Em entrevista para o Instituto Humanitas Unisinos (IHU), Marcelo Ribeiro e Andre Salata falaram sobre a sétima edição do “Boletim Desigualdade nas Metrópoles”, que destaca a queda na média de rendimentos dos 10% mais ricos no quarto trimestre de 2021, alcançando o pior nível de toda a série histórica. Ao mesmo tempo, a renda dos 40% mais pobres subiu para R$239 no mesmo período. Nesta conjuntura, a desigualdade, mensurada através do coeficiente de Gini, vem apresentando tendência de melhora, indicando uma reaproximação dos índices de desigualdade aos valores pré-pandêmicos.
Com o título “Recuperação de renda dos mais pobres evidencia fosso das desigualdades. Entrevista especial com Marcelo Ribeiro e André Salata”, a entrevista foi realizada por João Vitor Santos e destacou que a recuperação nas perdas dos mais pobres, diante do arrefecimento da pandemia no Brasil, não configura uma realidade de redução das desigualdades:
“(…) é importante que não nos iludamos, pois, em resumo, a situação chegou a ser tão dramática que é difícil falar em melhora. Talvez, no máximo, estejamos num quadro ‘menos pior’”, destaca a matéria.
O Boletim Desigualdade nas Metrópoles é resultado de uma parceria entre o Observatório das Metrópoles, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e o Observatório da Dívida Social na América Latina (RedODSAL). O estudo é coordenado por Marcelo Ribeiro, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ, e Andre Salata, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, ambos pesquisadores da rede.
A seguir, confira alguns trechos da entrevista:
IHU – Segundo o mais novo Boletim do Observatório das Metrópoles, os mais pobres recuperaram renda e os mais ricos perderam. Mas qual é o efeito dessa recuperação, pois, ao que parece, ela não tem sido sentida nas ruas?
Andre Salata – É importante deixar claro que a renda dos mais pobres está se recuperando após um enorme tombo sofrido logo no início da pandemia. Na média das nossas metrópoles, os 40% mais pobres perderam aproximadamente um terço de seus rendimentos do trabalho entre o primeiro e o terceiro trimestres de 2020, ou seja, logo que os primeiros efeitos da crise provocada pela Covid-19 se fizeram sentir no país.
Desde então, com a vacinação e a retomada das atividades, a renda desse estrato inferior vem se recuperando, mas a recuperação é lenta e ainda insuficiente para alcançar o patamar do período anterior à pandemia. Se considerarmos o quarto trimestre de 2019, a renda – domiciliar per capita do trabalho – para este grupo era de R$ 278, e agora ela chegou em R$ 239. Ou seja, a queda de rendimentos foi gigantesca, e a recuperação é ainda parcial. Por isso ainda não sentimos seus efeitos no dia a dia.
IHU – Qual é a natureza dessa renda dos mais pobres que sofreu recuperação e como compreendem os movimentos de recuperação?
Marcelo Ribeiro – Parte significativa do trabalho das pessoas que ocupam o estrato dos 40% mais pobres caracteriza-se por atividades informais e precárias. São atividades de trabalho que as pessoas conseguem realizar por não haver grandes exigências em termos de qualificação e que não dependem, necessariamente, da contratação de algum empregador, não tendo que se submeter a um processo de seleção.
Essas atividades de natureza informal e precárias são muito comuns nas metrópoles brasileiras e tendem a crescer sua participação, especialmente em contexto de crise econômica, quando o mercado formal de trabalho não tem contrato ou está reduzindo a sua mão de obra. Tais atividades se apresentam, portanto, como alternativa de sobrevivência para muitos brasileiros. Apesar de se apresentarem como alternativa, por serem atividades que não têm barreiras à entrada e, portanto, há grande competição entre aqueles que delas participam, podemos compreender que se trata de atividades de trabalho com níveis de remuneração muito baixos.
Podemos exemplificar pelas atividades de trabalho tradicionais existentes nas nossas metrópoles, como o comércio ambulante, ou pelas novas atividades informais e precárias que emergiram nos últimos tempos ligadas às plataformas tecnológicas (aplicativos), como é o caso de entregadores de mercadorias de todo tipo ou dos motoristas do Uber.
IHU – Outro dado que chama atenção é o de milhares de famílias cujos rendimentos do trabalho, já insuficientes, estão há dois anos enfrentando perdas. Como mensurar o impacto disso na vida das pessoas? De que forma podemos explicar essas perdas, num quadro em que os mais pobres parecem ter tido recuperação nos rendimentos?
Andre Salata – Há várias razões para a queda de renda entre os mais pobres ter sido tão acentuada. Eu destacaria três.
1) Há uma diferença grande entre os estratos em termos de qualificação da mão de obra, com concentração de pessoas menos qualificadas mais próximo da base da pirâmide. Em um momento de crise, como foi a pandemia, os menos qualificados ficam em situação bastante vulnerável, pois são mais facilmente substituídos;
2) Segundo, há também uma concentração muito grande de pessoas trabalhando no setor informal nesses estratos, e que sentem imediatamente os efeitos da redução das atividades em seus rendimentos. Como não contam com qualquer proteção, a queda de renda do trabalho é instantânea;
3) E, terceiro, há também ali uma concentração de ocupações que não permitem a transferência para o modo remoto, como ocorre nas ocupações de classe média. E o resultado desses três fatores é o aumento acentuado das desigualdades que a gente presenciou no primeiro ano de pandemia.
IHU – Pelo que vocês têm defendido, essa recuperação de renda dos mais pobres, embora tímida, está relacionada com o arrefecimento da pandemia no Brasil. É possível afirmar que quanto mais controlada a Covid-19, maiores serão as recuperações de perdas?
Marcelo Ribeiro – Apesar de não termos realizado análise de causalidade entre esses fenômenos – porque isso depende de controlar diversas variáveis –, pelas observações que nós temos apresentado a partir dos dados que divulgamos, constatamos que, na medida em que ocorreu o avanço da vacinação na população brasileira, tornou-se possível a volta para o mercado de trabalho de muitos trabalhadores que estavam parados durante a fase mais aguda da pandemia, e isso contribuiu para o aumento da renda principalmente entre as pessoas que estão no estrato dos 40% mais pobres.
Como hoje o Brasil possui uma cobertura vacinal já elevada, podemos considerar que a contribuição da vacinação para a retomada da atividade econômica já aconteceu. Isso significa que o processo de recuperação do nível de renda ou mesmo de sua elevação para patamares superiores depende, principalmente, do crescimento da economia de modo sustentável e, também, do arrefecimento do processo inflacionário que temos observado atualmente, tendo em vista que o aumento da inflação tem provocado perda do poder de compra dos rendimentos nominais.
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