Tarcyla Fidalgo¹
Beatriz Terra²
Orlando Santos Junior³
A área central do Rio de Janeiro, local de fundação da cidade e de lutas pelo seu controle, tem uma história pujante de prestígio e riqueza que convive com a diáspora africana, marcada por resistências, contestações e diversas formas de reinvenção da vida das populações africanas escravizadas e forçadas a viver no Brasil. Como se sabe, o centro do Rio de Janeiro assistiu à chegada do maior número de negros escravizados da América.
No período entre os séculos XVIII e XX, uma parte importante do Centro se consolidou como residência de nobres e espaço de estruturas de governo, mas nunca deixou de ser um local de residência e resistência das classes populares. A proximidade do porto e o protagonismo do comércio internacional trazia ao território uma pujança e ao mesmo tempo uma severa contradição, na qual conviviam as elites e as populações pobres em busca de algum tipo de trabalho e sustento, habitando majoritariamente os cortiços.
Esse cenário de pujança e movimento foi sendo profundamente alterado pela expansão da área central e abandono da região como área residencial pelas elites ao longo do século XX, motivados por uma pluralidade de fatores que se sobrepuseram e/ou sucederam no tempo histórico⁴. Assim, crescentemente uma parte da área central do Rio de Janeiro foi se deteriorando e desvalorizando, passando então a atrair e consolidar uma população de baixa renda que, resistindo nos cortiços, habitando o Morro da Providência (primeira favela do Brasil, vale lembrar) ou ocupando imóveis vazios e abandonados, deram vida à área central do Rio de Janeiro por décadas.
Já no século XXI, a área volta a chamar atenção de governos e do mercado imobiliário que veem na sua deterioração uma oportunidade de obtenção de lucros a partir de processos de revalorização e gentrificação, uma prática também identificada em áreas centrais em diversos outros países⁵. Depois de alguns ensaios e tentativas malsucedidas, o período pré-olímpico (e o enorme volume de recursos despejados na cidade) foi a oportunidade perfeita para colocar em prática um grande projeto de revalorização da região, o Porto Maravilha (Lei Complementar, nº 101 de 23 de novembro de 2009).
O projeto estava assentado em um discurso sobre a necessidade de revitalização da área central – como se lá não houvesse vida pujante – com investimentos públicos vultuosos e propostas de limpeza social da área, a fim de atrair investimentos para construções, principalmente corporativas, voltadas para as classes média e alta. Apesar das significativas intervenções territoriais e do vultuoso montante despendido pelo governo, o perfil popular da região e a crise econômica que atingiu o país e a cidade impediram, pelo menos até o momento, o sucesso do projeto, que talvez ainda sofra de forte estigma social pelas elites. Atualmente o que se vê na região portuária é um mosaico fragmentado de subáreas, com lugares turísticos, pontos comerciais e edifícios corporativos, convivendo com residências populares, ocupações de prédios que estavam vazios sem cumprir sua função social, construções subutilizadas ou vazias e estruturas em deterioração.
Esse cenário se complexificou com a pandemia de COVID-19 e a necessidade de isolamento social que, levando à adaptação do trabalho para as casas dos trabalhadores, relegou áreas pujantes do centro a um cenário de abandono, com fechamento de estabelecimentos e ruas vazias, mesmo durante o dia.
No início de 2021, que marca o retorno de Eduardo Paes ao comando da prefeitura – lembrando que o atual prefeito foi o gestor responsável pela implementação do projeto Porto Maravilha – assistimos à apresentação de mais um projeto para a área central: o Programa Reviver Centro, consolidado no Projeto de Lei Complementar nº 11/2021.
O Programa Reviver Centro, em síntese, tem por objetivo incentivar o uso habitacional na região central, promovendo a mistura social com a residência de populações de diferentes rendas. Para alcançar este objetivo, o programa prevê a implementação de vários projetos e mudanças na legislação que visam viabilizar economicamente empreendimentos residenciais. Nos termos de sua justificativa: “(…) a proposta prevê, entre outras medidas, incentivos fiscais e edilícios e permissões de novos usos para fomentar a construção de moradias e o retrofit de prédios comerciais, convertendo-os em edifícios de uso residencial ou misto. O projeto inclui também a concessão de benefícios a quem aderir ao programa de Locação Social, com público-alvo de estudantes universitários, estudantes cotistas e servidores públicos; além de regras para o programa Moradia Assistida, que visa a atender com moradia temporária pessoas em vulnerabilidade social“.
Os objetivos do projeto, em geral, estão bem delineados. Vale a pena investir no Centro, sobretudo para promover melhores condições de vida e trabalho para as classes populares que residem e se reproduzem nesta região da cidade. Mas, do nosso ponto de vista, existem algumas insuficiências que pretendemos apontar neste ensaio, de forma a contribuir com o aperfeiçoamento do programa.
A ideia de promover moradia na área central já estava presente no projeto Porto Maravilha e não pode ser considerada nova. Mas deve-se ressaltar como aspectos positivos a sua intenção de promover a função social da propriedade, promover moradia para baixa renda e aplicar os instrumentos do Estatuto da Cidade que inibem os vazios urbanos, tais como o PEUC – Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsória.
Deve-se ressaltar outro aspecto positivo, o fortalecimento dos espaços públicos, a celebração da diversidade cultural, a promoção da educação cidadã, e a “compreensão atual dos fatos históricos da escravidão, eugenia, racismo, violência contra os direitos humanos e opressão da liberdade que atingiram populações negras, indígenas, LGBTQI+ e minorias sociais” (inciso XVI, art 1º, do PLC nº 11/21).
É muito importante destacar também a criação do Programa de Locação Social e o Programa de Moradia Assistida, que teriam o potencial de promover o acesso à moradia na área central para pessoas de baixa renda.
A questão é como garantir que o centro possa ser um local de moradia, trabalho e vida das classes populares e não viva um processo de gentrificação, com a expulsão dos atuais moradores e usuários. O programa apresenta diversos problemas estruturais que fragilizam seus objetivos e que merecem ser apontados e alterados:
- A delimitação da área de abrangência do projeto e a sua desarticulação em relação ao Projeto Porto Maravilha. O Programa Reviver Centro optou por limitar os benefícios produzidos pela sua intervenção apenas à II RA – Região Administrativa, excluindo o Morro da Providência e os bairros Caju, Santo Cristo, Saúde e Gamboa, que fazem parte da I RA. Esse recorte não apenas restringe muito a capacidade de promoção do uso habitacional na região central da cidade, como torna a intervenção na região central totalmente desarticulada do projeto de Porto Maravilha, que compreende uma Operação Urbana de grande impacto sobre a região, que realizou um conjunto significativo de investimentos em infraestrutura na região;
- A ausência de ações e propostas relacionadas à produção de habitação de interesse social e a sua completa desarticulação com o Plano de Habitação de Interesse Social da Região Portuária, aprovado em 2015, durante o segundo mandato do prefeito Eduardo Paes. A intenção de promover o uso residencial da área central requer não apenas a conversão de uso dos edifícios já existentes, mas a produção de habitação de interesse social voltada para as classes populares;
- A invisibilização dos cortiços. Um estudo recente do Observatório das Metrópoles mostra que na área central existem no mínimo 155 cortiços envolvendo 2.450 quartos, e 2.638 pessoas vivendo nessa forma de moradia. Cerca de 100 desses cortiços estão situados exatamente na área delimitada pelo Reviver Centro⁶. É inadmissível o programa não prever a criação de um projeto de recuperação e regulamentação dos cortiços;
- A lei no seu art. 22, institui o Programa de Locação Social, como instrumento integrante da Política Habitacional do Município, na área de abrangência definida nesta Lei, com o objetivo de promover habitação para a população de baixa renda. É importante destacar que o programa prevê como objetivo a formação de um parque imobiliário de locação, sob gestão do Município. Mas ao mesmo tempo, o programa também permite a adoção de parcerias público-privadas para a implementação do programa, o que levanta questionamentos quanto às opções que o município vai adotar para a efetivação do programa. Nesse sentido, torna-se necessário delimitar uma composição mínima de imóveis públicos que comporiam a oferta de imóveis para locação social dentro do programa;
- Por fim, cabe ressaltar a completa ausência de instâncias de participação. O programa não institui canais de participação na gestão e acompanhamento da sua implementação. É extremamente positivo o objetivo de fortalecer os espaços públicos da região, privilegiando sua utilização pela população e a “caminhabilidade” da área. Mas é preciso reconhecer a diversidade de agentes que usam e se reproduzem no espaço urbano do centro: moradores, população em situação de rua, agentes econômicos vinculados ao comércio e serviços, camelôs, grupos culturais, grupos de samba, grupos de rock, instituições educacionais e culturais etc. Sem espaços de concertação, será inevitável o acirramento dos conflitos sociais;
Cabe destacar, antes de qualquer análise que se pretenda desenvolver, que o projeto Reviver Centro abrange apenas uma parte da área central da cidade, fragmentando a região em propostas que não se articulam com as infraestruturas e investimentos realizados na região portuária pelo projeto Porto Maravilha.
O foco na habitação parece vir de um aprendizado propiciado pelo fracasso do projeto Porto Maravilha que, ao apostar em edifícios corporativos e em infraestruturas urbanas sem qualquer previsão efetiva de habitação, em especial de interesse social, promoveu um grande espaço urbano infraestruturado, bem localizado e subutilizado.
Nesse cenário, um dos grandes riscos do projeto Reviver Centro, que tem como um dos seus objetivos atrair a classe média para a região⁷, é não levar em consideração a população que já reside no Centro, majoritariamente vulnerabilizada (moradores de cortiços e de favelas, ocupações de prédios vazios, população em situação de rua etc.). Neste sentido, ainda que não sejam feitas remoções pelo poder público, o programa apresentado pode iniciar um processo de gentrificação, com a expulsão indireta da população mais pobre, aumentando os preços de se viver na região central e alterando os usos dos espaços. Apesar de prever a elaboração de programas, como os de Locação Social e Moradia Assistida, o projeto não deixa claro o seu funcionamento.
Outro risco trazido pelo projeto está na previsão de utilização do instrumento da Operação Interligada o que, por si só, deixa muitas dúvidas e problemas. Por meio deste instrumento, pretende-se que a construção ou reconversão de edificação residencial na área central dê ao seu proprietário o direito de aumento de gabarito em imóveis localizados na zona sul da cidade e na região da Tijuca. A Operação Interligada, com impacto potencial significativo em áreas valorizadas e já bastante adensadas da cidade, está sendo colocada no projeto em um momento em que o Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro está em reformulação, sendo este o processo que deveria tratar do seu debate e definição.
É de suma importância mencionar ainda, de modo a corroborar as preocupações expressadas neste texto, que em 29 de abril de 2021 foi lançado o Decreto nº 48.806 que “determina a realização de intervenção especial de ordenamento urbano em área da Avenida Rio Branco e na Praça Floriano, no Centro da Cidade”. Neste decreto, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP) poderá realizar operações para prevenir e coibir, entre outros, “qualquer atividade de comércio ambulante”, “guarda ou armazenagem de quaisquer bens, mercadorias, móveis e objetos de uso pessoal “e “usos de moradia”. Algumas destas ações já começaram a ser colocadas em prática, incidindo na repressão aos trabalhadores camelôs, como ilustram algumas matérias na imprensa: “Ambulantes fazem protesto no Centro do Rio contra o cancelamento de licenças” (Diário do Centro do Rio, 26 de abril de 2021), “Ações de revitalização no Centro do Rio têm início na Cinelândia” (Veja Rio, 28 de abril de 2021) e “Ação da Comlurb nos arredores da Cinelândia dá início ao projeto ‘Reviver Centro’” (Diário do Centro do Rio, 16 de abril de 2021). Com esse decreto, que passou a vigorar no dia 1º de maio de 2021, a Prefeitura vem promovendo a expulsão de camelôs, ambulantes e pessoas em situação de rua do Centro do Rio de Janeiro, com o recolhimento de pertences e mercadorias destes agentes. Nossa preocupação é que, com o Reviver Centro, essas ações sejam ainda mais frequentes, justificadas pela necessidade de higienizar os espaços da cidade para execução do projeto.
Em suma, o investimento público na área central é muito bem-vindo, mas o programa Reviver Centro ainda levanta muitas dúvidas e incertezas. Qualquer intervenção pública na região deve garantir o direito das classes populares de morar, trabalhar e viver no Centro.
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¹ Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro. Conselheira Regional do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.
² Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro.
³ Sociólogo, doutor em planejamento urbano e regional, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ). Membro do Comitê Gestor do Observatório das Metrópoles e pesquisador do Núcleo Rio de Janeiro.
⁴ Dentre tais fatores temos o crescimento do porto de Santos e seu protagonismo no comércio internacional, a perda da condição de capital pelo Rio de Janeiro e o amplo processo de decadência cultural e econômica provocado por esta mudança, ampliação dos vetores de expansão da cidade em direção à zona oeste, entre outros.
⁵ SMITH, Neil. Gentrification and the rent gap. Annals of the Association of American Geographers, v. 77, n.3, pp. 462-465.
⁶ Ver “Relatório: Cortiços na Área Central do Rio de Janeiro”, disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/relatorio-corticos-na-area-central-do-rio-de-janeiro/
⁷ No artigo 25 da PLC 11/21, são elegíveis ao Programa de Locação Social, pessoas com renda até 6 salários mínimos com foco em trabalhadores, estudantes de curso técnico ou universitários e servidores públicos.