Em artigo, Maria Encarnação Beltrão Sposito e Raul Borges Guimarães, professores do Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), argumentam que a dinâmica de difusão do coronavírus (COVID-19) no Brasil está relacionada com as interações espaciais na rede urbana.
Os autores destacam, no entanto, que por ser a primeira do mundo globalizado, a pandemia da COVID-19 inclui interações espaciais para além das de natureza territorial, como as interações espaciais imateriais (tecnologias de informação e comunicação), resultando em um plano de difusão que potencializa os seus riscos.
Como conclusão, os pesquisadores acreditam que para além das situações nocivas, as transformações do mundo globalizado podem criar novas possibilidades, como a construção de consciência espacial e o pertencimento a um mundo, ao mesmo tempo, desigual e solidário. Confira o texto:
Por que a circulação de pessoas tem peso na difusão da pandemia
Maria Encarnação Beltrão Sposito
Raul Borges Guimarães
Muito se tem escrito, nos últimos dias, sobre a pandemia causada pela disseminação da COVID-19, mais conhecido por Doença do Coronavírus. A proporção de informações e as hipóteses são de todo tipo, algumas delas nem sempre bem fundamentadas. Numa primeira aproximação, entendemos que esse é um problema de Saúde Pública.
Aos poucos vamos notando que são muitas variáveis e fatores incidindo sobre o processo. Somos levados a concluir que é preciso transversalidade no olhar e articulação entre múltiplos saberes e áreas de conhecimento para refletirmos mais sobre a lógica de difusão do vírus e suas consequências. Percebemos, então, a importância da História, da Economia, da Política, da Sociologia, tanto quanto da Medicina, da Biologia, da Física ou da Química, para citar alguns campos do saber. Do ponto de vista da Geografia, muitos recortes poderiam ser estabelecidos e logo concluímos que não se trata de um problema de saúde pública, nos mesmos moldes que outras pandemias geraram, mas de um novo desafio a ser enfrentado: a busca de Saúde Global.
Alteraram-se as escalas da economia e da vida, ampliaram-se os entrecruzamentos, que um mundo complexo enseja e exige, por isso precisamos ampliar nosso enfoque.
Comecemos pelo peso que tem, no processo, o fato de sermos hoje uma Sociedade Urbana. A maior parte das pessoas vivem em cidades e os que moram no campo nelas realizam muitas entre as ações necessárias a suas vidas. Nossa forma de estar no espaço e no tempo é, sobretudo, orientada pelo fato de pertencermos a uma Sociedade Burocrática de Consumo Dirigido, como postulou Henri Lefebvre. Vivemos mais concentrados e a mobilidade espacial é, atualmente, muito maior do que a que tínhamos quando outras pandemias aconteceram, como a gripe espanhola ocorrida em 1918 que matou 50 milhões de pessoas. Saímos mais de casa, compramos todos os bens e serviços de que precisamos para sobreviver (e muito mais do que o necessário), fazemos muitas reuniões, temos diferentes tipos de lazer, em espaços públicos e privados. Dependemos menos das relações familiares e rompemos os círculos da casa para alcançar os da cidade e do mundo. Produzimos continuamente concentração e buscamos mobilidade.
Essa constatação mostra que o Vírus da Covid-19 tem mais condições de se distribuir espacialmente hoje do que teria um século atrás. No passado, o modo principal de disseminação de doenças contagiosas era por proximidade entre sujeitos infectados ou por outros vetores, conformando manchas contínuas. No mundo contemporâneo, podemos afirmar que os vírus, por meio dos humanos, “saltam escalas geográficas”, no sentido dado a esta expressão por Neil Smith. São transferidos de uma parcela a outra do território, atravessando continentes e oceanos, em pouco tempo, ligando pontos que são dotados de infraestruturas como grandes aeroportos ou portos. Isto significa que a circulação e a conectividade entre diferentes lugares têm peso tão importante como a localização territorial no processo de difusão espacial de fenômenos de todo o tipo, mostrando a pertinência da teoria de Milton Santos, para o qual o espaço é um conjunto indissociável de sistemas de ações e sistemas de objetos.
Dadas essas condições impostas pelo mundo em que vivemos, estamos diante de uma pandemia inusitada. O primeiro evento que se tem registro de magnitude mundial foi a Peste Negra, que assolou a Europa no século XIV e causou a morte de mais de 100 milhões de pessoas. Houve também a Gripe Russa, que provocou febre elevada e pneumonia, tendo como resultado 1,5 milhão de mortes no período de 1889-1890, além da já mencionada Gripe Espanhola. No entanto, a pandemia da Covid-19 foi a primeira do mundo globalizado, o que já vinha sendo anunciado por outras doenças que surgiram recentemente (quem não se lembra da apreensão que causou o surgimento da gripe suína, em 2009-2010; da gripe aviária, em 1997 e 2004; da Sars, em 2002?).
O fato da pandemia da Covid-19 ser a primeira do mundo globalizado chama a atenção para vários outros aspectos.
Hoje, a rede de cidades é, mais do que nunca, a rede sobre a qual se estruturam todas as demais, como bem pontuou Roberto Lobato Corrêa, como a rede de transportes, para destacar a que mais nos interessa para compreender a disseminação do vírus. Nem é preciso lembrar que as maiores distâncias, que este vírus já percorreu, em pouco tempo, deveu-se à circulação aérea, o que favoreceu sua difusão por vários continentes. Tendo ele chegado ao Brasil, entrando por São Paulo, tornou vulneráveis aqueles que moram na maior metrópole do Hemisfério Sul e, a partir daí, já se movimentou atingindo outras cidades e estados da federação, como mostra o mapa organizado por Candido et al (2020).
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