialmente, a percepção que o crescimento econômico e o desenvolvimento social do país começam pela cidade, pelo urbano presente no dia-a-dia.
Última modificação em 07-02-2013 21:04:18