Luciano Fedozzi, pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre, em artigo para o site da Rede de Pesquisa “Democracia & Participação”, aborda as três décadas de participação em Porto Alegre e os projetos de lei que atacam Conselhos Municipais e aprofundam a desdemocratização.
O texto apresenta o contexto atual da trajetória da participação social na capital gaúcha. Segundo Fedozzi, “as evidências empíricas são robustas no sentido de indicar o processo de desdemocratização da gestão participativa da cidade de Porto Alegre“, e questiona:
- Como explicar esta guinada da capital da democracia participativa para um contexto de hegemonia do projeto ultraliberal e autoritário?
- Por quê justamente no Orçamento Participativo (OP) – a inovação mais relevante e festejada como referência mundial – a contestação e a resistência dos atores civis é a menor diante de sua descaracterização?
Confira o artigo completo:
Três décadas de participação em Porto Alegre: Projetos de Lei atacam Conselhos Municipais e aprofundam a desdemocratização
Luciano Fedozzi¹
O presente texto objetiva informar os leitores sobre alguns aspectos que constituem o Projeto de pesquisa “30 anos de democracia participativa em Porto Alegre: elementos para um balanço”. Projeto este que vem sendo desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Democracia Participativa, Esfera Pública e Cidades, ligado ao PPG Sociologia/UFRGS, com apoio de alguns pesquisadores e ativistas da capital gaúcha. É importante destacar que não se trata aqui de um texto redigido com o rigor pertinente a um trabalho científico. Trata-se apenas de um relato sintético que destaca sobretudo o contexto atual da trajetória da participação social em Porto Alegre.
Democratização/Desdemocratização
Não é intenção, como abordado acima, estabelecer aqui a discussão dos marcos teóricos da pesquisa em curso. Todavia, vale ressaltar que o pano de fundo teórico que a embasa está apoiado na adaptação da teoria da democracia de Charles Tilly. Tilly, um dos principais expoentes da perspectiva relacional, história e processual, propõe, em seu livro Democracia (2013), uma interpretação da questão democrática que supera a análise dos regimes políticos a partir da divisão tradicional entre democracia/autoritarismo. O autor estabelece – com quatro dimensões teóricas e pesquisa empírica comparada entre países – a análise dos processos de democratização e de desdemocratização. Esta abordagem permite avaliar não somente a existência ou não dos regimes democráticos, como é tradicional, mas os processos ou tendências que reforçam a democratização ou, ao contrário, indicam a transformação desdemocratizante dos regimes políticos. Estabelece-se, assim, uma graduação que parece pertinente à época contemporânea, marcada por processos de enfraquecimento das democracias liberais através de procedimentos legais no interior dos próprios regimes democráticos, situação essa que também se apresenta nas democracias consolidadas (caso dos EUA e alguns países europeus). A massificação das redes sociais e das novas TIC são meios fundamentais utilizados pela nova onda conservadora mundial que caracteriza a ascensão do populismo de direita. Este novo contexto histórico, segundo alguns analistas, estaria indicando, de forma inédita, a separação entre a democracia liberal e o capitalismo em sua fase neoliberal (Mounk, 2019).
Adota-se, assim, a adaptação da teoria da democratização/desdemocratização para analisar a trajetória de um processo local de participação, que se estende por três décadas, e que é formado por uma tríade de instituições participativas: O Orçamento Participativo; os Conselhos Municipais de políticas públicas e de direitos, e a participação no planejamento urbano da cidade, em especial (mas não somente) por meio do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA).
As evidências empíricas são robustas no sentido de indicar o processo de desdemocratização da gestão participativa da cidade de Porto Alegre nessas três arenas construídas desde a década de 1980, e que ganharam impulso durante nos anos 1990/2000. Não se pretende aqui abordar essas evidências empíricas por meio de metodologia acadêmica específica, algo que a pesquisa em curso vem realizando.
No caso do OP, referência maior da participação e prática que ganhou distinção internacional, os principais indicadores da desconstrução do modelo contra-hegemônico historicamente construído (Fedozzi, 2015a) demonstram que ocorreram transformações profundas, entre as quais pode-se destacar: crescente inefetividade das decisões e descompromisso da Administração Municipal com a participação, perda de poder decisório dos participantes, abrupta diminuição de recursos alocados para as demandas populares, fim do modelo redistributivo baseado em critérios objetivos de carência dos territórios, elitização política dos representantes, aumento da instransparência governamental e forte diminuição dos mecanismos de accountability social, mudanças nas regras do jogo da participação com burocratização do processo, forte instrumentalização partidária com retorno de práticas clientelistas (Rennó e Souza, 2012; Fedozzi, 2015a, 2015b; Abers, Brandão, King and Votto, 2019; Votto, 2019).
Estas características demonstram um gradativo processo onde o OP passou de um status político central no modo de governar para uma posição secundária na gestão pública. Pode-se afirmar, empiricamente, que hoje o OP representa um simulacro de participação. Entretanto, é provável que a decretação formal do seu fim não ocorra em razão do alto custo político internacional e local que qualquer governo terá que arcar.
Já os Conselhos Municipais de Políticas Públicas e de Direitos, após gradativa ampliação na década de 1990, chegando ao número de 29 nos anos 2000, vivem um contexto inédito de tentativas de restrição dos seus poderes e de suas funções por parte da Administração Municipal. Dois projetos de leis do Executivo evidenciam este objetivo da gestão do Prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB, PTB, PP, PSC, PR): o primeiro, apresentado em 2017 (Projeto de Lei nº 009/17), trata da retirada de poder dos conselhos; o segundo, apresentado no presente ano (PL 005/19), versa sobre o fim dos fundos de recursos financeiros ligados a políticas setoriais. No caso do primeiro projeto, foi proposta a alteração do caput do art. 101 da Lei Orgânica do Município, que dispõe sobre os Conselhos Municipais. O projeto propôs uma nova redação introduzindo a sutil expressão “no que couber” relativa às finalidades dos conselhos de “propor, fiscalizar e deliberar matérias referentes a setores da Administração”. A expressão “no que couber” relativiza os podereis legais dos conselhos municipais, o que possibilita ao Executivo definir as competências dos mesmos de forma arbitrária. A proposta de mudança na competência dos conselhos foi elaborada sem qualquer discussão ou diálogo da Administração com os conselhos e atores da sociedade civil. O projeto sofreu forte resistência por meio da Coordenação do Fórum Municipal dos Conselhos da Cidade, criado em 2009, que realizou mobilização e diálogo com os vereadores, conseguindo apoio para a formação de uma Frente Parlamentar de Defesa dos Conselhos e debates em audiências públicas. O Fórum Municipal dos Conselhos da Cidade vem protagonizando ações autônomas de mobilização e de resistência dessas esferas. Recentemente foi realizado o I Seminário do Fórum com o propósito de fortalecer a integração desses espaços e resistir às ofensivas da Administração Municipal. Assim, em 2017, o projeto foi retirado pelo Prefeito. Todavia, há intenção de retomá-lo.
O segundo projeto governamental que atinge a ação dos Conselhos Municipais se expressa no PL 05/19 que dispõe sobre a retirada dos recursos que constituem os Fundos Municipais ligados a políticas públicas setoriais, e sua alocação em conta controlada pela Secretaria da Fazenda. Sob o argumento técnico de racionalização fiscal do município, e novamente sem discussão com os conselhos afetados, o projeto prevê a retirada dos recursos dos Fundos Pró-Defesa do Meio Ambiente, dos Direitos Difusos (como o direito do consumidor), o FUMPROARTE (que possibilita editais de produções artísticas), o Fundo Municipal de Iluminação Pública, o Fundo Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural, o Fundo do Conselho Municipal sobre Drogas, o Fundo Municipal da Cultura, o Fundo Municipal de Desenvolvimento Desportivo, o Fundo de Reciclagem e dos Catadores, o Fundo de Inovação Tecnológica, o Fundo Municipal de Turismo e o Fundo de apoio à Implantação de Ciclovias. Além do sequestro dos recursos dos fundos, está previsto a extinção de dois deles: o Fundo Municipal de Compras Coletivas (que subsidia a aquisição de produtos de higiene e de alimentação para a população) e o Fundo Monumenta Porto Alegre (que possibilita a recuperação de prédios de importância cultural para a cidade). O governo municipal não tem possibilitado o acesso aos valores financeiros que constituem esses fundos, o que está motivando a entrada em cena do Tribunal de Contas do Estado.
Conforme avalia o Fórum Municipal dos Conselhos, em manifesto dirigido à população para informar as possíveis consequências negativas do projeto:
“Retirando os saldos financeiros de ‘contas’ específicas, para colocar em uma ‘conta’ única, o prefeito prejudica dois mecanismos que são fundamentais para a construção de uma cidade mais democrática: a garantia de investimentos em áreas específicas (fundos) e a participação da população, como atuante e fiscalizadora das ações do Poder Público (conselhos)” (FMCC, 6 de setembro de 2019).
O projeto poderá ser votado ainda nesta legislatura.
Por fim, cabe destacar como este contexto de desdemocratização vem se apresentando também em uma área vital para a gestão democrática das cidades: o planejamento urbano. Como afirmado anteriormente não há intenção aqui em analisar a trajetória desse longo percurso de três décadas de participação. Cabe ressaltar alguns elementos que representam o retrocesso da participação da sociedade civil no planejamento da cidade e a desconstrução técnico-administrativa da gestão urbana em nome da necessidade de “flexibilizar as normas” para a construção imobiliária.
Esta dupla face – técnica e de restrição da participação – constitui o processo de implementação de um projeto de caráter ultraliberal como modelo de gestão urbana, declaradamente assumido no discurso público da atual gestão, embora venha sendo gestado há mais tempo. Em contraste com o momento histórico de elaboração participativa do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, e a consequente democratização do seu Conselho (CMDUA), em 1999, o contexto atual apresenta, por um lado, enfraquecimento da estrutura técnica do planejamento urbano; e por outro lado, ausência de procedimentos democráticos para discussão do novo Plano Diretor. Foram adotadas medidas para “facilitar” os empreendimentos urbanos, principalmente utilizando-se dos Projetos Especiais, que burlam princípios estabelecidos na revisão de 2010 e ancorados no Estatuto da Cidade (2001). Os Projetos Especiais afetam diretamente a “transferência onerosa do direito de construir” (Solo Criado), cujos recursos deveriam ser destinados à política de Habitação de Interesse Social.
O atual momento de revisão do Plano Diretor é marcado pela ausência de informações sobre as mudanças ocorridas no plano nos últimos dez anos e de uma avaliação baseada em dados sobre as transformações ocorridas na produção do espaço urbano e rural da cidade. A participação da sociedade civil – legalmente obrigatória – vem ocorrendo de forma limitada e açodada, com oficinas esvaziadas nas regiões de planejamento e escolha seletiva de entidades civis para discussão com o governo, uma participação “pró-forma”, mais afeita ao cumprimento de previsão legal. (Carta Aberta do Fórum de Gestão do Planejamento da Região 01 – RGP1, 23/10/2019).
O fechamento das oportunidades para a participação na revisão do Plano Diretor vem gerando contestação por parte de alguns atores que constituem os Fóruns de Gestão e Planejamento das oito regiões da cidade criados na revisão de 1999/2000, bem como de entidades profissionais, como o IAB-Instituto dos Arquitetos do Brasil, que compõem o CMDUA. Em carta aberta, o Fórum de Gestão e Planejamento da Região 1 propõe a suspensão do processo de revisão do Plano Diretor e a criação de condições reais para uma participação ampla, informada e democrática no debate sobre a cidade. Esses atores estão ligados ou contam com o apoio do Coletivo A Cidade Que Queremos[1], um espaço criado há três anos com o intuito de agregar atores diversificados da sociedade civil e da academia identificados com a reforma urbana e o direito à cidade.
Considerações finais
De forma sintética é possível verificar que as três dimensões constitutivas da democracia participativa em Porto Alegre apresentam uma trajetória de desdemocratização, ou seja, de desconstrução da gestão participativa gerado nos anos 1990/2000, em que pese os limites e mitos já criticados pela literatura acadêmica. Como explicar esta guinada da capital da democracia participativa para um contexto de hegemonia do projeto ultraliberal e autoritário? Por quê justamente no OP – a inovação mais relevante e festejada como referência mundial – a contestação e a resistência dos atores civis é a menor diante de sua descaracterização? Há hipóteses e evidências que ajudam a compreender esta trajetória, mas que não cabe desenvolver neste pequeno espaço. Eis um grande desafio que a pesquisa ora em curso pretende contribuir.
¹Professor Titular do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. Pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles (lucianofedozzi@gmail.com).
Para saber mais:
ABERS, R., I. BRANDÃO, R. KING, AND D. VOTTO. 2018. “Porto Alegre: Participatory Budgeting and the Challenge of Sustaining Transformative Change.” World Resources Report Case Study. Washington, DC: World Resources Institute. www.citiesforall.org. (acessado em 30/01/19)
FEDOZZI, L.; MARTINS, A. Trajetória do Orçamento Participativo de Porto Alegre: representação e elitização política. Revista LUA NOVA, n. 95, p. 2015b.
FEDOZZI, Luciano. Porto Alegre: Participación contra-hegemónica, efecto-demostración y desconstrucción del modelo. In: CARRION, M. Fernando; PONCE, S. Paúl. (coord..) El giro a la izquierda: los gobiernos locales de América Latina. 5ª Avenida, Quito, 2015a.
FONTOURA, Daniely Votto. Orçamento Participativo de Porto Alegre: a emergência do clientelismo como limitador da participação social. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PUCRS. 2019. 99 f.
FÓRUM DE GESTÃO DO PLANEJAMENTO DA REGIÃO 01. Carta Aberta da RGP1 referente ao processo de revisão do Plano Diretor de Porto Alegre. 23 de outubro de 2019 (acessado em 10/11/2019).
COLETIVO A CIDADE QUE QUEREMOS. Revisão do Plano Diretor de Porto Alegre e CMDUA.
FÓRUM MUNICIPAL DOS CONSELHOS DA CIDADE. Porto Alegre – Retirada dos recursos dos fundos municipais: entenda como te afeta o projeto de lei do Prefeito!
FÓRUM MUNICIPAL DOS CONSELHOS DA CIDADE. Porto Alegre – CARTA PÚBLICA – I SEMINÁRIO DO FÓRUM MUNICIPAL DOS CONSELHOS DA CIDADE.
MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. São Paulo: Cia da Letras, 2019.
RENNÓ, Lúcio; SOUZA. Aílton. A metamorfose do Orçamento Participativo: mudança de governo e seus efeitos em Porto Alegre. Curitiba: Rev. Sociol. Polít., v. 20, n. 41, p. 235-252, 2012.
TILLY, Charles. Democracia. Petrópolis:Vozes, Rio de Janeiro, 2013.