O INCT Observatório das Metrópoles divulga o número inaugural da Revista PERIFERIAS, produzida pelo Instituto Maria e João Aleixo (IMJA) que busca contribuir para a construção de uma rede que conecte as periferias de todo o mundo.
Segundo os editores, o objetivo da Revista PERIFERIAS é aproximar pesquisadores, ativistas, artistas e moradoras de Periferias de todo o mundo, interessadas em partilhar experiências múltiplas. O tema de edição de lançamento e premissa de atuação da Revista é “O Paradigma da Potência e a Pedagogia da Convivência”. Seu princípio norteador é a construção de novas narrativas que disputem adjetivações estigmatizantes utilizadas para denominar territórios e seus sujeitos. O contra-argumento, o qual denominamos por Potência, é o poder inventivo das Periferias: a capacidade de gerar respostas práticas e legítimas às condições desiguais, que se configuram como formas contra hegemônicas de vida em sociedade. A proposta é discutir a potência das Periferias como afirmação do direito à convivência democrática, ressaltando suas formas e processos plurais de expressão politica, cultural, estética e social.
O Paradigma da Potência busca, por meio da produção plural, sensível e descentralizada do conhecimento, construir novas concepções e narrativas das Periferias, de seus sujeitos e dinâmicas, com a finalidade de incidir sobre a política e, em última instância, disputar o projeto de radicalização democrática da sociedade.
Em seu número inaugural, PERIFERIAS apresenta o artigo de abertura “O Paradigma da Potência e a Pedagogia da Convivência”; entrevista Ailton Krenak, importante liderança indígena para o América Latina; traz artigos acadêmicos da Maré – Rio de Janeiro, Cidade da Praia – Cabo Verde, Molenbeek – Bruxelas; e apresenta a seção Narrativas Estéticas: ensaio fotográfico com Imagens do Povo; Depoimento sobre a vida em prisão na Escócia; História em quadrinhos sobre a atividade mineradora em Goa – Índia; Poesia Maloqueirista, de São Paulo; e ainda resenhas e a Carta da Maré – Manifesto das Periferias, traduzida para dez idiomas.
Acesse no link a seguir a Revista PERIFERIAS.
A seguir um trecho do artigo “O Paradigma da Potência e a Pedagogia da Convivência”, assinado por Fernando Fernandes, Jailson de Souza e Silva e Jorge Barbosa – Instituto Maria e João Aleixo.
O PARADIGMA DA POTÊNCIA E A PEDAGOGIA DA CONVIVÊNCIA
Nos tempos presentes, o ódio e a indiferença social predominam no debate público, na retórica política e nas narrativas midiáticas na sociedade – inclusive ganhando sua sustentação no desrespeito provocado por discursos étnicos, morais e religiosos frente ao outro. Nessa cena social regressiva, materializa-se um paradigma que ameaça à democracia e o reconhecimento da diferença.
Aliado a esse processo, o sectarismo, em suas diversas formas, sobressai em várias agendas ideológicas – compreendidas tanto no espectro do extremo da esquerda ao da direita – intensificando tensões políticas e simbólicas.
Os discursos e práticas acima identificados estruturam o quadro atual que produz, reforça e dissemina discursos que legitimam a desumanização de grupos sociais inteiros, assim como intensificam o descarte de pessoas marcadas como diferentes ou antagônicas.
Para esse plano discursivo que vai se difundindo de forma assustadora e devastadora em sua sociabilidade – − favelas, periferias, cortiços, ocupações e tipos assemelhados de moradia – − compartilham representações simbólicas estereotipadas no cenário urbano, as quais são. Deles, a representação social é tipicamente associadas a rotulações negativas e preconceituosas, que. Ao fim, reforçam características físicas e sociais inferiores aos padrões normativos definidos pelos regimes estéticos hegemônicos e pelos modelos conservadores de habitabilidade de urbana.
Ao seguirmos as contribuições de Pierre Bourdieu e ao considerarmos o espaço urbano como campo onde o capital simbólico da territorialidade e de seus habitantes agregam status econômico e social, podemos registrar como o acúmulo de capital simbólico na cidade é central para o acúmulo de capital econômico e social.
Portanto, argumentamos, em nossa primeira edição da Revista PERIFERIAS, que a melhoria dos meios e condições de existência emde territórios populares em muito dependem de mudanças nas marcações simbólicas que as marcam atravessam profundamente.
São mudanças que, entretanto, não se concretizam com a incorporação de concepções de estética e de habitabilidade dominantes, mas sim com o reconhecimento do poder inventivo – resultado das estratégias e afirmações de interação do no espaço urbano – que a população residente em territórios marcados pela desigualdade possui.
Narrativas de origem do Paradigma da Ausência
É aceito quase como consenso o fato de que ocupações urbanas com limitado acesso à infraestrutura e serviços públicos, e com baixo perfil de status social (muito em detrimento dos baixos níveis educacionais, alto índice de desemprego, precariedade no trabalho, prevalência de indicadores precários relacionados à saúde, e assim sucessivamente), sejam basicamente classificadas como territórios “desprovidos”, “desfavorecidos”, “desprivilegiados”, “pauperizados” ou “carentes”.
Essas adjetivações contribuem para a conformação de uma doxa urbana, na qual a depreciação simbólica, a partir dos discursos elaborados e disseminados pela mídia de massa, torna-se senso comum; o mesmo ocorre com narrativas distorcidas (conversas informais, piadas) – fazendo com que políticas públicas reproduzam conformações à referida narrativa.
Considerar que territórios populares não satisfazem padrões de vida pretendidos é determinante para sustentar reivindicações por investimento estatal, capazes de garantir melhores padrões de vida e legalmente viabilizar seu uso social pleno; e isso se localiza no núcleo para a reformulação de políticas habitacionais e urbanas: as reivindicações legitimam-se pela produção do conhecimento, opinião pública e obtenção de dados oficiais, com os quais conjuntamente se demonstre a escassez de recursos e meios para se obter condições dignas de vida.
Reconhecer tais características de desigualdade é ato fundamental para se alcançar padrões dignos de vida. No entanto, é também matéria de preocupação, quando a ênfase recai única e exclusivamente na ausência ou no que os territórios não são, pois assim fatores relevantes são omitidos, tipicamente ignorados ou mitigados.
O Paradigma da ausência não reconhece estratégias resultantes de formas autênticas de “resiliência”, tampouco admite formas e estilos de vida deslegitimados por referências sociais, culturais, políticas e estéticas hegemônicas. São, fundamentalmente, habitus sociais desenvolvidos sob as condições específicas de vida, simbolicamente depreciadas como parte integrante do processo de distinção corpóreo-territorial, recorrentes no espaço urbano.
O processo simbólico-depreciativo é parte de uma dinâmica ainda mais ampla que envolve a produção de narrativas que buscam adesão popular e também justificar ações do Estado, as quais em detrimento de outros, beneficiarão setores específicos da sociedade.
Tais práticas são conduzidas por elites econômicas e políticas; fazem uso da violência simbólica para manter o status quo. Executadas sob “práticas democráticas” questionáveis, intervenções urbanas são apresentadas como benéficas para uma parcela mais ampla da sociedade, a qual usufrui dos produtos da acumulação de capital da elite.