Publicado pela Revista Cadernos Metrópole (Qualis/CAPES A1), está disponível o dossiê “Desindustrialização e refuncionalização do patrimônio industrial”, que analisa as transformações nas metrópoles contemporâneas, destacando a transição de centralidades econômicas da sociedade industrial para a sociedade de serviços, observada em cidades da América do Norte, Europa e América do Sul.
O dossiê foi organizado pelas pesquisadoras do Núcleo São Paulo do INCT Observatório das Metrópoles, Mônica de Carvalho (Departamento de Ciências Sociais/PUC-SP) e Clarissa Gagliardi (Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo/USP), e Paulo César Garcez Marins, Diretor do Museu Paulista da USP.
Segundo os organizadores, essas mudanças, marcadas pela desindustrialização e pela reconfiguração econômica global, alteram significativamente a produção do espaço urbano e introduzem novos atores e dinâmicas. O dossiê também aborda o impacto dessas transformações no surgimento de novos campos de conhecimento, como o patrimônio cultural associado ao patrimônio industrial, revelando as tensões e desafios enfrentados nos cenários urbanos em transformação.
Que os artigos reunidos estimulem agendas de pesquisa capazes de suscitar, mais do que o debate, a incidência política efetiva sobre a produção do espaço urbano. E cumpre frisar, ainda uma vez, que o Estado e as políticas públicas de preservação do patrimônio, articuladas à gestão e ao planejamento urbanos, têm papel altamente relevante nessa direção. Mais do que preservar ruínas, trata-se de contrapor-se à expansão sem limites do capital urbano, para que se garanta a eficácia da preservação de legados sociais e se evitem, no futuro, novas ruínas oriundas de ações excludentes e sem qualidades.
A seguir, apresentamos os 11 artigos selecionados no âmbito do dossiê temático e os sete textos adicionais que completam o número:
No artigo que abre o dossiê, intitulado “O processo de esvaziamento industrial da metrópole paulista: restrições, tendências e perspectivas“, Alexandre Abdal e Felipe Madio apresentam e discutem o conjunto de pressões que, nos últimos 50 anos, vem produzindo um resultado de esvaziamento industrial na Região Metropolitana de São Paulo. A hipótese dos autores é a ocorrência de uma tripla pressão: 1) desindustrialização em escala nacional; 2) formação da Macrometrópole Paulista em escala regional; e 3) assédio do mercado imobiliário para a reconversão de uso em áreas industriais em escala local.
Na sequência, a mesma situação é observada na Argentina, por María Eugenia Goicoechea e María Soledad Arqueros Mejica, em “Espacios del terciário. ¿Tendências de reestructuración urbana en contextos de desindustrialización?“. Segundo as autoras, a conjugação da abertura econômica, comercial e financeira com a desregulamentação trabalhista e a falta de investimentos na infraestrutura produtiva, presentes desde meados da década de 1970 no país, seria intensificada com a apreciação do câmbio, nos anos 1990, determinante para a desarticulação da matriz produtiva industrial argentina.
O caso de Barcelona é abordado por Cristina López-Villanueva e Montserrat Crespi-Vallbona no artigo “Resistencias en la transformación de los espacios industriales en Barcelona“. O texto coloca no centro da reflexão os desafios da preservação do patrimônio industrial quando confrontados com os interesses imobiliários. Os dois casos analisados – a conversão das antigas indústrias Can Ricart e Can Batlló – demonstram que o grande desafio, para a preservação de territórios e edificações que se tornaram patrimônios protegidos, é a necessária inversão de recursos, escassos quando sua origem é proveniente do poder público, mas abundantes quando a origem é o capital privado.
Em “Desindustrialização e refuncionalização: King’s Cross e Operação Urbana Água Branca“, os autores Nadia Somekh e Guilherme Henrique Fatorelli Del’Arco examinam os casos do projeto urbano de King’s Cross (Londres) e da Operação Urbana Água Branca (São Paulo), ambos pautados na parceria entre poder público e iniciativa privada, especialmente por meio da negociação de ativos urbanos. No caso londrino, a existência de um projeto urbano permitiu que o English Heritage, órgão público britânico de proteção do patrimônio, fosse um dos agentes a discutir o projeto que deveria ser implementado em King’s Cross Central, considerando que ali havia vários conjuntos de edificações destinados à preservação. O oposto é observado em São Paulo, no caso da antiga região fabril da Água Branca. A começar pelo fato de que o ponto de partida é um instrumento urbanístico, a Operação Urbana Consorciada (OUC), cujo principal objetivo é a flexibilização do zoneamento urbano para atrair o mercado imobiliário e receitas para o erário municipal.
Diante do descaso do órgão patrimonial e mesmo da família Abdalla, que ainda permanece proprietária de suas edificações, Pedro Vianna Godinho Peria, no artigo “Narrativas e ação pública nas ruínas da Fábrica de Cimento de Perus“, apresenta outra forma pública de preservação: aquela promovida pelo movimento social Comunidade Cultural Quilombaque. Por meio da coleta de testemunhos, o autor reconstrói narrativas – ou como prefere, contranarrativas – que resgatam a memória do lugar, mais especificamente as relativas à greve dos Queixadas, desencadeada no início dos anos 1960, e que, atualmente, serve de inspiração para que o movimento Quilombaque, ao lado dos moradores locais, reivindique o espaço da fábrica para um centro cultural.
No texto “Patrimônio industrial, identidade e memória: o caso do Vale do Ruhr“, Rafael Rezende busca contrapor duas formas possíveis de apropriação simbólica do que foi a região industrial do Vale do Ruhr, antigo território carbonífero da Alemanha e hoje integrante da Rota do Patrimônio Industrial. De um lado, o autor chama a atenção para o perigo de que a preservação idealize o passado de forma nostálgica e conservadora, pois, afinal, está-se falando de uma indústria de minério, poluente e de formas de trabalho extremamente precárias e exploradoras. Mas, de outro, ressalta a sua outra face, em que se expressa o orgulho da população local em relação a esse mesmo trabalho, que conduziu à mobilização da sociedade civil em defesa da revitalização de uma região cuja economia em declínio já não podia mais ser revertida.
O mesmo território é analisado por Gerardo Silva e Karsten Zimmermann em “Patrimônio industrial e desenvolvimento do turismo na metrópole do Ruhr“, onde abordam a experiência de valorização cultural e ambiental relacionada ao turismo. O enfoque dos autores é a mudança dessa área voltada à produção de carvão e aço e que agora tem se notabilizado pela sua vocação turística. Segundo eles, esse redirecionamento só foi possível pelo empenho do poder público, em todos os níveis. O governo federal, segundo os autores, foi responsável pela transformação produtiva da região, bem como pela sua recuperação ambiental, essencial em se tratando de uma região de exploração de minério de grande impacto ecológico.
Em direção contrária, segue o destino dado aos remanescentes industriais do subúrbio do Rio de Janeiro, onde um pouco mais da metade das indústrias estabelecidas aí originalmente se encontra inativa ou reconvertida para outros usos, conforme demonstra o artigo de Maria Paula Albernaz, “Remanescentes industriais suburbanos: potência transformadora do legado desenvolvimentista latino-americano“. O poder público, no entanto, é responsável por uma pequena parcela dessas reconversões; destas, 75% couberam à iniciativa privada, com predominância de investimento do capital imobiliário (cerca de 40%), voltados a condomínios residenciais e shopping centers.
A pesquisadora Silvia Borges Corrêa, em “Refuncionalização do remanescente industrial na cidade do Rio de Janeiro“, também pretende enfrentar esse desafio para a cidade do Rio de Janeiro. A autora realizou mapeamento em fontes secundárias, bibliográfica e documental, chegando a 56 remanescentes industriais de grande e médio portes presentes na paisagem da capital fluminense. Em relação à refuncionalização, os dados divergem parcialmente daqueles obtidos por Albernaz para o subúrbio carioca. Se aqui há predomínio de condomínios residenciais e shopping centers, no levantamento de Corrêa predominam os usos voltados à cultura e à economia criativa, ainda que os shopping centers venham logo em seguida.
Em seu artigo, “Uma fábrica para unicórnios: refuncionalização contínua e flexível na era digital de Lisboa“, João Felipe Pereira Brito analisa a implantação do Hub Criativo Beato (HCB), infraestrutura voltada à inovação digital da cidade de Lisboa, em um processo de refuncionalização contínua e flexível de um antigo complexo industrial militar. A partir desse caso particular, Brito contrapõe a cidade ágil dos fluxos, da economia digital, à cidade de longa duração da atividade industrial.
O último texto do dossiê, “Campo marrom industrial à luz da relação centro-periferia: Marabá-PA“, de Mateus Teixeira de Souza, trata da desativação recente da siderurgia no Distrito Industrial de Marabá (DIM), vinculada à cadeia de exploração de minério de ferro na Província Mineral de Carajás (Pará). Tendo se instalado no período desenvolvimentista e vivenciado diferentes crises econômicas, a instalação foi recentemente desativada, deixando em seu rastro o que o autor nomeia de “campo marrom”: danos socioambientais; economia municipal e regional deprimidas; impacto nas relações sociais e desmobilização da classe trabalhadora; e repercussões urbanas, sobretudo com a migração da população pobre e desempregada para as cidades do entorno de Marabá.
Na última seção, estão sete textos complementares ao dossiê. Não contemplam seu tema central – desindustrialização e refuncionalização do patrimônio industrial –, mas abordam questões relativas ao desenvolvimento atual de muitas cidades que, por vezes, dizem respeito à sua reapropriação coletiva, incluindo seu patrimônio.
No texto “Lendo atributos do espaço urbano: uma metodologia possível para o patrimônio urbano“, Adriana Fabre Dias e Sonia Afonso aplicam metodologia para qualificar o desenho urbano de áreas públicas. No exercício feito a partir da cidade de Laguna (SC), acabam por evidenciar que o estatuto patrimonial tira áreas urbanas do circuito especulativo, já que o tombamento de sua área central fez com que os novos investimentos imobiliários rumassem à leste da cidade; ao mesmo tempo demonstram que é por meio do uso social dos espaços urbanos que se garante sua apropriação, para além de um reconhecimento institucional das instâncias patrimoniais.
Buscando compreender em que medida o patrimônio cultural vem sendo integrado às políticas de ordenamento urbano, Eleonora Bahr Pessôa, Mariluci Neis Carelli e Dione da Rocha Bandeira fazem, em seu artigo intitulado “Patrimônio cultural, plano diretor e o direito à cidade no Brasil: estado da arte“, um levantamento da literatura que o relaciona ao Plano Diretor (PD) e ao direito à cidade, concluindo que a coincidência dessa articulação é mínima.
Ainda sobre os limites e as possibilidades do planejamento e da ação social no cumprimento da função social da cidade, o texto de Joana Martins, “Cidade, participação e cultura política: jogos e outras formas de representação e engajamento“, aborda participação e cultura política. O artigo discute recursos possíveis para ampliar a participação política em meio à crise de representação identificada, tendo em vista que, muitas vezes, a participação social no planejamento de cidades é direcionada para a obtenção de consensos para projetos que nem sempre correspondem às demandas sociais.
Já o texto de Débora Mendonça Monteiro Machado, Amarilis Lucia Casteli Figueiredo Gallardo e Cláudia Terezinha Kniess, “A dimensão ambiental em planos diretores: experiências internacionais de avaliação ambiental estratégica“, avalia a aplicação da Avaliação Ambiental estratégica em Planos Diretores (PDs) de cidades europeias (dada a ausência de casos nacionais para estudo), a internalização da variável ambiental indica políticas intersetoriais urbanas em que estão contempladas preservação, salvaguarda e valorização do patrimônio cultural, bem como seu potencial para integração de diversos grupos culturais à promoção turística de sua reabilitação.
Abordando os dilemas espaciais nas áreas de estações de transporte, Yara Baiardi, Angélica Benatti Alvim e Jorg Schröder apresentam o artigo “Nó e Lugar: os dilemas espaciais no entorno das Estações de Transportes“. Os autores identificam os nós de transporte urbano também como catalisadores de renovação urbana, se capazes de superar o caráter funcionalista, articulando-se às dinâmicas territoriais, integrando-se e favorecendo a lógica do lugar, categoria privilegiada no texto de Baiardi, Alvim e Schröder.
No texto “Smart cities: formulações teóricas e aproximações empíricas no cenário nacional e internacional“, Wesley Morais da Silva, Mônica Luiza Sarabia e Suely Maria Ribeiro Leal observam a retórica apolítica presente nesse modelo de cidade concebido via “planejamento tecnocrático imperativo”, pois que mobilizado mais pelos dados tecnológicos do que pelos problemas sociais, levando ao questionamento sobre para quem, como e por quem os dados gerados pelas tecnologias implantadas nas smart cities estão sendo produzidos.
Fechando este número dos Cadernos Metrópole, o texto “Produção de territórios de resistência urbana amazônica: análise de Belém, Pará” aborda a produção de territórios de resistência urbana amazônica. Escrito por André Felipe dos Santos Vasconcelos, o artigo analisa os ativismos urbanos, isto é, as ações de resistência engendradas por movimentos sociais contra as desigualdades socioespaciais e pelo direito à cidade na capital paraense, com base na interpretação socioespacial de suas narrativas, táticas e estratégias nos anos recentes.
A Revista Cadernos Metrópole surgiu em 1999 como um dos principais produtos do INCT Observatório das Metrópoles e tem como principal objetivo difundir os resultados da análise comparativa entre as metrópoles brasileiras. Na última avaliação Qualis Periódicos (2017-2020) da CAPES, recebeu classificação A1. A revista é produzida em parceria com a EDUC (Editora da PUC-SP). Conheça a história do nosso periódico nesse post da Scielo (clique aqui).