Com o tema “Geografia do Ressentimento”, a Revista Cadernos Metrópole n. 51 apresenta textos que buscam utilizar o conceito de ressentimento político para entender as espaço-temporalidades das percepções e práticas políticas dos cidadãos.
Organizado por João Ferrão, professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o dossiê traz cinco artigos selecionados através da chamada temática que complementam-se pelo modo como abordam, do ponto de vista teórico e metodológico, o tema proposto para debate. Segundo Ferrão, não existe um perfil único ou sequer prevalecente de “eleitor ressentido”, mas os resultados obtidos nos trabalhos parecem apontar “mais para uma geografia dos que se sentem ameaçados do que para uma geografia dos que se sentem abandonados”.
A atual edição inclui, ainda, onze textos complementares. Para o organizador, o tema do dossiê e a convergência de resultados entre os artigos complementares demonstram um espaço de pesquisa por explorar baseado em estudos comparativos de âmbito tanto nacional como internacional.
O texto que abre a edição, “O ressentimento do eleitor natalense nas eleições presidenciais de 2018”, busca compreender o perfil do eleitor ressentido com a política brasileira na cidade do Natal/RN, a partir dos resultados do último pleito eleitoral e relacionando-os com alguns aspectos da realidade social. O artigo de Lindijane Bento Almeida, Terezinha Albuquerque Barros e Jaylan Ferreira Macedo conclui que o ressentimento não se localiza apenas nos lugares excluídos da cidade e que não se associa a uma classe ou a um grupo econômico específico.
Em “A geografia da direita nacionalista em Portugal: contornos de um processo emergente”, Paulo Miguel Fernandes Madeira, Katielle Susane do Nascimento Silva e Jorge Silva Macaísta Malheiros analisam os resultados eleitorais do partido Chega nas eleições legislativas de 2019. Os autores destacam que o voto neste partido de extrema direita apresenta uma forte correlação com a percentagem de população estrangeira e, sobretudo, cigana, e ainda alguma relação com variáveis ligadas à falta de dinamismo econômico.
No artigo “The hated city, from transcendence to immanence”, Jacques Lévy salienta as linhas de continuidade e descontinuidade de atitudes antiurbanas ao longo do tempo, desde a Antiguidade (alegoria antiurbana do mito da Torre de Babel) aos discursos antiurbanos atuais, uns de inspiração religiosa, outros associados ao que designa por ideologias libertárias e neonaturalistas. Segundo Lévy, a geografia dos descontentes corresponde, então, ao descontentamento com uma certa geografia: a afirmação da cidade, vista como um erro, um pecado, um ato de soberba dos homens em relação às prerrogativas de Deus.
Eliana Rosa de Queiroz Barbosa e Cintua Elisa de Castro Marino, em “Minhocão: affective re-territorializations on contemporary urban disputes”, salientam a crescente participação de grupos conservadores em processos de debate público como consequência da progressiva descrença nos sistemas tradicionais da democracia representativa, mobilizando o medo e o descontentamento para atingir os seus objetivos. Recorrendo ao conceito de “reterritorialização afetiva”, as autoras salientam o modo como uma área que era anteriormente apropriada informalmente pelos residentes da cidade passou a ser alvo de uma disputa afetiva entre ideologias progressistas e conservadoras.
Paulo Gracino Junior, Mayra Goulart e Paula Frias, no texto “Os humilhados serão exaltados: ressentimento e adesão evangélica ao bolsonarismo”, analisam o discurso religioso como fator privilegiado para os candidatos conquistarem a adesão dos eleitores. Os autores, recorrendo a uma abordagem ideacional do populismo, partem da hipótese de que “o ressentimento é o afeto que catalisa os vínculos de identificação entre Bolsonaro e seu eleitorado, sobremaneira, o evangélico”.
O texto de Carlos Vasconcelos Rocha, com o título “Em torno da questão da “Conexão Eleitoral”: geografia do voto e produção legislativa de deputados estaduais votados na Região Metropolitana de Belo Horizonte”, incide sobre a geografia eleitoral, mas agora na ótica do perfil dos parlamentares e não dos eleitores. O artigo explora as relações existentes entre a geografia do voto e as características da representação legislativa numa região metropolitana. O autor parte da hipótese de que as regiões metropolitanas seriam sub-representadas nos legislativos estaduais, dado o alto grau de competição eleitoral alcançado nesses espaços urbanos em relação ao restante
dos municípios.
Renato Alves de Oliveira e William Antonio Borges abordam a questão metropolitana a partir dos interesses subjacentes ao processo de criação de uma nova região metropolitana. Em “Os interesses políticos no processo de criação da Região Metropolitana de Umuarama, PR”, esses autores desvendam os motivos que levaram à instituição de uma RM cujas características não atendem aos requisitos do Estatuto da Metrópole. A decisão tomada não se baseou em critérios técnicos e conceituais e não procurou dar resposta a problemas públicos a partir de uma agenda sistêmica.
Em “Direito à Cidade e esfera pública: entre a participação política e a renovação jurídico-urbanista”, Arthur Hirata Prist e Maria Paula Dallari Bucci defendem a hipótese de que o Direito à Cidade não pode ser reduzido a uma categoria jurídica estática, devendo evoluir no sentido de uma ordem jurídico-urbanística assente em dois princípios: a função socioambiental da propriedade e da cidade e a gestão democrática da cidade. Esses princípios constituem os fundamentos de um novo paradigma conceitual sobre política urbana.
A centralidade da tríade história, cultura e identidade e a cidade do Rio de Janeiro não são os únicos elementos comuns aos artigos de Lucas Eduardo Lima Dantas (“População de rua e cidade: uma análise da ressignificação dos espaços urbanos”) e de Thaisa Cristina Comelli (“Lutando por novas narrativas em favelas e periferias: cidadanias complexas em meio a ativismos materiais e culturais”). Embora os textos incidam sobre grupos distintos – população em situação de rua e favelados – e adotem abordagens conceptuais igualmente diferentes, há semelhanças nas conclusões dos dois artigos: o primeiro autor refere que, ao habitar o espaço público em meio urbano, a população de rua não somente ressignifica o espaço, como também usa esse mesmo espaço para se ressignificar a si própria; a segunda autora salienta que, não sendo a identidade de favelado ou favelada uma categoria estática e perene, cada pessoa nessas condições é-o em seus próprios termos e, por isso, é capaz de produzir novas narrativas sobre seu território de origem e moradia.
É também sobre práticas insurgentes de produção e gestão do espaço urbano e de novos ativismos que falam Clara Bois e Lígia Milagres, no texto “Ação direta, luta institucional, construção democrática: aprendendo com os movimentos de sem-teto”, ainda que a partir de um ponto de vista diferente. As autoras reconhecem que a ascensão de projetos políticos autoritários cria novos desafios aos movimentos sociais no que se refere à necessidade de articular práticas de ação direta, sem vínculo com instâncias do Estado, e práticas de luta institucional, desenvolvidas no âmbito de espaços de participação legitimados pelo Estado.
Tendo como referência o mapeamento da estrutura de classes sociais no Brasil realizado por Santos (2002), a partir do contributo teórico de Erik Olin Wright, Marconi Gomes da Silva, no artigo “Posições e segmentos de classes sociais na Região Metropolitana de Natal na década de 1990”, apresenta os resultados da análise desenvolvida para essa Região Metropolitana. O autor considera que a segmentação no mercado de trabalho é um proxy das posições e segmentos de classes sociais.
Carolina Akemi Martins Morita apresenta o artigo “Metrópole e forma urbana: entre a dialética negativa e a utopia”. O texto parte da discussão sobre a individualidade moderna com o objetivo de compreender a constituição da psicologia da sociedade de massas, baseada nos valores da produtividade e da utilidade, como componente imanente à metrópole: esta é o local por excelência das relações formalizadas e de massas, pelo que o princípio do indivíduo moderno não é sequer compreensível fora da metrópole.
No artigo “A falência seletiva do Plano Diretor de Fortaleza”, Marcelo Mota Capasso e Renato Pequeno reconstituem o modo como esse plano (PDP), orientado por uma agenda progressista e aprovado em 2009, se foi desviando da sua filosofia inicial durante o período de implementação. Segundo os autores, o principal fator de falência seletiva do PDP durante a sua implementação foram as alterações no zoneamento proposto (introdução de parâmetros de ocupação do solo mais permissivos) através de emendas e outras fórmulas legais a favor do mercado imobiliário (verticalização, especulação).
É também um caso de desvirtuamento de um instrumento por captura por interesses econômicos que é apresentado no artigo “Operações Urbanas Consorciadas em Balneário Camboriú: o desvirtuamento do solo criado”, de Marina Toneli Siqueira e Carolina Silva e Lima Schleder. Nesse caso, não se trata da falência seletiva de um plano, mas sim de uma figura: as Operações Urbanas Consorciadas (OUCs).
Por último, Camila Garcia Fernandes de Souza Margem e Neliton Marques Silva, em “Agricultura urbana, governança territorial e planejamento urbano em área protegida de Manaus – Brasil”, abordam o tema do abastecimento de gêneros alimentícios para a população da localidade de Campos Sales numa ótica que procura conciliar segurança e soberania alimentar, objetivos socioambientais e novas formas de governança territorial. A finalidade do estudo é avaliar a viabilidade de implementação da agricultura urbana em terrenos ociosos localizados numa Área de Proteção Ambiental como instrumento de governança entre os diferentes atores que promovem a gestão pública e o disciplinamento do uso do solo.
A Revista Cadernos Metrópole surgiu em 1999 como um dos principais produtos do Observatório das Metrópoles e tem como principal objetivo difundir os resultados da análise comparativa entre as metrópoles brasileiras. A revista é produzida em parceria com a EDUC (Editora da PUC-SP). Conheça a história do nosso periódico nesse post da Scielo (clique aqui).