Skip to main content

Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, e o presidente Michel Temer

O Observatório das Metrópoles divulga mais uma análise do Dossiê Especial “Não à PEC 241”, do blog da Boitempo Editorial. No texto “PEC 241: a ofensiva do capital”, o professor Luis Felipe Miguel (UnB) mostra que, além da proposta obscena do Estado mínimo para o país, a PEC aponta para um regime tributário cada vez mais regressivo. “Já temos, no Brasil, um sistema de taxação que penaliza o trabalho e o consumo e beneficia os ganhos de capital. Ao congelar o investimento social, mas reafirmar o caráter sacrossanto da dívida pública, a PEC projeta um país em que todos pagam impostos, com pouquíssimo retorno em serviços públicos, para que alguns poucos ganhem com o rentismo. É uma política tributária que leva à concentração da renda e da riqueza”.

A Rede INCT Observatório das Metrópoles tem divulgado análises sobre a PEC 241 para apoiar o debate amplo contra os retrocessos políticos e sociais no país em um contexto de crise. A PEC (que agora mudou de numeração 55) prevê o congelamento dos investimentos públicos durante vinte anos, passando por cima de direitos e garantias constitucionais.

E o governo de Michel Temer tem pressa para a sua aprovação, com o objetivo de preterir um debate público amplo. A primeira votação acontece no próximo dia 29 de novembro. E a segunda e derradeira em 13 de dezembro. Portanto, resta pouco tempo para barrar a Proposta de Emenda Parlamentar que pode representar um retrocesso social no país.

PEC 241: A ofensiva do capital

Uma crítica comum aos governos do Partido dos Trabalhadores, feita por setores à esquerda, é que eles teriam apostado na conciliação de classes. Os trabalhadores e os mais pobres teriam vantagens, mas sem que fosse colocada em risco a remuneração do capital e a reprodução do sistema. Combate à miséria extrema, um tanto de segurança social, um tiquinho de redistribuição, ampliação do padrão de consumo – esses eram os ganhos. Em troca, os lucros dos bancos e das grandes empresas permaneciam intocados e o PT, na posição de organização líder da esquerda brasileira, abandonava qualquer projeto de enfrentamento mais radical da ordem capitalista.

O golpe de maio/agosto de 2016 mostrou que esse projeto de conciliação foi rompido unilateralmente pela burguesia. Entre as muitas medidas que revelam o programa que o governo ilegítimo de Michel Temer deseja implantar, a PEC 241 é a mais cristalina. A PEC é a tentativa de engessar as políticas do Estado brasileiro por vinte anos, isto é, por cinco mandatos presidenciais – feita por um presidente que não conquistou nenhum mandato.

Há muito o que discutir na PEC, mas o principal talvez seja a falta de discussão. É uma proposta com enorme impacto na vida do país, mas foi simplesmente tirada de uma gaveta: não houve debate com a sociedade e não há debate no Congresso, em que a os parlamentares da situação, instruídos pelo governo Temer, estão apenas cumprindo o ritual, da maneira mais acelerada possível.

O que existe, isso sim, é uma enorme campanha de desinformação, com o objetivo exatamente de impedir a reflexão sobre a emenda constitucional. Participam da campanha o governo, os diversos grupos à direita que o apoiam e, com destaque, os meios de comunicação empresarial, por meio de editoriais, da maior parte das colunas de opinião e, em especial, da cobertura jornalística seletiva.

Para as franjas mais destituídas de instrumental crítico, difundem-se – por meios informais – noções fantasiosas, como a de que o objetivo da PEC é impedir que os políticos aumentem seus próprios salários. Sempre é possível também usar a carta do anticomunismo, o que o governo faz com sua ambígua campanha publicitária sobre “tirar o país do vermelho”. A PEC é expressamente apresentada como uma arma contra o comunismo em textos inacreditáveis divulgados por movimentos de extrema-direita, como o MBL.

Para os setores um pouco mais informados, a estratégia é outra e se desdobra em duas faces. Por um lado, a PEC é apresentada como um imperativo técnico para “equilibrar” as contas públicas. É o argumento preferido da imprensa. Por outro, há um esforço significativo para escamotear os efeitos da PEC no financiamento de serviços públicos como educação e saúde. O discurso oficial é que não haverá perda, apenas “racionalização”. Com a truculência que se tornou marca do novo governo, funcionários públicos que ousam mostrar dados diversos são afastados. No entanto, todos os economistas sérios, independentemente de posição política, têm apontado que a PEC gerará uma imensa crise no financiamento da saúde e da educação, além do achatamento do poder de compra do salário mínimo.

Há um projeto por trás disso, que no entanto não é trazido para o debate. Quando, num vídeo que ficou famoso nos últimos dias, o deputado Nelson Marquezelli se exaltou e soltou a frase “quem não tem dinheiro não faz universidade”, ele indicou a visão de que não cabe ao Estado fornecer nenhum tipo de serviço, de que cada um deve comprá-los no mercado de acordo com os recursos de que dispõe. É o “Estado mínimo”, que grupos da direita tanto exaltam.

Trata-se do programa do liberalismo extremado, assumido pelos grupos mais intelectualizados da direita, aqueles que carregam cartazes pedindo “mais Mises”, filiam-se ao novo partido do Itaú ou frequentam os cursinhos patrocinados pela Atlas Foundation. Esse seria o momento para eles travarem o debate em favor de sua visão de mundo. No entanto, preferem se esconder por trás do muro de desinformação. Eles sabem que – em qualquer lugar, mas sobretudo num país como o Brasil – a tese do Estado mínimo chega a ser obscena.

A contraface desse programa é o familismo, não por acaso também um dos pilares do governo golpista (como mostrou o já tristemente famoso discurso de Marcela Temer). Quanto mais o Estado deixa de oferecer suporte, mais é responsabilidade das famílias garantir proteção, segurança e condições de desenvolvimento para seus integrantes. Daí para a denúncia da dissolução da família tradicional como culpada pela crise social, como no discurso da direita estadunidense, é um passo.

Além do Estado mínimo, que se retira do fornecimento de serviços públicos, a PEC aponta para um regime tributário cada vez mais regressivo. Já temos, no Brasil, um sistema de taxação que penaliza o trabalho e o consumo e beneficia os ganhos de capital. Ao congelar o investimento social, mas reafirmar o caráter sacrossanto da dívida pública, a PEC projeta um país em que todos pagam impostos, com pouquíssimo retorno em serviços públicos, para que alguns poucos ganhem com o rentismo. É uma política tributária que leva à concentração da renda e da riqueza.

A resistência à PEC depende de difundir informação e de politizar a discussão. Há um enorme atraso no debate, que precisa ser vencido. Isto é, é necessário desconstruir uma quantidade de percepções que vêm sendo marteladas há décadas e que impedem uma abordagem adequada das questões tocadas pela PEC 241.

É necessário desvelar e denunciar a lógica do financiamento do Estado brasileiro, uma das mais atrasadas do mundo. É necessário deixar claro que estamos longe de uma questão técnica, mas sim diante da decisão sobre a quem o Estado irá servir. É necessário desmontar a ideia de que se paga imposto demais no Brasil. É necessário indicar a cumplicidade histórica do Estado brasileiro com a sonegação. É necessário mostrar que há uma disputa e que, de acordo com a PEC, os pobres e os trabalhadores perdem para que os ricos ganhem. É necessário esclarecer o que é o orçamento da União e onde o dinheiro é gasto, revelando a parte que cabe à remuneração da dívida pública, isto é, à renda dos especuladores. É necessário desfazer o símile fácil e enganoso que iguala orçamento público e orçamento doméstico, para criticar os “gastões”. É necessário desconstruir o discurso que exalta a responsabilidade fiscal às custas da irresponsabilidade social.

A derrota da PEC exige mobilização e esclarecimento. Sua vitória representará o triunfo do programa regressivo e antipopular do golpe, com um legado de atraso que, mesmo depois dos vinte anos malditos, o país demorará décadas para recuperar.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014).


Leia também:

10 perguntas e respostas sobre a PEC 241

Marcio Pochmann compara PEC 241 ao primeiro ato da Ditadura Militar