Por Clarisse Linke¹ e Juciano Rodrigues²
Com a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, a Prefeitura do Rio de Janeiro prometeu uma “Revolução nos Transportes” através da implementação do sistema de BRT, dos corredores dedicados aos ônibus (BRS) e do veículo leve sobre trilhos (VLT) no Centro. Embora criticadas, é indiscutível que a priorização dos investimentos no transporte público coletivo parecia um caminho sem volta, alinhada à Política Nacional de Mobilidade. No entanto, agora, quase dez anos depois, a Prefeitura do Rio volta a emitir sinais contraditórios sobre os rumos da política de mobilidade na cidade com a construção do Anel Viário de Campo Grande.
O projeto, de quase 953 milhões de reais e financiado pelo BNDES, foi concebido pela Secretaria Municipal de Infraestrutura para dar maior fluidez ao tráfego na região e inclui construção de viadutos, trincheiras, mergulhão, um túnel e – principalmente – a duplicação de vias. Infelizmente, o que temos aqui é um conjunto de ações que colocam em risco os avanços alcançados em relação ao transporte público e que privilegiam a circulação por transporte individual, a despeito dos impactos negativos já amplamente documentados: congestionamento, poluição, insegurança viária, disputa por espaço público. E mais: a execução da obra sairá a toque de caixa, com pouquíssimo espaço para debater com a sociedade se o investimento beneficiará de fato quem mais precisa e se está condizente com os princípios da mobilidade urbana sustentável. Mas o prazo está dado, afinal, o próximo ciclo eleitoral já bate na porta.
Para piorar, esses novos rumos tomados pela Prefeitura parecem ignorar a enorme contribuição do transporte urbano na emissão de gases de efeito estufa. No caso do Rio de Janeiro, o setor é responsável por 41% da emissão de gases nocivos. É nesse cenário que as cidades são, ao mesmo tempo, lócus dos problemas, mas também das soluções. Nesse sentido, os ganhos associados às iniciativas com foco na redução de poluentes geram não somente resultados climáticos positivos, mas também impactam na saúde pública e na economia. Embora haja consenso sobre a necessidade urgente de abandonar o modelo excludente e ambientalmente insustentável do planejamento orientado para os carros, inclusive com a incorporação desse discurso pela Prefeitura do Rio, na prática, os investimentos em Campo Grande indicam um caminho radicalmente diferente.
É inaceitável que o investimento previsto no Anel Viário privilegie a melhoria da fluidez do trânsito e não seja direcionado para vias em que o transporte público e os transporte ativos, como a mobilidade a pé e o uso da bicicleta, sejam priorizados, com faixas exclusivas para ônibus e com ciclovias de qualidade ao longo de todas as vias que serão implantadas ou duplicadas. É fundamental também que seja re-priorizada a ligação do BRT conectando Mato Alto a Campo Grande e chegando até a Av. Brasil. Esta conexão seria de grande valia para o sistema do BRT como um todo, um dos principais focos na terceira gestão do Prefeito Eduardo Paes, com avanços no modelo regulatório do serviço, nova frota e reforma de estações. Por que não aproveitar este investimento na região para aprimorar ainda mais o sistema?
Nos últimos anos, diversas cidades no mundo vêm avançando no enfrentamento do modelo excludente de mobilidade urbana baseado no planejamento que historicamente privilegiou a circulação de automóveis. Com isso, observamos novos horizontes se concretizarem na direção de cidades mais acessíveis, inclusivas, saudáveis e ambientalmente sustentáveis. São exemplos desse avanço os investimentos em corredores exclusivos de ônibus, os incentivos ao uso da bicicleta, com a elaboração de ousados planos cicloviários e o apoio aos sistemas de bicicletas compartilhadas. Nas cidades brasileiras, temos muito ainda que avançar, sobretudo nas ações para requalificar e expandir os sistemas de trens e metrô e na implementação de projetos de descarbonização.
A cidade do Rio de Janeiro, na retórica, também busca estar alinhada ao discurso internacional das “cidades sustentáveis do futuro”, como bem mostra o Plano de Desenvolvimento Sustentável e Ação Climática (PDS), que reforça o comprometimento da cidade com as metas de abatimento de gases de efeito estufa acordas em 2015 em Paris. Dentro das metas apresentadas no PDS está a criação do Distrito de Baixa Emissão no Centro da Cidade e a eletrificação de 20% da frota de ônibus até 2030. São metas que ajudam o Prefeito a se firmar como Representante Especial para a Agenda de Mudanças Climáticas na Frente Nacional dos Prefeitos.
Entretanto, simultaneamente ao investimento bilionário que será feito para carros em Campo Grande, o Distrito de Baixa Emissão e a transição para ônibus limpos parecem se encaixar bem nas ações “para inglês ver”. O Distrito foi lançado no segundo semestre de 2022, quando a cidade se preparava para a Rio+30, mas com o cancelamento do evento, não se ouve mais sobre a iniciativa e seu potencial transformador daquela região. Do mesmo modo, a eletrificação da frota de transporte público segue em espera, dado que perdemos a oportunidade de incluir veículos limpos na compra feita recentemente dos quase 300 veículos novos para o sistema de BRT da cidade.
O Prefeito, pelo que parece, além de Representante Especial para a Agenda de Mudanças Climáticas, também disputa o título de Representante do Carro e do Diesel.
¹ Clarisse Linke é Diretora Executiva do Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento (ITDP Brasil), doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFF e Membro do Conselho de Transportes da Cidade do Rio de Janeiro.
² Juciano Rodrigues é pesquisador e membro do Comitê Gestor do INCT Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ), doutor em Urbanismo pela UFRJ e Membro do Conselho de Transportes da Cidade do Rio de Janeiro.