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Neste artigo para o INCT Observatório das Metrópoles, a pesquisadora Mariana Albinati aponta que a inclusão de elementos da história e cultura negras tem-se tornado onipresente nas estratégias de divulgação do Porto Maravilha, especialmente a partir da constituição do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana. No entanto, esse processo não impediu o surgimento de outras interpretações sobre a história e a cultura da região portuária, que ressurgem agora na disputa pública em torno da construção desse território cultural.

O artigo “Políticas Culturais em disputa no Porto Maravilha” é mais um resultado do projeto “Planejamento urbano e direitos humanos no Brasil: implementação do direito à moradia e à cidade e planejamento no contexto de conflitos sociais”, que vem sendo desenvolvido pelo INCT Observatório das Metrópoles/ETTERN/IPPUR/UFRJ, com financiamento da Fundação Ford, dentro do Programa Direitos Humanos/Brasil & Direito à Cidade.

Mariana Albinati é doutora em Planejamento Urbano e Regional (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ), onde defendeu a tese “A produção de espaços culturais na Zona Portuária do Rio de Janeiro: entre isotopias e heterotopias”. O trabalho está ligado às pesquisas do INCT Observatório das Metrópoles, e aborda as políticas culturais que se desenrolam na região portuário do Rio de Janeiro em tempos de Operação Urbana Consorciada, procurando refletir sobre os espaços de expressão cultural desse território, tensionando as suas práticas a partir dos conceitos lefebvrianos de isotopia e heterotopia

Veja o artigo abaixo.

 

Políticas culturais em disputa no Porto Maravilha

A inscrição do Cais do Valongo na lista do Patrimônio Mundial da Humanidade, divulgada pela UNESCO em julho de 2017, vem reorganizando mais uma vez as políticas culturais que têm lugar na Zona Portuária carioca. De forma especial, o reconhecimento obtido vem complexificando o campo de disputas em torno dos significados do patrimônio cultural que se encontra fisicamente situado ou tem como referência espacial a região do Porto do Rio de Janeiro. Diferentes esferas governamentais (dos poderes executivo, legislativo e judiciário), movimentos sociais, ONGs, pesquisadores, moradores da região, entre outros agentes que ali mantêm vínculos de territorialidade vêm participando da arena pública que discute e articula a construção de um espaço de memória vinculado ao sítio arqueológico do Cais do Valongo. Esse espaço, ainda em definição, está elencado entre os compromissos que a Prefeitura da cidade assumiu no dossiê de candidatura submetido à UNESCO.

Em 2011, o achado do maior porto escravagista das Américas, onde desembarcaram em torno de um milhão de africanos escravizados, provocou a incorporação ao discurso do projeto Porto Maravilha de um elemento que tornou-se mais tarde central na política cultural do empreendimento: a herança africana, tão presente no cotidiano e nas narrativas sobre a região há décadas conhecida como Pequena África e que não fazia parte, até então, do discurso público/publicitário sobre a pretendida renovação dos bairros portuários da Saúde, Gamboa e Santo Cristo. A inclusão de elementos da história e cultura negras no projeto isotópico, que tornou-se onipresente nas estratégias de divulgação do Porto Maravilha, especialmente a partir da constituição do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana, não impediu o surgimento e fortalecimento de outras interpretações sobre a história e a cultura da região, que ressurgem agora na disputa pública em torno da construção de um novo espaço cultural.

A referida disputa ganha novos elementos conflituosos em uma conjuntura de retrocessos políticos, tendo como entidades protagonistas, no âmbito estatal, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, cuja gestão atual vem sendo frequentemente criticada pela retirada de apoios e criação de normas que constrangem as manifestações culturais de matriz africana e o Ministério da Cultura, chefiado pelo antigo secretário de cultura do Município, que demonstrou publicamente, em diversas ocasiões, um entendimento enviesado sobre as políticas de reparação demandadas por grupos culturalmente subordinados.

Os resultados concretos dessa chancela internacional ainda não podem ser conhecidos, mas é certo que a inscrição na lista do Patrimônio Mundial impõe às esferas de governo maiores obrigações em relação à preservação e divulgação do Cais do Valongo, assim como de outros elementos do patrimônio histórico-cultural que dizem respeito à história da escravidão e às formas de resistência e expressão cultural da população afrodescendente.

A disputa pela definição dos usos político-culturais desse patrimônio vem sendo marcada também pela participação dos movimentos negros, que fazem o contraponto dos projetos isotópicos, buscando impor lógicas próprias e apropriar-se das referências que, afinal, remetem à história do povo negro, à perpetuação da sua desigual inserção na sociedade e às possibilidades de construção do futuro através da reparação da desigualdade racial. Enquanto Estado e mercado procuram impor a criação de um espaço afinado com a lógica isotópica – produtora de espaços mesmos, em conformidade com as estratégias dominantes que tendem à identificação entre cultura e mercadoria – a participação insurgente de grupos organizados introduz questões, discute pressupostos e coloca a possibilidade de espaços outros, heterotópicos, que desestabilizam a normalidade da produção espacial isotópica.

As políticas culturais que se desenrolam na região portuária em meio ao Porto Maravilha, marcadas desde o desenterramento do Cais do Valongo pela necessidade de reconhecimento da forte presença da cultura negra no território, são também definidas pela incorporação de um ideário empreendimentista, nos termos de David Harvey, que impõe a todas as diferentes formas de expressão cultural uma finalidade econômica, entendendo a cultura como valor-de-troca. Este entendimento, que prevalece no projeto isotópico para a região, causa, no entanto, dificuldades e constrangimentos para diversos agentes culturais que mantêm ali laços de territorialidade, colocando o sucesso econômico como fator de seleção dos espaços e formas de expressão cultural que podem ou não permanecer no Porto Maravilha.

Pesquisa reflete sobre espaços de expressão cultural na região

A tese de doutorado “A produção de espaços culturais na Zona Portuária do Rio de Janeiro: entre isotopias e heterotopias”, da pesquisadora Mariana Albinati, ligada ao INCT Observatório das Metrópoles, aborda as políticas culturais que se desenrolam na região em tempos de Operação Urbana Consorciada, procurando refletir sobre os espaços de expressão cultural da Zona Portuária, tensionando as suas práticas a partir dos conceitos lefebvrianos de isotopia e heterotopia. Defendido em 2016 no IPPUR, o trabalho parte de um entendimento ampliado acerca das políticas culturais, reconhecendo suas diferentes esferas de produção (institucionais ou não, do Estado ou da sociedade civil), sem ignorar a posição privilegiada que o Estado – e a coalizão de poderes a favor da qual opera – detém na disputa pela legitimidade da expressão das diferentes culturas que o espaço urbano reúne.

Nesse sentido, procura-se analisar as condições colocadas pelo projeto isotópico para a experiência de diferentes culturas e territorialidades na Zona Portuária, observando as estratégias através das quais o Porto Maravilha constrange possibilidades de expressão cultural outras, mas também ressaltando a emergência de espaços culturais heterotópicos como contraface de um grande projeto urbano e seu modus operandi.

Documentos e depoimentos colhidos na pesquisa, de agentes culturais locais e também de gestores públicos, demonstram a existência de um duplo movimento na política cultural assumida pelo Porto Maravilha: por um lado, o projeto procura fomentar seletivamente a produção cultural dos agentes que guardam a “legitimidade local”, distribuindo apoios materiais majoritariamente de forma direta, sem revelar os critérios de seleção de projetos e valores empregados; por outro, o empreendimento busca atrair novos agentes, integrados ao mercado da economia criativa, que demanda para sua instalação certas qualidades urbanas como um ambiente de diversidade cultural. Nesse jogo, os agentes articulados em torno do Porto Maravilha favorecem a conversão dos bens e práticas culturais das populações locais de valor-de-uso em valor-de-troca.

A política de balcão estabelecida pela CDURP na Zona Portuária, que coloca os pedidos e concessões de recursos no âmbito do contato direto, pessoal, sujeita os agentes culturais a manterem boas relações com os agentes do Porto Maravilha, restringindo sua atuação reinvindicativa e os questionamentos sobre a política cultural. Ao mesmo tempo, a falta de informações sobre a destinação dos recursos públicos e sobre os critérios adotados produz entre os agentes uma série de boatos sobre favorecimento de grupos, minando as relações de parceria e colocando-os muitas vezes em posição de competição.

Observou-se ainda que muitos dos agentes culturais que já atuavam na região antes do Porto Maravilha reorganizaram suas atividades tendo em vista o caráter empreendedor reivindicado não apenas pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP) e outros agentes ligados à municipalidade, mas pelo ideário da economia criativa que vem sendo disseminado no mundo desde a década de 1990 e no Brasil especialmente a partir de meados dos anos 2000. A exigência de adaptação à cartilha do empreendedorismo, no entanto, inviabiliza a expressão cultural de agentes que não desejam ou não conseguem se entender dessa forma. Segundo um jovem diretor teatral entrevistado na pesquisa, com a chegada do Porto Maravilha “Todo mundo tem que fazer MEI, ser empreendedor individual, se organizar, tirar CNPJ ver os documentos… E você tem que acompanhar esse processo. Tem que aproveitar que a rua tá emburacada, porque depois que isso aqui parar as obras, se você não foi não vai mais”.

A pesquisa verificou que a relação dos agentes culturais locais com as políticas do Porto Maravilha não pode ser lida de forma simplificada, como de adesão ou contraposição. Os mesmos agentes culturais que em alguns momentos se articulam, submetem, negociam com o projeto isotópico, em outros momentos se contrapõem, questionam e rechaçam as políticas do Estado e seus agentes, transitando entre táticas possíveis e lutas declaradas.

Uma grande intervenção urbana como o Porto Maravilha, que impacta fortemente no cotidiano dos frequentadores de um conjunto de bairros da cidade, requer dos agentes locais seu posicionamento, individual ou coletivo.

Porém, a pesquisa destaca que essas reações não acontecem em uma única direção, de forma coerente e explícita, mas se combinam perfazendo o posicionamento dos diferentes agentes culturais diante de um processo que é visto ora como oportunidade, ora como ameaça, mas que, de um modo ou de outro, se mostrou inexorável durante os anos que antecederam os megaeventos no Rio de Janeiro. Encarando a imposição autoritária do projeto de revitalização, que impacta significativamente no seu território e práticas cotidianas, os agentes culturais da região vinham reposicionando suas práticas culturais majoritariamente pela aproximação/negociação do que pela negação/contraposição, buscando participar do afluxo de recursos que naquele momento chegavam à Zona Portuária. Ao menos enquanto a CDURP mantinha sua política de apoios diretos seletivos.

O cenário atual na região, marcado pelo reconhecimento do Cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade, coincide com a falência do modelo econômico do Porto Maravilha e com mudanças na coalizão de poder que esteve à frente do projeto, fragilizando as estratégias que vinham configurando a política cultural institucional para a região. Nesse cenário de reconfiguração do projeto isotópico, narrativas e formas de expressão cultural até então preteridas poderão tomar lugar na produção do espaço da Zona Portuária, especialmente nas disputas em torno do patrimônio negro e seus usos político-culturais.

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¹Ver matérias: https://extra.globo.com/noticias/rio/pela-primeira-vez-em-13-anos-prefeitura-do-rio-corta-apoio-financeiro-procissao-de-iemanja-22126728.html e https://www.cartacapital.com.br/diversidade/religioes-de-matriz-africana-se-unem-contra-decreto-de-crivella-no-rio

² Ver declarações do atual ministro nas seguintes matérias: https://oglobo.globo.com/cultura/os-editais-do-minc-para-produtores-culturais-negros-em-debate-6759486 e http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2013/03/26/na-rede-secretario-de-cultura-recebe-ameacas-e-criticas-dos-internautas/