A PEC 55 representa mais uma ofensiva conservadora de nova rodada de privatizações e concessões públicas e a retirada de direitos sociais conquistados ao longo de todo o século XX, tendo como alvo prioritário a Constituição Federal. Um conjunto de medidas – aumento da jornada de trabalho, retirada de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, contrarreformas dos ensinos médio e superior – é apresentado pelo Executivo e Legislativo sem apoio popular, mas com respaldo dos oligopólios de comunicação, das altas esferas do Judiciário e dos setores mais reacionários da classe média.
A PEC 241 e a blindagem constitucional da hegemonia rentista
Por Rodrigo Castelo
No processo de colonização das Américas, mediante a expropriação massiva dos meios de produção e reprodução das civilizações indígenas, Pindorama se tornou Brasil para atender aos interesses das classes dominantes externas. O Estado nacional, na forma da metrópole portuguesa, foi determinante na pilhagem dos recursos naturais e na exploração de índios e negros tornados escravos. O objetivo era alimentar os circuitos da acumulação primitiva do capital que então se desenvolvia em alguns países da Europa Ocidental. Estado e capital andaram juntos na alvorada mundial do modo de produção capitalista, e nunca mais se separaram.
Após a Independência de 1822, o Estado brasileiro atuou vivamente na manutenção de condições gerais para o enriquecimento das classes proprietárias nacionais e internacionais, seja com intervenções na economia seja no uso da coerção contra as distintas revoltas indígenas, quilombolas e populares ao longo do Império. E assim foi em outros períodos históricos: na República Velha com o tratamento da questão social como “questão de polícia” e as intervenções cambiais, monetárias e fiscais para garantir o lucro dos latifundiários; na Era Vargas com a perseguição brutal a Aliança Nacional Libertadora (ANL) e aos comunistas e o apoio à industrialização centrado na burguesia paulista; na ditadura empresarial-militar de 1964-85 com prisões, torturas, exílio e morte dos seus opositores e a mudança do padrão de acumulação concorrencial para o monopolista, com hegemonia do capital financeiro internacional.
O que mudou, de acordo com a correlação de forças nas lutas de classes nas várias fases do capitalismo dependente, foi a forma pela qual o Estado atuou tanto na garantia das condições gerais da acumulação capitalista quanto no combate às revoltas, motins, greves e revoluções populares. Esta atuação sempre combina coerção e consenso para a manutenção da supremacia burguesa, composta pelas suas distintas frações (comercial, industrial, agrária, financeira, etc.) e suas expressões nacionais e internacionais.
Na transição da ditadura empresarial-militar para a Nova República, foi preciso contemplar, pela via do consenso, algumas demandas históricas da classe trabalhadora, que havia arrancando, com o seu processo de reorganização político-cultural a partir do final dos anos 1970, direitos civis, políticos e sociais. Tais direitos foram consagrados na Constituição Federal de 1988 que, contemplava, ao mesmo tempo, vitórias das classes dominantes a partir da atuação do Centrão e conquistas dos trabalhadores. Neste choque entre as classes, a Constituição foi chamada de cidadã para celebrar as significativas e parciais vitórias das classes subalternas, mas nela também estavam contidos antigos privilégios das classes dominantes, acrescidos de novos. E mesmo alguns direitos sociais inscritos na lei máxima do país nunca saíram do papel ou, quando foram efetivados em políticas sociais – com destaque para a seguridade social (saúde, previdência e assistência social) –, ficaram limitados pela coerção gerenciada pela política econômica neoliberal dos anos 1990 em diante.
Na era neoliberal, instaurada a partir do governo Collor e aprofundada nos governos FHC, Lula e Dilma – com diferenças que merecem as devidas mediações teóricas e políticas –, o Estado nacional continuou a serviço dos interesses das classes dominantes, hegemonizados pelos interesses das frações rentistas da burguesia. O Estado não se tornou mínimo, a não ser na retórica de ufanistas neoliberais. Na prática, a acumulação capitalista contou decisivamente com a atuação direta e indireta do Estado: a privatização dos ativos públicos com financiamento estatal, a política monetária de juros altos, a liberalização das contas internacionais, a expropriação tributária dos salários que alimenta mais da metade do fundo público, a política fiscal direcionadora do fundo público para os fundos privados bilionários dos detentores dos títulos da dívida pública, a retirada de direitos sociais e etc.
O golpe de 2016 no Brasil é, talvez, o capítulo mais dramático do neoliberalismo. Inscrito numa conjuntura internacional de crise orgânica do capitalismo, que alia crise econômica e crise de hegemonia – com aumento brutal da coerção estatal e de grupos paraestatais exercida contra a classe trabalhadora, ganhando ares neofascistas –, o golpe legislativo-midiático-judiciário leva o vice-presidente Temer ao posto máximo do Executivo. A sua função histórica é retomar, a qualquer custo, as taxas de lucro declinantes no país e de apassivar os crescentes rompantes de rebeldia popular (greves operárias e de servidores públicos, ocupações estudantis, urbanas e rurais, levantes indígenas, as lutas dos movimentos feminista, negro e LGBT). Para isto, Temer reabilita figuras típicas do rentismo burguês, que recentemente ocuparam postos-chave por anos a fio nos aparelhos coercitivos estatal de expropriação e exploração (Banco Central, Receita Federal, BNDES, Ministérios da Fazenda e do Planejamento, empresas e bancos estatais), e monta uma camarilha financeira para determinar as diretrizes centrais da política econômica.
A hegemonia das frações rentistas no bloco de poder dominante não é uma novidade histórica do governo golpista de Temer. Esta foi a tônica na era neoliberal em todos os governos desde FHC, como atestam os balanços patrimoniais dos grandes conglomerados capitalistas internacionais e nacionais e as principais medidas da política econômica nos últimos vinte anos. Estamos, portanto, não diante de uma restauração neoliberal com o golpe, mas sim de uma nova etapa do neoliberalismo, a mais radical no sentido de atacar direitos sociais que nem mesmo os governos anteriores (PSDB e PT) conseguiram levar a cabo ou mesmo colocaram em pauta.
Colocou-se em movimento uma ofensiva conservadora de nova rodada de privatizações e concessões públicas e a retirada de direitos sociais conquistados ao longo de todo o século XX, tendo como alvo prioritário a Constituição Federal. Um conjunto de medidas – aumento da jornada de trabalho, retirada de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, contrarreformas dos ensinos médio e superior – é apresentado pelo Executivo e Legislativo sem apoio popular, mas com respaldo dos oligopólios de comunicação, das altas esferas do Judiciário e dos setores mais reacionários da classe média.
Medidas similares foram implementadas anteriormente, mas não na velocidade e intensidade das apresentadas no governo golpista. Temos, assim, mudanças quantitativas e qualitativas no projeto neoliberal. A PEC 241, apelidada carinhosamente de #PecDoFimDoMundo, surge como o maior símbolo desta inflexão na nova fase do capitalismo dependente brasileiro. Por quê?
A PEC 241 não é um raio em céu azul de brigadeiro. Antes dela, o país passou por um contínuo ajuste fiscal desde os acordos assinados por Fernando Henrique Cardoso com o Fundo Monetário Internacional em 1998, garantido o superávit primário como um dos pilares do tripé da política econômica neoliberal (os outros dois são a meta inflacionária e o câmbio flutuante). De 1994 para cá, um conjunto de leis foi escrito pelas classes dominantes no parlamento nacional para construir a base jurídica do Plano Real, uma das âncoras do projeto neoliberal. Basta lembrarmos da Desvinculação de Receitas da União (criada como Fundo Social de Emergência, depois Fundo de Estabilização Fiscal), que recentemente aumentou de 20 para 30%, e a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), fortalecendo a orientação do gasto público para o pagamento maciço da dívida interna.
Em poucas palavras, com esta nova legislação o governo define como prioridade o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública. Este novo padrão de gastos públicos, que enfraquece os mecanismos constitucionais de alocação de recursos para as políticas sociais, foi garantido pela correlação de forças favorável às classes dominantes. Ou seja, havia margens na disputa pelo fundo público, pois havia a possibilidade de crescimento dos gastos com políticas sociais e anticíclicas, mesmo que limitada pela nova legislação neoliberal e a sujeição dos sucessivos governos ao projeto das classes dominantes.
Hoje, caso a PEC 241 seja aprovada, a margem de disputa do fundo público em favor do trabalho será nula! Os gastos com as políticas sociais ficarão congelados em termos reais pelos próximos vinte anos, só podendo ser reajustados nominalmente de acordo com o índice inflacionário do ano anterior, desconsiderando as taxas de crescimento econômico e as demográficas. A expropriação do fundo público em favor dos grandes conglomerados do capital financeiro financeirizado chegará a um patamar superior.
Para termos uma noção estimada dos impactos da PEC 241 nas políticas sociais caso ela estivesse em vigor no período de 2002 a 2015, vale recorrermos a uma nota técnica elaborada pelo Dieese.* De acordo com o texto do Departamento, “no caso da educação, com a nova regra, a redução seria de 47%, no período. Já em relação às despesas com saúde, a redução seria de 27%. Em relação ao montante de recursos, a perda na saúde, entre 2002 e 2015, teria sido de R$ 295,9 bilhões e, na educação, de R$ 377,7 bilhões.”. No total, estamos falando de R$ 673,6 bilhões expropriados das políticas sociais e apropriados pelos donos da dívida pública interna.
Com a PEC 241, a mudança de padrão do gasto público será garantida constitucionalmente, numa espécie de transformismo do constitucionalismo do socialismo del siglo XXI. Recentemente, Venezuela, Bolívia e Equador, a partir de lutas contra a dependência externa e interna, conseguiram incorporar direitos sociais às políticas de Estado por meio de reformas constitucionais e uma série de referendos populares. No Brasil, estamos na via contrária, na qual as classes dominantes alteram a Constituição para destruir direitos sociais e consagrar a plutocracia burguesa, tornando os espaços democráticos meros simulacros da política.
O fundo público e os aparelhos estatais de política econômica – aqui intitulados de aparelhos coercitivos de expropriação e exploração – são, assim, blindados de acordo com a hegemonia rentista dentro do bloco de poder dominante. Os limitados espaços de decisão democrática no Legislativo, por exemplo, são tornados irrelevantes sem serem destruídos. Mantém-se a aparência de legalidade e democracia das decisões governamentais quando, no fundo, o poder está altamente concentrado nas mãos dos bilionários e fora do alcance institucional das classes subalternas. O golpe segue, aparentemente, os ritos da Casa do Povo sob a condução do Supremo Tribunal Federal e o poder central é reafirmado no Executivo.
Dentre os Três Poderes, o Executivo se torna um bunker tecnocrático respaldado na Constituição, via PEC 241, por exemplo, para operar métodos intensificados de exploração da classe trabalhadora e expropriação de seus direitos sociais e seus meios de produção ainda disponíveis na forma pública (terras, água, florestas, subsolo, etc.). O Estado amplia os seus aparatos coercitivos policiais, legislativos e econômicos e maximiza a sua força na captura da riqueza nacional para benefício de muito poucos, e a lei tendencial de concentração e centralização de capital nas mãos dos grandes conglomerados econômicos se reafirma na atualidade do capitalismo dependente brasileiro.
Com o avanço da ofensiva conservadora das classes dominantes, os subalternos devem ousar construir o poder popular, com ocupações, mobilizações, paralisações e greves gerais. Somente desta maneira poderemos sair da defensiva e pautar um projeto autônomo de classe, que lute não somente contra os ataques mais agudos do neoliberalismo, mas também do imperialismo e do capitalismo dependente na sua atual fase.
* DIEESE. PEC 241 nº 241/2016: o novo regime fiscal e seus possíveis impactos. Nota técnica n.161, setembro de 2016. Disponível aqui. Acesso em 23 de out. 2016.
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Rodrigo Castelo é Professor da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), membro do Grupo de Trabalho (GT) Teoria Marxista da Dependência da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP) e presidente (2015-2017) da Adunirio, seção sindical do Andes-SN na Unirio. É um dos autores do dossiê “Que desenvolvimentismo?” do número #23 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda. Colabora com o Blog da Boitempo especialmente para o dossiê “Não à PEC 241”.