A “Primavera” Brasileira e seu Contexto Sócio-Político
Os protestos iniciados em junho de 2013, nomeados na imprensa internacional de primavera brasileira, e sua generalização nos centros urbanos e regiões metropolitanas indicam uma crise profunda do sistema político brasileiro. Esta crise tem por base o esgotamento do projeto neoliberal no Brasil. Neste artigo o professor Carlos Eduardo Martins mostra como se construiu uma versão social do neoliberalismo no país com a ascensão do PT ao poder, um bloco histórico que reúne o grande capital estrangeiro e nacional, a oligarquia financeira, o agronegócio, os monopólios dos meios de comunicação e os segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. Esse grande consenso, ao que parece, não é mais capaz de conter a explosão social das ruas, colocando em questão a legitimidade da democracia representativa.
O artigo “A Primavera brasileira: Que flores florescerão?” foi publicado originalmente no blog do professor Carlos Eduardo Martins no site da Boitempo Editorial e cedido ao INCT Observatório das Metrópoles com o propósito de ampliar o debate sobre o contexto histórico por que passa o Brasil.
Carlos Eduardo Martins é professor Adjunto e Chefe do Departamento de Ciência Política/UFRJ, coordenador do GT Integración y unidad latino-americana y caribeña (CLACSO) e autor de “Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina” (Editora Boitempo/2011). Em abril de 2013 o Observatório das Metrópoles promoveu o ciclo de debates “Metrópole, Estado e Capital” com o objetivo de interpretar as transformações vividas pelas metrópoles brasileiras no século XXI. Sob o tema “O Brasil e a América Latina na nova geopolítica mundial”, o professor Carlos Eduardo Martins analisou os efeitos do projeto neoliberal na América Latina – aprofundamento da condição periférica, aumento da pobreza, entre outros – e as novas forças sociais e políticas que surgiram capazes de promover a integração regional latino-americana.
A “Primavera” brasileira: Que flores florescerão?
Carlos Eduardo Martins
Os protestos iniciados em junho de 2013, nomeados na imprensa internacional de primavera brasileira, sua generalização nos centros urbanos e regiões metropolitanas, sua forma muitas vezes violenta e insurrecional, indicam uma crise profunda do sistema político brasileiro.
Esta crise tem por base o esgotamento do projeto neoliberal no Brasil. O projeto neoliberal alcançou hegemonia na sociedade brasileira, após o breve interregno de Collor, durante os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, a partir da aplicação dos programas do consenso de Washington que impulsionaram a abertura comercial e financeira e a sobrevalorização cambial em troca da renegociação da dívida externa dos anos 1980. A crise mundial, com epicentro na Ásia em 1998, propiciou fuga de capitais da América Latina cortando o financiamento externo destas experiências, deixando exposta a vulnerabilidade financeira dos Estados que adotaram essas formulações e o seu alto custo social, manifesto na alienação do patrimônio público e da soberania nacional, no enriquecimento privado, na corrupção e alto nível de endividamento estatal a serviço de oligarquias financeiras, na perda de direitos sociais e trabalhistas, nos altos níveis de desemprego e na desindustrialização.
O rechaço aos grupos políticos que dirigiram estes processos na América Latina foi profundo e deu lugar à ascensão das esquerdas, principalmente na América do Sul, que se inicia com a eleição de Hugo Chavez em 1998. Estas se dividiram entre uma esquerda nacionalista e integracionista, que se afirma com Hugo Chavez e Nicolas Maduro na Venezuela, Evo Morales na Bolivia, Rafael Correa no Equador, Nestor e Cristina Kirchner na Argentina, ou em projetos centristas e moderados como os de Lula e Dilma Rousseff no Brasil, Michele Bachelet no Chile, Tabaré Vasquez e José Mujica no Uruguai e Fernando Lugo no Paraguai.
Apesar do profundo rechaço social ao tucanato e seus aliados, o projeto petista de Estado buscou formular uma versão social de neoliberalismo que seria a base de um grande consenso nacional. Para isso propôs-se a dirigir com a mão esquerda um bloco histórico que reuniria o grande capital estrangeiro e nacional, a oligarquia financeira, o agronegócio, os monopólio dos meios de comunicação e os segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora. A Carta aos brasileiros é o primeiro documento que afirma esta intenção. Formulado em junho de 2002 quando Lula já liderava as pesquisas eleitorais, sinalizou o tom conciliatório e centrista de seu governo. A efetivação deste pacto e a subordinação do PT ao governo federal o tornaram um partido estratégico de uma ordem burguesa, dependente e financeirizada, esvaziando o campo das alternativas no interior do sistema político partidário. Afastou-se de suas bandeiras tradicionais junto aos movimentos sociais e sindicatos, moderando-os através de cooptação de lideranças, utilizando-se para isso dos recursos proporcionados pelo manejo de cargos e verbas do aparato de Estado. De outro lado, aprofundou sua vinculação com as Igrejas católicas e evangélicas, neutralizando conflitos com estes segmentos, ao comprometer-se com seus temas tradicionais, desengajando-se da proposição de uma legislação favorável ao aborto e à união entre pessoas de mesmo sexo.
Destinando o núcleo duro da politica econômica para o capital financeiro, mantendo intocado o monopólio dos meios de comunicação, cooptando lideranças dos movimentos sociais organizados, comprometendo-se com as principais igrejas brasileiras e fazendo política de renda mínima para os segmentos mais pobres da população brasileira, as lideranças petistas imaginavam ter blindado a hegemonia de seu projeto político. Articulava-se uma base de apoio muito superior ao da direita brasileira, que desmoralizada pela crise do neoliberalismo a partir de 1999 e sem vínculos com os movimentos sociais, não tinha como enfrentá-lo. A preferência pelo PSDB, DEM e seus aliados nos segmentos da alta burguesia e nas franjas superiores dos setores médios não era suficiente para oferecer uma alternativa a este projeto. Estabeleceu-se entre os governos Lula e Dilma e o grande capital, de quem as organizações Globo são o principal porta-voz, uma espécie de guerra fria, onde a colaboração sobrepunha-se aos conflitos, limitando sua intensidade.
Entretanto, este projeto apresenta várias limitações: Ao pretender transformar permanentemente uma politica emergencial, como a de renda mínima, na principal política de combate à pobreza, criou-se uma mobilidade no interior da pobreza sem que se provessem os mecanismos institucionais de sua erradicação ou da eliminação da vulnerabilidade social e econômica das amplas maiorias, incluindo frações dos segmentos médios. Esta vulnerabilidade tem seu fundamento nos baixos salários, alto nível de informalidade do mercado de trabalho, má qualidade dos serviços públicos e altos custos da habitação1. O resultado foi o aumento da pressão pela garantia dos direitos sociais estabelecidos na constituição de 1988 e sua ampliação para incluir transporte, junto a itens que dela fazem parte, como saúde, educação, moradia, previdência e lazer.
Estas pressões se evidenciaram nos protestos de junho, que levaram milhões de pessoas às ruas, cuja base de massas foi composta principalmente por estudantes e trabalhadores que vivem em famílias com renda total mensal de até 3 salários mínimos. Tais pressões surgem de fora do grande consenso nacional liderado pelo PT, ou da competição exercida por seu rival, a direita político-partidária e suas organizações mediáticas e empresariais de apoio. Representam uma explosão social sem mediação no sistema político-institucional e colocam em questão a legitimidade da democracia representativa. Apesar da presença de partidos de esquerda (PSOL, PSTU e PCB) junto com Movimento Passe Livre na organização dos protestos pela revogação do aumento das tarifas de transportes, estopim de um conjunto de manifestações, estes não possuem representação institucional significativa nos parlamentos ou poder executivo, não se constituindo em partidos de massa.
Esta ausência de mediação torna estes movimentos sociais tão explosivos quanto vulneráveis na medida em que não possuem uma estratégia cumulativa de médio e longo prazo. Diversas estratégias lançam-se sobre eles: a) a socialista, que busca captar o sentido profundo dos protestos e refundar o Estado, desprivatizando-o, dirigindo-o prioritariamente para a garantia dos direitos sociais, para a defesa da soberania nacional e substituindo o déficit de legitimidade da democracia representativa pela introdução de mecanismos de democracia direta; b) a do capitalismo monopolista de Estado, que busca refundar o pacto neoliberal aumentando o grau de controle dos monopólios sobre o Estado. Para isso reivindica-se por intermédio das grandes empresas dos meios de comunicação, como a expressão mais organizada da sociedade civil e porta voz da brasilidade, e dirige sua ofensiva principalmente contra esquerda neoliberal, mas também ao sistema político partidário em seu conjunto. Sua opção preferencial, ainda que não a exclusiva, é por lideranças políticas pessoais, sem representação partidária expressiva, como Marina Silva ou Joaquim Barbosa, superando-se o déficit de coordenação política em um presidencialismo de coalizão com a articulação destas lideranças ao monopólio midiático, que lhes garantiria governabilidade pautando a ação do parlamento e do judiciário; c) a fascista, que busca extrapolar os níveis de violência nas ruas criando um ambiente caótico que justifique um golpe de Estado, que retire a esquerda centrista da direção política do país.