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Orla do Guaiba. Foto: Comunicação da Prefeitura de Porto Alegre.

Neste texto Luciano Fedozzi e Paulo Roberto Soares apontam sinteticamente as principais mudanças da metrópole  mais meridional do Brasil – a RM de Porto Alegre – nas três últimas décadas (1980-2010), a partir de aspectos econômicos, sociais, demográficos, políticos e espaciais. A análise faz parte do projeto “Transformações da Ordem Urbana nas Metrópoles Brasileiras”, que o Observatório das Metrópoles deve lançar nacionalmente neste segundo semestre de 2014.

O projeto “Transformações na Ordem Urbana das Metrópoles Brasileiras (1980-2010)” representa para o Observatório das Metrópoles a última etapa do Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT). O objetivo é oferecer a análise mais completa sobre a evolução urbana brasileira, servindo assim de subsídio para a elaboração de políticas públicas nas grandes cidades e para o debate sobre o papel metropolitano no desenvolvimento nacional. Nesta etapa do projeto, os núcleos regionais estão finalizando seus livros e enviando para o Comitê Gestor fazer a leitura final.

A previsão é de que no segundo semestre de 2014 e em 2015 o Observatório das Metrópoles faça os lançamentos dos 15 livros com a análise sobre as transformações urbanas das principais regiões metropolitanas do Brasil.

Leia mais: Transformações da ordem urbana na metrópole liberal-periférica: 1980/2010. Hipóteses e estratégia teórico-metodológica para estudo comparativo.

REGIÃO METROPOLITANA DE PORTO ALEGRE 1980-2010: TRANSFORMAÇÕES NA METRÓPOLE MERIDIONAL DO BRASIL*

Paulo Roberto Rodrigues Soares¹

Luciano Fedozzi²

Nas últimas três décadas observamos significativas mudanças e permanências nas relações entre território, economia, sociedade e política em Porto Alegre e sua Região Metropolitana. Após uma ampla análise dos aspectos econômicos, sociais, demográficos, políticos e espaciais desta relação é possível realizar um esforço de síntese sobre as principais mudanças na metrópole mais meridional do Brasil. Estas expressam a relação entre as transformações do modelo de desenvolvimento brasileiro e os fatores locais e regionais. Nos últimos trinta anos vivemos a crise generalizada do desenvolvimentismo (década de 1980), a reestruturação neoliberal (década de 1990) e uma nova dinâmica socioeconômica, no primeiro decênio do século XXI. Hoje temos um “novo” modelo de desenvolvimento que articula características neoliberais e desenvolvimentistas, rebatendo ambas as políticas e seus efeitos na estrutura socioespacial da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA).

É importante salientar que a RMPA apresenta um nível de complexidade singular entre as metrópoles brasileiras concentrando núcleos urbanos portadores de centralidades industriais, comerciais e de serviços, bem como polaridades que extrapolam seus limites institucionais. Esta complexidade resulta em diferenças internas na região, o qual pode ser dividida em quatro sub-espaços: Porto Alegre (a metrópole), a RMPA-PoA (municípios conurbados e mais próximos à capital), RMPA-Vale (municípios do Vale do Rio dos Sinos, polarizados por Novo Hamburgo) e RMPA-entorno, com municípios pertencentes institucionalmente à RMPA, mas pouco integrados à dinâmica metropolitana e com forte presença de população rural.

Levando em conta estes recortes, nossa análise considerou dois movimentos distintos com dinâmicas interdependentes: os movimentos globais e nacionais de reestruturação econômica e metropolitana e a reestruturação interna da Região Metropolitana.

Entre 1980 e 2010 Porto Alegre e a RMPA sofreram importantes mudanças econômicas que repercutiram na sua reestruturação interna e na sua reconfiguração urbano-regional. O processo de desconcentração metropolitana tem reforçado a tendência à policentralidade metropolitana com o crescimento do comércio e dos serviços não só na capital, como em outros centros, especialmente os mais populosos e de economia mais dinâmica. Em um primeiro momento (décadas de 1970 e 1980), a expansão metropolitana se produziu pelo transbordamento da mancha urbana da capital e pelo deslocamento da indústria; a partir de 2000, a desconcentração também afetou o setor de serviços, com alguns centros urbanos se convertendo em polos de atividades terciárias. Essa mudança reflete a alteração do perfil da própria economia da metrópole, que se caracteriza por um incremento da participação dos serviços no Produto Interno Bruto (PIB).

Em 1980 o setor industrial compreendia um terço da economia metropolitana, enquanto que os serviços compunham quase dois terços do PIB. No início dos anos 1990 o setor industrial chegou ao seu auge na economia metropolitana, incluindo a capital. A partir de então, a reestruturação produtiva e o movimento de desindustrialização relativa afetou com mais força o município de Porto Alegre. As grandes indústrias “abandonaram” o município, assim como as novas implantações industriais buscaram outras localizações na Região Metropolitana. Esse movimento de perda relativa da participação da indústria atingiu de modo diferenciado a RMPA, ao mesmo tempo em que o terciário, que já era predominante na capital, aumentou sua importância em outros centros urbanos.

Porto Alegre diminuiu seu peso relativo na economia metropolitana. A redução foi mais drástica no PIB industrial. A última década demonstra produção e serviços mais concentrados nos principais municípios, evidenciando a “desconcentração concentrada” da economia metropolitana. A metrópole diminui seu peso relativo, mas poucos centros da região metropolitana são beneficiados pela desconcentração.  Nos serviços, a metrópole mantém elevada participação por diversos motivos: a capital concentra mais de um terço da população metropolitana e conta com a presença dos serviços avançados (terciário superior) nos seus espaços de centralidade.

O mercado de trabalho metropolitano refletiu esta reestruturação. Entre 1991 e 2010, a indústria de transformação foi o setor que apresentou a maior diminuição de participação na ocupação. Neste período destaca-se a ampliação da participação dos serviços e do comércio. A RMPA perdeu participação na indústria de transformação estadual. Isto evidencia a continuidade do processo de deslocamento da atividade industrial para além dos limites metropolitanos. Mudanças qualitativas ocorreram no mercado de trabalho metropolitano, como o crescimento do assalariamento e dos trabalhadores com vínculo regulamentado. A diminuição da taxa de desemprego e o aumento da formalização melhoraram as condições do mercado de trabalho metropolitano. A queda da participação da indústria e o crescimento do terciário no emprego são mais pronunciados na capital e em municípios limítrofes, os quais são mais influenciados pela dinâmica da metrópole.

A RMPA continuou a atrair investimentos industriais, mas os novos empreendimentos estão baseados em formas de organização da produção e relações de trabalho mais flexíveis, o que contribui para uma menor geração de empregos no setor industrial. A nova economia informacional se faz presente nos Polos Tecnológicos, que representam um novo tipo de espaço industrial, com diferentes impactos sobre o território metropolitano, o qual se insere, assim, nos circuitos da economia global. Esta inserção se realiza com a presença da metrópole e seus serviços avançados, ou seja, a economia industrial da Região Metropolitana, com um desenvolvimento voltado para o global, utiliza-se dos serviços alojados na metrópole.

O período também foi de mudanças demográficas. A década de 1980 foi de crescimento generalizado na região metropolitana, embora o município de Porto Alegre tenha apresentado um baixo ritmo de incremento. A partir da década de 1990 observamos uma queda da taxa de crescimento dos municípios mais integrados à metropolização e a manutenção de um ritmo relativamente elevado de crescimento nos municípios da região coureiro-calçadista do Vale dos Sinos. Na década de 1980 os fluxos entre polo e periferia eram significativamente mais importantes (reflexo da estrutura dual da RMPA de então), atualmente esses dividem posições com os fluxos periferia-periferia.

Mudanças econômicas e demográficas são a base da análise do perfil social metropolitano. Em 1980 este apontava para a existência de uma estrutura sócio-ocupacional dual, na qual as categorias médias e do proletariado terciário e secundário, correspondiam a mais de três quartos da população ocupada. Já as “pontas” da hierarquia – o conjunto das elites, dirigentes, intelectuais e pequena burguesia e o subproletariado associado aos agricultores eram equivalentes numericamente. A metrópole se caracterizava então pela predominância das classes médias, seguida do proletariado terciário. No restante da região metropolitana predominava o proletariado secundário, sendo na RMPA-PoA mais vinculado à indústria moderna e na RMPA-Vale à indústria tradicional (coureiro-calçadista).

Entre 1980 e 1991 ocorreu um evidente processo de elitização e de segregação socioespacial em Porto Alegre: novas áreas de tipo superior, concentração das elites em setores e bairros nobres da metrópole, periferização das camadas populares. Na década de 2000-2010 o perfil sócio-ocupacional da RMPA se manteve essencialmente operário e médio, porém com predomínio das categorias médias sobre os operários. No Vale dos Sinos (RMPA-Vale) o peso do operariado industrial continuou predominante, mantendo suas características anteriores.

Sintetizando, entre 1980 e 2010, observamos que na RMPA os grupos de áreas de tipo superior e os de tipo operário são mais homogêneos, caracterizados pela forte concentração da moradia dos dirigentes e dos profissionais de nível superior e dos operários, sendo que entre estes últimos distinguem-se os espaços de moradia dos trabalhadores da indústria moderna (RMPA-PoA) e dos trabalhadores da indústria tradicional (RMPA-Vale). Os espaços de tipo popular são bastante expressivos em termos sociais, com a moradia dos trabalhadores da construção civil e do terciário não-especializado. Em 2010 Porto Alegre ostentou um perfil relativamente elitizado comparado aos períodos anteriores: ao mesmo tempo em que desapareceram os espaços operários, observou-se a segregação dos espaços populares na periferia urbana. Também foi observada a presença de espaços elitizados (de tipo superior) fora da Capital. Trata-se de espaços privilegiados em municípios de grande porte e com forte centralidade (Novo Hamburgo e São Leopoldo).

Quanto à produção da moradia, a crise do fordismo urbano-industrial da década de 1980 dá início à transição ao modelo da cidade neoliberal na RMPA. Este é caracterizado pelo fortalecimento do mercado como elemento determinante na produção da cidade. Em decorrência da flexibilização da gestão urbana e da redução do financiamento estatal para os setores de habitação, equipamentos e infraestrutura, o mercado configurou-se naquele momento como o principal coordenador da produção de materialidades urbanas, tanto na produção residencial, como pela privatização de empresas públicas provedoras de serviços urbanos (energia elétrica e telefonia, principalmente).

Na RMPA, a taxa de crescimento do número de domicílios foi superior ao crescimento populacional. A capital concentrou o maior incremento domiciliar, bem como reúne a maior parte dos domicílios em condomínios e apartamentos da RMPA. Sendo assim, é na metrópole que a atuação do capital imobiliário é mais intensa, embora esta ocorra de modo diferenciado nos diferentes setores da cidade. Já na Região Metropolitana, o aumento da produção habitacional não repercutiu na melhoria da localização dos empreendimentos. Percebe-se, assim, a ausência de uma política habitacional metropolitana, sendo que cada município tenta solucionar seu problema isoladamente em uma região cada vez mais integrada em termos de mercado de trabalho e mobilidade cotidiana.

A mobilidade é decorrente da distribuição das atividades sobre o espaço metropolitano, organizado numa escala que exige a separação e integração dos espaços de produção e dos espaços de reprodução da força de trabalho. No período atual, pós-reestruturação produtiva e em plena reestruturação urbana, os níveis de mobilidade das pessoas por diversos motivos (trabalho, estudo, compras, lazer, negócios) se elevaram. Na Região Metropolitana de Porto Alegre foi constatada a ampliação da oferta e da rede de transporte público, decorrente da expansão territorial nesse período. A capital apresentou o menor crescimento relativo, enquanto os municípios mais integrados à metrópole demonstraram um crescimento elevado, passando a sediar a maior frota da região. Quanto à motorização, esta praticamente duplicou em todos os municípios da RMPA na última década.

Face às transformações apontadas é de se concluir que a tarefa de realizar a gestão da RMPA também se tornou mais complexa. Uma região metropolitana que cresceu em número de municípios, que contempla espaços mais heterogêneos, bem como uma economia mais complexa e uma maior diversidade socioespacial, exige estruturas de gestão mais adequadas. Não obstante, todas estas mudanças até o momento não se traduziram em uma nova gestão metropolitana compatível com a complexidade, a importância e os problemas que a região apresenta. A fragmentação institucional é acompanhada por uma representação eleitoral da RMPA concentrada em poucos candidatos e distantes da temática metropolitana. O comportamento eleitoral da região evidencia uma desigualdade na distribuição da competição por votos sendo que as áreas com disputa eleitoral altamente concentrada (de tipo localista) correspondem em grande medida aos espaços periféricos, enquanto que as áreas classificadas como de dispersão alta (representação mais universalista) estão circunscritas ao município de Porto Alegre.

Finalizando, podemos afirmar que a metrópole mais meridional do Brasil merece destaque entre as regiões metropolitanas brasileiras. Considerando as atuais metrópoles nacionais, a RMPA é a quarta concentração urbano-industrial. Entre suas características marcantes está a complexidade, com diversos centros urbanos importantes que questionam o modelo monocêntrico de metrópole. Ao longo destes trinta anos, as transformações reforçaram esta característica, com os principais municípios constituindo-se em centros de serviços e de novas centralidades metropolitanas.

A organização social metropolitana também representa essa complexidade, embora no conjunto da RMPA possamos verificar grandes áreas de concentração das categorias socioeconômicas e dos tipos socioespaciais, com destaque para o núcleo metropolitano – cidadela das camadas médias e dos estratos superiores, da RMPA-Vale com a grande concentração operária e “ilhas” de setores dirigentes e a RMPA-PoA como área que circunda a capital e é reduto operário e popular. A economia metropolitana demonstra a presença do setor dos serviços, embora ainda esteja alicerçada em uma forte base industrial. Esta sofreu impactos com a reestruturação produtiva dos anos 1990, mas conseguiu realizar a travessia e manter-se importante na região metropolitana.

 

Enfim, esses trinta anos foram de intensas mudanças econômicas, sociais, políticas, territoriais e institucionais na RMPA. As mudanças globais e a transição do modelo de desenvolvimento do país impactaram a região, mas os alicerces do seu modelo fundante permanecem. Estes convivem com novas dinâmicas, incluindo-se a tendência de implementação da “cidade liberal-periférica”- com segregação dos espaços populares na periferia urbana e fortalecimento do mercado como elemento determinante na produção do espaço – processos conectados ao novo modelo de desenvolvimento híbrido entre o neodesenvolvimentismo e neoliberalismo periféricos. Uma nova realidade para o pensar e o agir sobre o papel dos espaços metropolitanos e seus desafios no modo de desenvolvimento do país no século XXI.

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* Este texto sintetiza as conclusões do livro “Mudanças na ordem urbana das metrópoles 1980-2010: análise da Região Metropolitana de Porto Alegre”, realizado por pesquisadores e colaboradores do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.

¹Doutor em Geografia Humana. Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.

²Doutor em Sociologia. Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre.