José Borzacchiello da Silva¹
Harvey afirma que “Um passo para a unificação dessas lutas é adotar o direito à cidade, como slogan e como ideal político, precisamente porque ele levanta a questão de quem comanda a relação entre a urbanização e o sistema econômico. A democratização desse direito e a construção de um amplo movimento social para fazer valer a sua vontade são imperativas para que os despossuídos possam retomar o controle que por tanto tempo lhes foi negado e instituir novas formas de urbanização. Lefebvre estava certo ao insistir em que a revolução tem de ser urbana, no sentido mais amplo do termo; do contrário, não será nada”².
Para começar
Outra cidade é possível e o povo nas ruas faz pressão na luta cotidiana exigindo seus direitos. Os ecos aos poucos são ouvidos pela imprensa e nas redes sociais, as mobilizações dos movimentos populares ganham visibilidade e incomodam os ouvidos dos detentores do poder. A periferia tem voz, tem cor, quer falar. Esses sujeitos sociais se cansaram do anonimato, querem aparecer como eles são com seus nomes, suas ocupações, suas preferências religiosas, orientação sexual sem preconceito de cor e sem o tradicional machismo que submete e humilha mulheres, idosos e crianças.
A conjuntura favorece os movimentos que se renovam e inserem novas reivindicações, questões ligadas à segurança alimentar, instalação de cozinhas comunitárias, o respeito às diferenças e à diversidade, reforçam ainda, antigas demandas como segurança pública, mobilidade urbana e livre acesso ao consumo da cidade. Discutem a trágica situação vivida nos embates pelo controle do território das comunidades e favelas entre facções e milícias. Inteiraram-se da situação da necropolítica, conscientes, que dentre eles muitos corpos tornam-se matáveis, de preferência, os corpos de jovens negros. São esses corpos em diferentes movimentos que produzem a cidade em várias dimensões de seu cotidiano, e dependem dela para sobreviver. A interpenetração de diferentes movimentos da vida na cidade e as relações intra e extra-urbanas são eivadas de situações contraditórias, permeadas pela busca de direitos que garantam a permanência de trabalhadores na cidade, seus verdadeiros produtores.
Apresentando um problema complexo
A produção da cidade inserida no processo de urbanização contém o germe do uso especulativo do solo, cada vez mais com raízes fincadas nas entranhas de um contexto político e econômico fundado na assimetria social. No Brasil, os megaeventos exigiram a concepção e execução de megaprojetos que acentuaram o uso especulativo do solo urbano. Foi um período de marchas, ocupações e greves de diferentes categorias profissionais. Junho de 2013 foi o mês que o país acompanhou uma sucessão de manifestações que adquiriram grande vulto e repercussão. As grandes metrópoles e demais cidades vivenciaram a eclosão de movimentos de forte pressão em torno do passe-livre. Em seguida, outras bandeiras de luta foram incorporadas, especialmente, aquelas com fortes críticas aos megaeventos como a realização da Copa das Confederações em 2013 e a Copa do Mundo, realizada nos meses de junho e julho de 2014, além das Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro.
Essas manifestações gigantescas adquirem novo formato, apresentam inovações quanto à sua organização e impactam fortemente as cidades brasileiras, era o novo nos espaços públicos. Os eventos de junho de 2013 e de 2014 ganharam forte expressão nas redes sociais. A convocação atraía diferentes sujeitos. As manifestações ocupavam ruas e praças. O apelo da mídia digital adquire expressão espacial e desenha fluidos espaços de conflitos e confrontos na cidade.
A Conjuntura Nacional
No plano político a sociedade brasileira acompanhou o processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016. Uma sessão do Congresso Nacional ficou gravada na história pelos argumentos infundados, que resultaram na deposição de uma presidente legitimamente eleita. Dilma foi substituída por seu vice, Michel Temer. Com a eleição de Jair Messias Bolsonaro, em 2018 numa coligação de centro-direita o país começa a enfrentar sérios problemas, inclusive, a elevação considerável do percentual de desempregados e o sucessivo aumento de pobres e miseráveis. A situação tornou-se pior com a pandemia da Covid-19 que acossou e acossa o mundo a partir de 2020. O Brasil proporcionalmente é o país com o maior número de mortes provocadas pela doença. A postura negacionista do governo federal retardou a tomada de medidas que culminassem com a obrigatoriedade do uso de máscara, lavagem ou uso do álcool in gel para desinfetar as mãos e apoio na produção nacional e importação de vacinas. Nesse contexto, mais uma vez, o pobre trabalhador foi vítima preferencial. No país, os movimentos sociais pareciam arrefecidos, entretanto, nas comunidades, ações coletivas de solidariedade, atenuavam a situação. O ano eleitoral de 2022 acirra o debate e devolve o ânimo aos movimentos que se organizam e se mobilizam de diferentes formas.
A Reforma Urbana e o Direito à Cidade
Assim, a organização popular mantém-se mobilizada e luta por seus direitos, se organiza para que a reforma urbana se realize com base em pressupostos capazes de ultrapassar os ditames de um limitado programa habitacional. O embate do movimento com a política de acesso à terra urbana condena a especulação imobiliária e se mobiliza contra a política centrada no financiamento de moradias voltadas à parcela mais pobre da população. Os pressupostos do direito à cidade estão enraizados nos movimentos populares, todos cientes de que não querem concessão e sim, direitos. Os movimentos populares resgatam o processo interrompido em 2013 quando o povo ganhou as ruas para protestar. Apesar do gigantismo alcançado pelas manifestações, a pauta específica da reforma urbana não foi observada e teve pouco espaço, muito embora a questão da mobilidade adquirisse visibilidade, principalmente pela insatisfação com os serviços de transporte público em todo o país.
Os grupos de luta pela reforma urbana acreditam que ela deve ocorrer a partir de iniciativas da própria população organizada na base, através de projetos e, principalmente, de consultas populares.
A pauta dos movimentos sociais parte do pressuposto que as cidades são lugares excepcionais do acontecimento da vida contemporânea, inseridas numa trama complexa de atividades onde esses espaços mostram-se dinâmicos e também contraditórios e de difícil interpretação. O crescimento demográfico e a pujança econômica, por sua vez, não foram capazes de provocar distribuição mais equitativa de bens e serviços sob a ótica da justiça social. Ao contrário, a cidade em expansão negligenciou parte significativa de seus espaços, especialmente, aqueles localizados nas áreas periféricas ou não valorizados pelo capital imobiliário. Setores densamente povoados contrastam com outros, aprazíveis, independente de seu potencial paisagístico. O aviltamento do uso comprometeu mais ainda o que já era exíguo em relação às demandas da sociedade.
Mudando a Cidade
No bojo das reivindicações populares, os cidadãos demandam ações de maior porte, vulto e impacto através de aparato jurídico capaz de frear a especulação imobiliária e garantir melhor qualidade de vida nas cidades. Os movimentos sociais retornam à cena política e têm sido analisados como atores importantes no processo de produção do espaço urbano, considerando os aspectos da sua conjuntura política, cultural e territorial. Com o lema “Mudando a Cidade, quem muda a cidade somos nós: reforma urbana já”, os movimentos sociais reafirmam a posição de que as cidades brasileiras continuam sendo produzidas sem um ordenamento capaz de assegurar qualidade de vida para os cidadãos e sustentabilidade para o crescimento futuro, tradução de bem-estar para todos.
Com a atualização da pauta os novos movimentos sociais organizados por meio das redes digitais, mostraram outra face e são capazes de provocar mobilizações que se estendem por todo o país. As redes sociais firmaram-se como um novo instrumento com forte poder de mobilização e se inscrevem na paisagem urbana.
Integrar a Cidade Fragmentada
O povo nas ruas pede mudanças, exige melhores condições de vida. A cidade fragmentada se revela e é longa a lista dos problemas detectados. Os bairros periféricos precários em infraestrutura e serviços separam e isolam as pessoas, resultado de um zoneamento perverso que distancia o local da moradia do local de trabalho, de estudo, de lazer, etc. A carência de espaços públicos também compõe a pauta. Na cidade, espaços públicos adquirem significado especial. É o lugar preferencial de todos, é o espaço das manifestações de toda ordem, das reivindicações mais simples às mais complexas, do encontro e da festa, da ordem e da desordem.
Para Lefebvre (1999-30) a rua “é o lugar (topia) do encontro, sem o qual não existem outros encontros possíveis nos lugares determinados (cafés, teatros, salas diversas). Esses lugares privilegiados animam a rua e são favorecidos por sua animação, ou então não existem”³.
Os movimentos sociais reivindicam a cidade total, justa e igualitária. No bojo das reclamações, o apelo por mais qualidade e eficiência nos transportes coletivos. A constatação de uma mobilidade urbana lenta e difícil com transporte coletivo de má qualidade atormenta todos os dias os passageiros e piora, mais ainda, nos finais de semana. A mobilidade é enfrentada em transportes coletivos raros e deficientes que maltratam o corpo trabalhador submetido a longas jornadas.
Nas cidades o serviço de transporte está longe de atender às múltiplas demandas. Permanece insatisfatória a oferta de meios mais rápidos, eficazes e com tarifas mais justas, se considerada a qualidade do que tem sido oferecido. Diariamente crianças, idosos e portadores de necessidades especiais são constrangidos a usarem ônibus com degraus altíssimos e imensas roletas, aliás, um incômodo para todos. Nos deslocamentos cotidianos o usuário faz verdadeiras acrobacias. Permanece boa parte do dia no interior de ônibus ou nas paradas. Reclama da demora e da falta de segurança. Os serviços de transporte nos bairros periféricos são piores. O corpo na cidade é submetido a ritmos, à disciplina, à regulação do tempo, uma verdadeira modelagem às diferentes manifestações da vida urbana: corpo que trabalha, corpo que repousa, que raciocina, estuda, se alimenta, ama, sorri, chora, vive.
A Utopia da Busca da Cidade Sustentável
A busca pela cidade sustentável se inscreve na utopia da construção de cidades capazes de estabelecer uma relação satisfatória no binômio saúde/doença, em conformidade com os avanços técnico-científicos alcançados nas áreas vinculadas à gestão urbana, especialmente as de medicina, engenharia e gestão. A busca por melhor qualidade das condições de vida e a divulgação dos índices coloca as questões de saúde e de educação no cerne das disputas políticas. Temas como saneamento básico, coleta e destino dos resíduos sólidos, reciclagem, dentre outros, estão cada vez mais inseridos na ambiência cultural das populações e do reconhecimento de suas determinações biopsicossociais e econômicas no mundo contemporâneo. A questão da qualidade vem se impondo e reorientando os diferentes campos de ação, inclusive o da saúde.
Para Encerrar
É legítimo se almejar a cidade ideal. Entretanto, é um direito o acesso à cidade que seja cada vez melhor, que registre em sua gestão o interesse em melhorar as condições de vida de seus cidadãos. Os movimentos sociais crescem e pleiteiam o atendimento de suas demandas de forma mais justa e igualitária. Os movimentos têm consciência que a luta cresce inserida na crítica à lógica capitalista e que o espaço urbano decorrente, implica na produção contraditória de territórios que ostentam em sua forma, função e conteúdo as diferenças ambientais e sociais ligadas às condições gerais do uso do solo, capazes de revelar a maior ou menor presença ou ausência do planejamento e gestão na perspectiva do direito à cidade. As projeções são aconselhadas e a previsão desejada. Pensar a cidade implica no conhecimento mais profundo e eficaz de seus problemas e proposição de medidas que atendam os clamores populares. Os movimentos populares nas ruas aguardam a cidade que os cidadãos possam consumir, desfrutar, viver. João do Rio em seu livro “A alma encantadora das ruas”⁴, publicado em 1908, já dizia que ”As ruas e praças têm alma, têm vida, têm sentido”. Revelava o peso e a expressão das artérias e dos espaços públicos em geral na animação da vida urbana.
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¹ Professor Titular e Emérito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor do PPG Geografia da PUC-Rio. Pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Fortaleza.
² HARVEY, D., O Direito à Cidade, Revista Piauí, Edição 82, tribuna livre da luta de classes Julho de 2013.
³ LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999 (Tradução de Sérgio Martins).
⁴ João Paulo Alberto Coelho Barreto, o João do Rio (1881-1921), usou a crônica urbana e a reportagem para registrar o Rio de Janeiro de seu tempo. No livro, “A Alma Encantadora das Ruas” (1908), retrata as transformações urbanas vividas pela cidade.