Projeto Porto Maravilha: discursos que (re)criam a cidade
O Projeto do Porto Maravilha no Rio de Janeiro apresenta-se como fenômeno ímpar de transformação urbanística para problematizar as novas formas de atuação do Estado, de ação da sociedade civil, ferramentas de participação e ideais políticos a partir dos discursos. O fenômeno descrito é o de tomada de espaços para neles instaurar uma nova lógica. Neste processo o que é tradicional torna-se turístico, o que é cultura torna-se lazer irrefletido, o que é consciência crítica torna-se consumo, o que é social torna-se visual, as exceções tornam-se regra, o urbanismo torna-se negócio, e no ápice das transformações, o que é público torna-se privado.
A dissertação “Do Porto ao Porto Maravilha: considerações sobre os discursos que (re)criam a cidade”, da pesquisadora Priscilla Oliveira Xavier, é mais um resultado da Rede de Pesquisa INCT Observatório das Metrópoles. O trabalho tem como finalidade problematizar os processos de financeirização da cidade, analisando a dimensão dos discursos na esfera política, tomando como objeto o Projeto Porto Maravilha. Na análise sobressaem as mudanças na dinâmica da economia mundial, a reformulação na atuação do Estado e a renovação do protagonismo da sociedade civil. O que se expressa é uma leitura densa e articulada dos discursos e práticas que, na disputa política, estão obtendo êxito na produção da cidade.
Segundo Priscilla de Oliveira Xavier, mudanças na dinâmica da economia mundial, reformulação da atuação do Estado e a renovação do protagonismo da sociedade civil formam um tripé para o Projeto Porto Maravilha enquanto objeto de análise da dinâmica política na produção e gestão urbana, na qual sobressaem os discursos.
“E com o propósito de captar os discursos relativos a esse projeto algumas formas de comunicação e eventos foram privilegiados ao longo do ano de 2011. Além dos conteúdos impressos, digitais e audiovisuais produzidos pela prefeitura do Rio de Janeiro, foram acompanhadas as reuniões comunitárias no Instituto José Bonifácio, que deram origem ao Fórum Comunitário do Porto; um seminário desenvolvido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e PROURB/UFRJ; uma reunião promovida pela Companhia de Desenvolvimento Urbano na Região do Porto (CDURP); uma passeata pelas ruas da região portuária no dia do trabalhador; uma reunião organizada por membros do Fórum Comunitário do Porto no Barracão da Escola de Samba Pimpolhos da Grande Rio; e uma audiência pública para fomentar um diálogo entre os moradores do Morro da Providência e os representantes do Estado, na qual foi composta uma comissão para mediação de conflitos”.
A metodologia empregada na pesquisa para tratar dos eventos foi a etnografia. O objetivo foi o de compor descrições densas, fazendo sobressair dimensões políticas e ideológicas dispersas que na dinâmica observada se encontram dispersos.
Saúde, Gamboa e Santo Cristo
De acordo com a pesquisadora, a primeira parte do trabalho apresenta a área de especial interesse urbanístico onde está sendo desenvolvido o Projeto Porto Maravilha. Descreve os bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo, valendo-se de suas estruturas mais remotas, destacando seus traços culturais, em uma escala temporal que acena as ações e intervenções que foram caracterizando esses bairros em relação à cidade. “A análise se inicia com uma espécie de passeio por esses bairros, mencionando os primeiros aterros no final do século XIX. Em seguida, trata das obras do prefeito Pereira Passos, modificando a aparência da cidade e introduzindo novos hábitos e sensibilidades, fazendo do urbano a expressão de um novo ideal político e econômico. Menciona alguns marcos regulatórios introduzidos no planejamento urbano, como o Plano Agache, o Plano Doxiadis e o Plano Urbanístico Básico (PUB)”, explica.
A pesquisadora acrescenta que as formas de produção e de vida na cidade do Rio de Janeiro potencializaram a região portuária como ponto estratégico para a questão da mobilidade. Assim sendo, em prol do setor viário a região foi duramente impactada no final da década de 1950, quando foi construído o Elevado da Perimetral. “Esta solução viária, ao longo da Avenida Rodrigues Alves, projetou uma vultuosa sombra, literal e metafórica, sobre os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, deixando-os abandonados, à margem dos investimentos públicos, fossem no sentido de aprimorar ou preservar seus equipamentos urbanos, fossem no sentido de resguardar o patrimônio arquitetônico e cultural ali localizados”.
Saindo do reconhecimento da região portuária o foco passa para as ferramentas legais construídas em acordo com a remodelação na forma de atuação do Estado, estabelecendo limitações na promoção do desenvolvimento urbano ao abrir caminhos para a atuação da iniciativa privada. Neste sentido, é feita a descrição genérica do instrumento político Operação Urbana Consorciada e, especificamente, a operação urbana cujo nome fantasia é Porto Maravilha.
Projeto Porto Maravilha
A Operação urbana Porto Maravilha trata-se de uma ação estratégica da Prefeitura do Rio de Janeiro, com apoio dos Governos Estadual e Federal, para a requalificação urbana, fomentando o desenvolvimento econômico da região portuária, bem como a criação de condições de trabalho, moradia, transporte cultura e lazer para a população local. Numa área de 5 milhões de m², prevê ações que incidem no setor viário, na estruturação de equipamentos urbanos, regulamentação de usos e densidades, no setor social e cultural. A responsabilidade pela execução das obras ficou a cargo do Consórcio Empresarial Porto Novo, selecionado por licitação, composto pelas empresas Odebrecht, OAS e a Carioca Engenharia.
Complementando a operação consorciada, ainda nos termos legais, há uma caracterização da empresa criada para gerir o projeto, a CDURP, e de um instrumento financeiro voltado para a geração de recursos a serem revertidos na operação, o CEPAC. A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro, CDURP, foi criada pela Lei Complementar 102 de 23 de Novembro de 2009. Trata-se de uma empresa de natureza mista, pública e privada, com a função de implementar e gerir a concessão de obras e serviços públicos na região. Já o CEPAC (Certificado de potencial adicional de construção) é o instrumento mais engenhoso e polêmico da vultosa operação consorciada direcionada à Região Portuária. Trata-se da comercialização da autorização de aumento do potencial construtivo, além do regulamentado para a região. São títulos mobiliários regulados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), negociados no mercado através de leilão. “Os valores arrecadados pela negociação das CEPACs são integralmente revertidos em benefício da própria região, sendo importante frisar que o grosso se destina para a execução das obras do projeto, como a demolição da Perimetral, e percentuais inferiores a 5% se destinam à área social e cultural”, explica Priscilla.
Discursos que recriam a cidade
“Nos discursos políticos estimulados pelo Projeto Porto Maravilha as formas simbólicas, a tradição, a história, a identidade e a cultura local tornam-se moeda. E como toda moeda, com dois lados. De um lado trata-se de um produto a ser captado e utilizado em favor da comercialização do local, um valor agregado ao movimento de financeirização com pretextos urbanísticos, ação esta descrita e problematizada por David Harvey como a produção de lugares para o consumo e lazer irrefletido. E do outro lado trata-se de um mecanismo de fortalecimento da identidade, elemento de coesão, estratégia de resistência e atuação política de atores que se identificam na relação com o local”, afirma Priscilla.
As descrições dos eventos políticos ao longo do ano de 2011 em torno do Projeto Porto Maravilha radiografaram uma trajetória que muito revela sobre as atuais práticas de participação política, bem como a problemática questão da cidadania. Nas primeiras reuniões o maior estímulo foi ter parte no projeto e reivindicar contrapartidas. Nas últimas o projeto seguia por si, e a população, imersa em conflitos, demandava atenção a casos de violações de seus direitos e expressavam o temor de serem removidos de suas moradias e afastados daquela área.
A dimensão dos discursos produzidos nas arenas políticas que tratam o projeto faz intuir ainda um processo paulatino de despolitização. Primeiramente por conta das ações do Estado que investem na individualidade, criando rivalidade, minando ações políticas mais expressivas. Segundo pela qualidade e quantidade de conteúdos dispersos a respeito do projeto, e os meios utilizados, de modo a desfavorecer os cidadãos na absorção dos conteúdos, decodificação, formação de opinião e atuação. Assim, o projeto avança em uma velocidade bastante superior a que um cidadão dele consiga dar conta.
“Articulando os discursos apresentados, detecta-se algo como uma crise de legitimidade do que se constitui como democracia. Há mudanças no direito, no poder de comunicação e na estruturação da esfera pública como instância para a participação. A participação, por sua vez, é o elemento de maior perversão no projeto, pois é tomada como fundamental para consagrar o ideal democrático, todavia, se efetiva em uma ação menos de quem toma parte, e mais de quem toma ciência”, explica a pesquisadora.
Última modificação em 19-12-2012 18:15:29