No momento de retração democrática que o Brasil vive, fica cada vez mais claro que a resistência popular depende da mobilização e da ação nas ruas, uma vez que os aparelhos do Estado estão voltados à reprodução da dominação. No livro “Protesto e Democracia: ocupações urbanas e luta pelo direito à cidade”, o pesquisador Thiago Aparecido Trindade oferece uma relevante contribuição para esse debate ao adotar uma perspectiva ousada: a valorização das formas de participação popular mais conflitivas e extrainstitucionais, em que o enfrentamento com os poderes públicos tem pelo menos tanta importância quanto a negociação e o diálogo. Para isso, Trindade revisita os debates sobre participação política e democracia e, ao mesmo tempo, investiga a dinâmica de um movimento que jamais abriu mão de formas de ação disruptiva, o movimento pela moradia da cidade de São Paulo.
Fruto de uma tese de doutorado defendida em 2014 na Unicamp, orientada por Luciana Ferreira Tatagiba, o livro “Protesto e Democracia: ocupações urbanas e luta pelo direito à cidade” tem como objetivo principal problematizar o debate sobre a participação política e a construção da democracia no Brasil. Tendo como referência empírica as ocupações de imóveis ociosos no centro da cidade de São Paulo, ações realizadas pelo movimento de moradia da capital paulista, a proposta consiste em ampliar o escopo de análise referente ao tema da participação na literatura nacional.
Segundo Thiago Aparecido Trindade, este debate ficou restrito à dimensão institucional da participação, desconsiderando outras formas de atuação política que, a despeito de se caracterizarem por sua extra institucionalidade, também podem ser entendidas como formas de participação política. “O argumento central do trabalho é que o deslocamento analítico proposto — dos espaços institucionais em direção ao espaço “das ruas” — oferece vantagens analíticas importantes no debate teórico sobre a democracia, uma vez que nos possibilita lançar luz sobre temas e conflitos cruciais para o entendimento da disputa pela construção democrática e identificar com mais clareza os diferentes projetos políticos em disputa”, aponta o autor.
O livro mostra que a sociedade brasileira, no período pós-autoritário, foi capaz de avançar significativamente na construção de espaços participativos institucionais dedicados ao processo de formulação, implementação e execução das políticas públicas nas mais diferentes áreas. Além disso, aponta Trindade existe atualmente um significativo consenso construído em torno do ideário participativo: as mais diferentes forças políticas estão de acordo com relação à legitimidade da participação popular na administração pública. “No entanto, este consenso se desfaz nitidamente quando se trata de reconhecer como legítimas outras formas de atuação política, como é o caso das ocupações de terras e imóveis ociosos promovidas pelos movimentos sociais do campo e da cidade”, argumenta.
Ao longo do texto, o autor procura esclarecer que a controvérsia criada pelas ocupações na opinião pública está diretamente relacionada ao conflito que estas acionam: em última análise, as ocupações contestam o direito de propriedade irrestrito das classes economicamente dominantes da sociedade, ainda que não questionem o direito de propriedade em si mesmo.
Para referenciar a discussão empiricamente, o pesquisador se debruçou sobre as ocupações de imóveis ociosos promovidas pelo movimento de moradia no centro da capital paulista, demonstrando que estas ações também acionam um conflito específico: o questionamento do modelo hegemônico de urbanização, que historicamente empurrou as classes mais pobres para as áreas periféricas dos grandes centros urbanos.
“Trata-se de uma luta, portanto, pelo direito de morar nas áreas centrais, o que classifico como uma luta pelo direito à cidade. O trabalho demonstra também que estas ocupações, iniciadas em 1997, trouxeram importantes conquistas para o movimento em questão, tanto do ponto de vista material quanto simbólico. Aponto ainda o debate jurídico relacionado à legitimidade e à legalidade das ocupações. Inclusive dentro do poder judiciário, podemos identificar um conflito entre diferentes concepções relacionadas à legitimidade destas ações”, descreve Trindade.
ESTRUTURA DO LIVRO
“Protesto e Democracia: ocupações urbanas e luta pelo direito à cidade” está organizado em quatro capítulos, além desta introdução e das considerações finais. No Capítulo 1: Reconstruindo o debate sobre a construção democrática: do pensamento elitista ao ativismo extrainstitucional, Thiago Aparecido Trindade procura reconstruir os aspectos gerais do debate acadêmico sobre a teoria democrática, desde o elitismo democrático até o período mais recente, procurado compreender como a trajetória desse debate contribuiu para o amadurecimento da agenda de pesquisa sobre democracia e participação na América Latina.
“A despeito dos avanços teóricos, aponto que essa agenda de pesquisa não tem dedicado a atenção necessária a outras formas de participação política que se desenvolvem exteriormente aos espaços institucionais, como é o caso das ocupações de imóveis ociosos. O deslocamento analítico que proponho (dos espaços institucionais em direção às ações de mobilização nas ruas) pode auxiliar a identificar com mais clareza os atores e os projetos políticos envolvidos na disputa pela construção democrática, ou seja, lançar luz sobre os conflitos existentes, muitas vezes nublados e/ou obscurecidos pelo amplo consenso que se construiu em torno da questão da participação institucional”, explica o autor.
No Capítulo 2: Urbanização, segregação e direito à cidade: a luta pela apropriação do espaço urbano, o trabalho se foca na compreensão do contexto do conflito no qual o movimento de moradia está inserido. Discutindo os conceitos de segregação e de direito à cidade, apresenta como o crescimento urbano da cidade de São Paulo criou as condições objetivas para a luta pela moradia popular nas áreas centrais na medida em que a população mais pobre foi, historicamente, mantida às margens da cidade, isto é, afastada de suas zonas urbanas principais. “Insistimos em um ponto muito relevante: o processo de elitização das localizações mais centrais na cidade e a consequente expulsão da população mais pobre em direção às áreas periféricas, seja por meio de remoções forçadas ou por meio da elevação constante do custo de vida, é uma característica intrínseca ao desenvolvimento da cidade capitalista, onde o solo urbano passa a ser tratado como mercadoria”, argumenta Trindade.
Neste tópico, o pesquisador mostra que desde as reformas urbanísticas em Paris e em outras cidades europeias em meados do século XIX, até as obras para a realização de megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas nos dias atuais, o que se tem visto é a repetição de um padrão de segregação urbana que resulta de uma luta entre as diferentes classes sociais pelas melhores localizações na cidade. Em relação ao caso de São Paulo especificamente, o capítulo apresenta uma série de dados empíricos para uma caracterização mais apropriada das particularidades de seu processo de urbanização, e de que forma esse processo determinou a atual configuração da cidade em termos da distribuição das classes sociais no território urbano.
Já o Capítulo 3: O centro de São Paulo em disputa: as ocupações de imóveis ociosos enquanto estratégia de luta pela moradia digna tem como objetivo principal analisar de forma mais detida as ocupações de imóveis ociosos no centro da cidade de São Paulo, buscando recuperar a história da luta pela moradia nessa área central, demonstrando com mais clareza em qual contexto se iniciam as ocupações de imóveis promovidas pelo movimento de moradia, bem como as razões que levam o movimento a se posicionar de tal maneira. Thiago Aparecido Trindade apresenta aqui dados empíricos e faz a análise de algumas das entrevistas realizadas, pretendendo esclarecer a importância que as ocupações tiveram no sentido de conferir visibilidade às demandas do movimento e apontar para importantes conquistas nesse sentido. Segundo o autor, além das unidades habitacionais construídas pelo poder público na área central, o movimento de moradia foi capaz de problematizar a agenda política da cidade em relação ao debate sobre o centro, tornando-se, atualmente, um ator indispensável nesse debate.
“Neste capítulo procurei discutir também o significado político e a relevância histórica das ocupações no centro. Com base na discussão travada no capítulo anterior sobre a urbanização de São Paulo, aponto que as ocupações de imóveis ociosos no centro da cidade constituem um marco na história da luta pela habitação popular na cidade, já que, pela primeira vez, as classes populares buscam ‘retornar’ a área central de forma politicamente organizada, realizando ações coletivas frequentes que, além de articuladas, estão embasadas por uma nova pauta política. Nesse sentido, a grande relevância histórica dessa forma de ação em particular é que ela é capaz de questionar aberta e politicamente o modelo de urbanização dominante na sociedade brasileira, que acarretou em inúmeros prejuízos para a população mais empobrecida”, defende.
Por fim, no Capítulo 4: Desfazendo o consenso participativo: o conflito instaurado pelas ocupações é desenvolvido o argumento central desta tese: a discussão da relação entre a ação institucional e a ação direta, tendo como referência empírica as ocupações.
“O argumentar essencial aqui é que obtemos vantagens analíticas importantes ao ampliar a leitura sobre a participação política no sentido de incluir formas extra institucionais de mobilização, como é o caso das ocupações. Esse olhar analítico nos possibilita iluminar com mais precisão os conflitos que estruturam o terreno da luta pela democracia e identificar mais claramente os diferentes projetos políticos em disputa. Nesse capítulo também apresento o debate sobre a questão da legitimidade e da legalidade das ocupações, e uma breve análise a estratégia discursiva elaborada pelo movimento de moradia recentemente. Procuro enfatizar que, atualmente, em função dos avanços no campo jurídico obtido pela luta dos próprios movimentos sociais, as ocupações de terras e imóveis, no campo e na cidade, além de legítimas, também podem ser consideradas legais do ponto de vista jurídico. E, como também, os próprios movimentos sociais tem se esforçado em construir um discurso que aponte nessa direção”.
Para maiores informações sobre o livro “Protesto e Democracia: ocupações urbanas e luta pelo direito à cidade”, acesse o site da Paco Editorial.