Partindo do marco conceitual de Karl Polanyi, Arrighi e Silver fazem uma análise comparada de dois períodos hegemônicos no sistema mundial: o período da revolução industrial e do fortalecimento do livre comércio liderado pelo Reino Unido; e o da força econômica e militar dos EUA na Guerra Fria. O trabalho é uma importante contribuição para se compreender o atual momento do capitalismo mundial: do colapso hegemônico dos EUA, aos fenômenos do neoliberalismo e da globalização, ao surgimento de contramovimentos nacionais e à ascensão da China. Como pano de fundo o debate sobre o papel das metrópoles nesse contexto.
O artigo “Polanyi’s Double Movement: The Belle Époques of British anda U.S. Hegemony Compared”, publicado em “Politics & Society (31, 325-355) é o objeto da resenha escrita por Matthew Richmond, pesquisador-colaborador do INCT Observatório das Metrópoles. O instituto vem desenvolvendo várias ações em 2013 – seminários, debates e oficinas – a fim de interpretar as transformações vividas pelas metrópoles brasileiras no século XXI e oferecer a análise mais completa sobre a evolução urbana do Brasil nos últimos 30 anos (1980-2010).
Uma das iniciativas de destaque é o ciclo de debates “Metrópole, Estado e Capital: o urbano na atual etapa da ordem capitalista no Brasil. Mudanças? Fundamentos teóricos”. O primeiro encontro, realizado em 19 de março, contou com a participação do professor Carlos Eduardo Martins que apresentou os resultados do seu livro “Globalização, Dependência e Neoliberalismo na América Latina” no qual cumpre a difícil tarefa de atualizar as teorias sobre esses três conceitos-chave para o pensamento contemporâneo e a compreensão das sociedades, principalmente as periféricas.
Leia mais em “Metrópole, Estado e Capital”.
A seguir a resenha de Matthew Richmond sobre o trabalho de Arrighi e Silver.
POLANYI: a hegemonia do Reino Unido e dos EUA no sistema
Por Matthew Richmond
Neste artigo Beverly Silver e Giovanni Arrighi (2003) comparam as épocas hegemônicas do Reino Unido no final do século XIX e dos Estados Unidos no final do século XX, usando o marco conceptual do pensador Karl Polanyi.
Polanyi afirmou que o desenvolvimento das sociedades modernas se desdobra por meio de um ‘duplo movimento’ pelo qual a instabilidade social gerada pelas políticas econômicas liberais estimula contramovimentos protetores. Às vezes os contramovimentos surgem debaixo, por exemplo, através de movimentos sindicalistas, socialistas ou popular-nacionalistas. Porém, esses movimentos são implementados com mais frequência de cima pelas elites políticas e econômicas, em razão da solidariedade paternalista ou simplesmente porque as elites reconhecem que a força é “um sistema instável de governo” (p. 327). As exceções desta regra, centrais à análise dos impérios britânico e estadunidense, são as colônias ‘não soberanas’, onde as elites da metrópole muitas vezes não desempenham papel tão protetor. Nesse contexto somente as revoltas anti-imperialistas e as rivalidades geopolíticas podem contrariar o movimento mercado-liberal.
A hegemonia britânica
O período da dominância mundial do Reino Unido ocorreu com a revolução industrial na primeira metade do século XIX, processo que deu aos britânicos uma vantagem duradoura na economia global. Esse salto econômico também levou ao fortalecimento militar do país, permitindo uma expansão do seu império formal e informal e uma exploração intensificada dos recursos materiais e humanos das suas colônias. Como o Reino Unido tinha maior capacidade de “internalizar os benefícios e externalizar os custos de um mercado livre mundial” (p. 336), o país adotou a ideologia do comércio livre, sacrificando sua auto suficiência agrária no processo. Para defender sua posição como ‘a fábrica’ e ‘o banco’ do mundo, ele usou sua força financeira, comercial e, às vezes, militar para obrigar a aderência dos países inferiores ao padrão-ouro.
Paradoxalmente, foi com o surgimento do desafio econômico da Alemanha e dos Estados Unidos (a partir do pânico financeiro de 1873), e o declínio industrial “relativo” que se seguiu por parte do Reino Unido, que os britânicos atingiram seu apogeu. Com a industrialização dos outros países, o Reino Unido começou a se especializar nas áreas de alto valor agregado e passar por um processo de ‘financeirização’ econômica. Apenas acabou sua hegemonia no período entre guerras com a aceleração do seu declínio relativo econômico e geopolítico e o aumento dos custos do império devido à resistência colonial crescente. Para Polanyi, na década de 1930, a rejeição ao comércio livre e à hegemonia britânica por parte dos países mais avançados representou uma ‘revolução mundial’ contra do movimento liberal.
A hegemonia estadunidense
A época hegemônica dos Estados Unidos, que começou depois da Segunda Guerra Mundial (1945), se desdobrou de maneira diferente. A arquitetura internacional dentro do bloco capitalista na época do pós-guerra foi construída com preceitos keynesianos, originárias de contramovimentos dos anos 1930. O resultado foi um capitalismo social nos países industriais e um capitalismo desenvolvimentista no ‘terceiro mundo’, que até certo ponto constrangeram a força do movimento liberal. Ao contrário do império britânico, os EUA não conseguiram atuar como coordenador central da economia global, mas sim como uma economia continental quase auto-suficiente que dependia mais no seu mercado doméstico do que das exportações. Não obstante, alianças militares-econômicas bilaterais e multilaterais possibilitaram às companhias americanas operar com lucro internacional, apesar da proteção comercial excessiva do mercado interno.
Uma dupla-crise ao final dos anos 1960 finalmente provocou uma restauração da ‘crença utópica no mercado livre’ dentro dos EUA. A primeira foi uma crise da rentabilidade, com a intensificação da competição econômica com países como a Alemanha e o Japão. Isso levou a uma taxa de crescimento mundial e um ‘espiral inflacionária internacional’, rememorativos da época do declínio relativo do Reino Unido um século antes. A segunda foi a crise da legitimidade que começou com a oposição doméstica e internacional à Guerra do Vietnã nos anos 1960 e culminou com a Revolução Iraniana em 1979. Pouco a pouco os EUA começaram a competir mais agressivamente com os fluxos globais do capital a fim de financiar seu déficit crescente. Tardiamente o país virou o coordenador financeiro global, mandando o excesso de liquidez dos seus bancos para o terceiro mundo em forma de dívidas, e exigindo o pagamento dessas dívidas a partir das condições políticas do ‘Consenso Washington’. Durante o período inteiro, e apesar da sua transformação em prosélito (neo) liberal, domesticamente os EUA jamais abandonaram as políticas protecionistas – a exemplo dos subsídios agrícolas.
Um novo colapso?
Antes da escalada da Guerra do Iraque e da crise financeira global, Silver and Arrighi apontaram em 2003 a emergência da China como verdadeiro rival econômico dos EUA – previsão que parece ter se tornado realidade. A ascensão da China não levou (ainda) à competição geopolítica agressiva com os EUA, devido à superioridade militar do último e a interdependência econômica dos dois países (e de outros atores regionais como o Japão). Ademais, a memória coletiva dos anos 30 evitaram um retorno do livre comércio presente no mundo nos anos antes da crise econômica, ou do protecionismo autárquico depois. Mesmo assim, a hipocrisia daqueles países de proteger seus setores chave (inclusive, agora, o setor financeiro), enquanto impõem as políticas do ajustamento estrutural em economias mais fracas, contribuiu para a rejeição do Consenso de Washington, por parte dos agrupamentos como os países do ‘BRIC’, e os países da ‘Maré Rosa’ na América Latina. Contudo, de modo contrário à expectativa de Silver e Arrighi, até agora este contramovimento no mundo periférico tem ocorrido sem um colapso violento, com a exceção única do Oriente Médio.
Ao invés disso, a crise financeira dos últimos cinco anos produziu uma centralização dos impactos do movimento liberal com as políticas da austeridade nos países da Europa, e em menor escala nos EUA. Ou tal vez seria mais preciso chamá-lo de uma ‘periferização’ dos setores pobres dos países ricos, e até países inteiros como a Grécia. Os países avançados, acostumados por muito tempo à prosperidade, têm perdido a capacidade de internalizar os benefícios e externalizar os custos do mercado livre. Parece que é nesses países que o novo contramovimento está aparecendo agora, embora ainda não seja claro em que direção vai se desenvolver. E qual será o seu caráter – de esquerda ou direita? Contará com o apoio das elites nacionais, em seu papel histórico de protetores da ordem social? E vai ser acompanhado de um colapso violento?
Acesse o artigo em inglês de Arrighi e Silver, aqui.
Última modificação em 27-03-2013