A edição da Medida Provisória 759/16 no dia 22 de dezembro de 2016 visa modificar quatro regimes jurídicos instituídos nas últimas décadas, que são os seguintes: regularização fundiária rural (incluindo liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária), regularização fundiária urbana, regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e regime sobre os imóveis da União em especial sobre o regramento da alienação de imóveis da União. Neste artigo para a Carta Capital, Nelson Saule Jr., diretor do Instituto Pólis, aponta que a MP 759 contém vários vícios formais e materiais que resultam na sua inconstitucionalidade, além de ter sido elaborada sem nenhuma participação democrática.
O artigo “Por que ser contra a MP 759 e defender o Marco Legal Urbano que temos?” foi publicado originalmente no blog Justificando, do site da Carta Capital (10/02/2017), sendo divulgado pela Rede INCT Observatório das Metrópoles para apoiar a campanha contra a MP 759, visto que representa de fato mais uma ofensiva conservadora-liberal do presidente Temer ao extinguir os critérios que asseguram o interesse social da propriedade; romper com regimes jurídicos de acesso à terra e de regularização fundiária de assentamentos urbanos — tais como ocupações e favelas; e alterar as regras de venda de terras e imóveis da União e da Política Nacional de Reforma Agrária.
Leia a “Carta ao Brasil: MP 759 — A desconstrução da Regularização Fundiária no Brasil”, assinado por 88 organizações e movimentos sociais, dentre elas o Fórum Nacional de Reforma Urbana, o Instituto Socioambiental (ISA), a ActionAid, o Instituto Pólis e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). O objetivo da carta é convocar movimentos sociais e a sociedade civil para apoiar a luta pela Reforma Urbana e Rural do país, exigindo do Governo Federal a retirada da MP 759 da pauta do Congresso, e construindo um amplo debate nacional sobre o tema.
Por que ser contra a MP 759 e defender o Marco Legal Urbano que temos?
A edição da Medida Provisória 759/16 no dia 22 de dezembro visa modificar quatro regimes jurídicos instituídos nas últimas décadas, que são os seguintes: regularização fundiária rural (incluindo liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária), regularização fundiária urbana, regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal e regime sobre os imóveis da União em especial sobre o regramento da alienação de imóveis da União.
Diante da complexidade dos assuntos tratados, é importante destacar que a MP 759 contém vários vícios formais e materiais que resultam na sua inconstitucionalidade. No aspecto formal, existe uma lesão ao tratamento constitucional conferido às medidas provisórias.
Pelo artigo 62 da Constituição Federal, somente em caso de relevância e urgência o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Não é o caso, já que nossa legislação sobre questões fundiárias possui instrumentos mais avançados que os previstos na MP.
Além disso, de acordo com o inciso IV do parágrafo 1º do mesmo artigo (62), é vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
Se existe essa precaução de matérias que sejam objeto de propostas de leis no Congresso Nacional não poderem ser alvo de medidas provisórias, o que dizer de matérias que já foram disciplinadas por lei e que têm produzido efeitos jurídicos e resultados em benefícios de um grande número de pessoas, como é o caso da regularização fundiária.
Parece-nos inadmissível que, baseado nessa norma constitucional, quatro regimes jurídicos diferentes, já instituídos e sendo aplicados, experimentados e eficazes quanto aos seus objetivos, sejam passíveis de serem modificados simultaneamente por meio de medida provisória. Para demonstrar a gravidade dessa situação, imaginemos a edição de uma medida provisória que vise modificar matérias que são disciplinadas no Código Civil, no Código Penal e no Código Processual.
Imaginem o caos jurídico se uma Medida Provisória tratar simultaneamente dos crimes contra a vida, contra os costumes, contra o patrimônio e no âmbito civil do direito aos contratos, direito de família e direito reais como propriedade e posse. Esse mesmo caos jurídico ocorre com a MP 759 tratando de diversos regimes e institutos jurídicos disciplinados em várias legislações.
É igualmente inadmissível que regimes jurídicos sobre regularização fundiária, reforma agrária e sobre imóveis da União, este último em especial constituído desde o Século XIX com a Lei de Terras de 1850, possam ser modificadas por meio de medida provisória sob o pretexto de relevância e urgência.
Essa afirmação nos leva a mais um aspecto da inconstitucionalidade da Medida Provisória como a espécie normativa adequada. Por versar sobre várias matérias já disciplinadas em legislações federais, não foram respeitados nenhum dos espaços institucionais de gestão democrática para promover o diálogo com a sociedade civil, instituições públicas, entes federativos (estados e municípios) que desempenham distintos papéis na aplicação, na execução, no monitoramento, na fiscalização, ou como destinatários dessas legislações.
No caso da regularização fundiária urbana, as mudanças propostas na MP 759 deveriam ter sido submetidas a um processo de discussão e diálogo com o Conselho das Cidades cujas competências são oriundas da Medida Provisória 2220/2001, que criou o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU.
Baseado nessa legislação foi editado o Decreto 5.790, de 25 de maio de 2006 que versa sobre as competências do Conselho das Cidades. Entre elas está a responsabilidade por propor a edição de normas gerais de direito urbanístico, manifestar-se sobre propostas de alteração da legislação pertinente ao desenvolvimento urbano e emitir orientações e recomendações sobre a aplicação do Estatuto das Cidades e dos demais atos normativos relacionados ao desenvolvimento urbano.
Cabe lembrar que a regularização fundiária é uma das diretrizes da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, previstas no artigo do artigo 2º do Estatuto da Cidade. Por isso, a falta de manifestação do Conselho das Cidades sobre todas as modificações feitas pela MP 759 reforça sua inconstitucionalidade.
A MP 759 versa sobre várias normas que tratam de direitos fundamentais como moradia, função social da propriedade e direito ao meio ambiente. Tais direitos não podem ser objeto de uma medida provisória e muito menos violados e impactados. Deve ser garantido o devido processo legal com base numa leitura holística de nosso sistema político e jurídico. É preciso que haja um processo democrático e participativo para qualquer tentativa de mudança dos regimes jurídicos objetos da MP 759.
Nelson Saule Júnior é diretor do Instituto Pólis , Professor de Direito Urbanístico da PUC-SP e coordenador do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico
Última modificação em 20-02-2017 18:03:20