As metrópoles expressam e em certa medida aceleram a crescente desfusão do Estado-nação. Com efeito, o Estado-nação resultou da fusão – em um todo significativo – da autoridade central legítima, com os interesses privados e o sistema de solidariedade, o que implicou a construção da concepção democrática do poder político e a universalização dos direitos de cidadania. Esse processo foi diferenciado historicamente, correspondendo à trajetória histórica de cada sociedade na busca de resposta ao desafio de combinar a simultânea construção da comunidade política e da autoridade pública fundada em largas e profundas bases de legitimidade.
Como podemos depreender com base em vários autores a respeito das reformas sociais ocorridas nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França nos 30 primeiros anos do século XX, as cidades foram o laboratório da experimentação histórica da qual nasceram as instituições do moderno Estado-nação. Os desafios gerados pelo crescimento urbano acelerado, pela industrialização, pelas crises sanitárias e pela questão operária levaram as elites nacionais a transformarem a autoridade pública organizada e legitimada sob as bases das concepções liberais do Estado na autoridade que regula os interesses privados e distribui parcelas do bem-estar social através de um sistema público de solidariedade social. As metrópoles, nesta fase do capitalismo mundializado e fundado na economia de fluxos, expressam a crescente fragilização desse arcabouço institucional que, durante o século XX, pôde materializar a fusão entre interesses privados, solidariedade social e autoridade legítima.
Isso posto, cabe debater sobre as possibilidades de apreensão dos fenômenos sociais que se manifestam no urbano em toda sua complexidade, buscando superar os entraves que se apresentam ao investigador como produtor de conhecimento, ator social e agente político. Os textos aqui reunidos ampliam o caminho para a realização desse debate.
O artigo Governar as metrópoles: questões, desafios e limitações para a constituição de novos territórios políticos, de Christian Lefèvre, utiliza os resultados de suas pesquisas comparativas sobre os problemas da governança urbana de metrópoles europeias, mas não exclusivamente, para sistematizar e refletir sobre as dificuldades da constituição das metrópoles em territórios políticos. Evidencia a contradição entre o que vem apontando a literatura acadêmica a respeito da crescente relevância das metrópoles e a ação dos atores que constituem os principais protagonistas metropolitanos – o Estado, os poderes locais e atores da sociedade e do mercado, que desenvolvem comportamentos dissociados desta importância estratégica.
A compreensão de tais obstáculos pode ser aprofundada com a leitura dos artigos Efeito metropolitano e cultura política: novas modalidades de exercício da cidadania na metrópole de Lisboa, escrito por Manuel Villaverde Cabral, e o Metrópoles, cultura política e cidadania no Brasil, elaborado por Sérgio de Azevedo, Orlando Alves Santos Júnior e Luiz César de Queiroz Ribeiro. Os dois trabalhos têm origem no survey sobre cultura política e cidadania realizado em Portugal e no Brasil, respectivamente pelo Instituto de Ciências Sociais e o Observatório das Metrópoles, no qual foram utilizados os indicadores do Internacional Social Programme. Partem da interrogação sobre os reais fundamentos do crescente desengajamento dos cidadãos em relação à democracia que, para os quatro autores, decorre na realidade do desencantamento com relação ao desempenho da classe política dos atuais regimes representativos e não exatamente com relação aos valores democráticos. Portanto, o traço marcante das sociedades contemporâneas é a crescente erosão da legitimidade da autoridade pública.
Esta reflexão é enriquecida pela análise feita por Nelson Rojas sobre a dinâmica de representação política oriunda nas áreas urbanas e metropolitanas no Brasil. Embora se trate de um artigo ainda exploratório sobre a geografia social dos votos que constituem a Câmara dos Deputados Federais, o artigo apresenta duas constatações relevantes para o tema do presente número. Por um lado, a identificação de uma subrepresentação das áreas mais urbanizadas e “metropolizadas” do país e, por outro lado, um padrão de votos concentrado de nossos deputados metropolitanos. Como bem assinala Rojas, estamos diante de duas tendências não antecipadas pela tradição da sociologia eleitoral. Enquanto o país se urbaniza e constitui grandes metrópoles que concentram a riqueza, a população e os problemas sociais, os mecanismos de formação do poder legislativo nacional não expressam este fato na composição geográfica dos votos que elegem os deputados federais. Ao mesmo tempo, o artigo constata evidências da concentração dos votos dos deputados federais eleitos como votos metropolitanos, o que pode indicar a existência de um novo fenômeno, este sim ainda menos esperado pela sociologia política, ou seja: a existência de um paroquialismo eleitoral nas metrópoles, o que deveria ser traço em eliminação com o avanço da modernização cultural e o aumento da competitividade eleitoral nos grandes centros urbanos do país.
O quadro esboçado por estes artigos nos permite aprofundar a reflexão sobre os balanços das experiências de gestão das metrópoles, não apenas no Brasil, pois a mencionada dissociação está presente, com maior ou menor força, em todas as sociedades. Neste sentido, são de grande relevância os cinco artigos Novas governanças para as áreas metropolitanas. O panorama internacional e as perspectivas para o caso brasileiro; Governança, governo ou gestão: o caminho das ações metropolitanas; Avaliação de novos projetos urbanos metropolitanos. Limites do ente federativo municipal; Padrões espaciais de ociosidade imobiliária e o Programa Morar no Centro da Prefeitura de São Paulo (2001-2004) e Gestão metropolitana e gerenciamento integrado dos recursos hídricos. No primeiro, Jeroen Johannes Klink chama a atenção para a necessidade de considerar as diversidades de experiências práticas buscadas pelos atores presentes na cena pública das regiões metropolitanas em várias escalas, através de ações de cooperação intergovernamental em políticas setoriais, como respostas às dificuldades da construção de arcabouços institucionais mais abrangentes. Constata a existência de um caleidoscópio de arranjos institucionais existentes nas regiões metropolitanas brasileiras; ações úteis mas incapazes de fundarem uma autoridade pública sobre o território metropolitano. Peter Kevin Spink, Marco Antonio Carvalho Teixeira e Roberta Clemente utilizam no segundo artigo, resultado de largo estudo empírico, na elaboração de balanço das experiências brasileiras de gestão metropolitana. Concluem também com a reflexão sobre os limites da utilização da ferramenta dos consórcios intermuncipais. O terceiro artigo, de autoria de Eulalia Portela Negrelos, descreve duas operações urbanas na Região Metropolitana de São Paulo para demonstrar os obstáculos das ações de cooperação em projetos de grande vulto decorrentes da inexistência de segurança institucional e de recursos decorrentes do nosso pacto federativo. Em uma linha semelhante de análise, é o quarto artigo, escrito por Fernando Cardoso Cotelo, que examina as falhas do Programa Morar no Centro implementado entre 2001 e 2004 pela Prefeitura de São Paulo em articulação com a Caixa Econômica Federal. Já o artigo assinado por Paulo Roberto Ferreira Carneiro e Ana Lúcia de Paiva Britto analisa as frequentes e dramáticas inundações na periferia da metrópole do Rio de Janeiro como efeitos catastróficos sobre a população, da inexistência de articulação do planejamento do uso do solo, de competência municipal, e a gestão dos recursos hídricos, de competência estadual. Esta desarticulação poderia ser resolvida se estes níveis de governo tomassem as bacias urbanas que reúnem grande quantidade de rios e córregos como espacialidade e conceito de um sistema de gestão integrada dos recursos hídricos da metrópole fluminense. A questão, neste e nos outros artigos mencionados, é despolitização do território metropolitano.
O artigo Planejamento urbano em Belo Horizonte: análise da atuação dos conselhos municipais na gestão da cidade, de autoria de Mônica Abranches, relata os resultados de pesquisa empírica sobre ação dos Conselhos Municipais de Belo Horizonte, procurando examinar a contribuição destas novas esferas de articulação entre a sociedade civil e os governos locais em regiões metropolitanas na constituição de políticas públicas democráticas e efetivas. O artigo assinado por Luciano Fedozzi, sob o título Cultura política e Orçamento Participativo, descreve interessantes resultados do survey realizado junto aos delegados do conhecido processo decisório do orçamento participativo do município de Porto Alegre, no qual foi utilizada parte importante dos indicadores sobre atitudes e valores de cidadania usados nos surveys brasileiro e português mencionados anteriormente. Já o artigo Planejamento numa sociedade em rede. Práticas de planejamento colaborativo no Brasil, de autoria de Nilton Ricoy Torres, ao analisar algumas experiências de articulação entre atores de movimentos sociais, planejadores e cidadãos, postula a hipótese da emergência, nas metrópoles brasileiras, de um novo paradigma de gestão fundada na interação entre atores através de redes de informações, onde negociação e conflito estariam instaurando uma prática dialógica de planejamento.
A pergunta que este número dos Cadernos Metrópole não alcança responder é: que forças da sociedade brasileira estão verdadeiramente interessadas em tal projeto?
Responder a esta pergunta tornou-se um imperativo e um desafio para a coesão do Estado com a nação brasileiros. Apesar do aumento das assimetrias, as metrópoles aumentaram seu papel indutor do desenvolvimento econômico nacional. Para que as metrópoles sejam, porém, mais do que mera plataforma de atração de capitais, mas, ao contrário, constituam-se em territórios capazes de reterritorializar a economia e de impedir o aprofundamento da disjunção entre Estado e nação é necessário que contenham os elementos requeridos pela nova economia de aglomeração da fase pós-fordista, entre os quais se destacam os relacionados aos meios sociais germinadores da inovação, confiança e da coesão social. As metrópoles devem, portanto, se constituir em meios sociais capazes de promover a inovação, a confiança e a coesão social, tornando-se veículos da junção entre Estado e nação.
Apesar de seus desequilíbrios, o nosso sistema urbano constitui importante ativo para o desenvolvimento nacional. Os quinze espaços considerados metropolitanos têm enorme importância na concentração das forças produtivas nacionais. Mas, ao mesmo tempo, neles estão concentrados também os grandes desafios a serem enfrentados, na forma de passivos resultantes de um modelo de urbanização organizado essencialmente pela combinação entre as forças de mercado e um Estado historicamente permissivo com todas as formas de apropriação privatistas das cidades. Como consequência de sua história e do caráter de sua configuração, as metrópoles brasileiras estão hoje despreparadas, material, social e institucionalmente para o crescimento econômico baseado na dinâmica da inovação, na economia do conhecimento e na eficiência que mobilizam não apenas a lógica do mercado, mas também os efeitos positivos da coesão social. Nelas está conformado um conjunto de passivos cujo enfretamento é imperativo para que forças produtivas consteladas na complexidade de nossa rede urbana possam alavancar o desenvolvimento nacional.
Última atualização em Qua, 03 de Março de 2010 20:11