Rodrigo Silva¹
Ruth Maria da Costa Ataíde²
Amíria Bezerra Brasil³
Na última sexta-feira, 19 de novembro de 2021, ocorreu a 6ª Audiência Pública do Plano Diretor de Natal, organizada pela Câmara Municipal de Natal, dando prosseguimento as discussões do Projeto de Lei – PL 09/21, que tem previsão de votação até o dia 23 de dezembro, como já destacamos no último artigo desta coletânea. Nesta terceira parte, abordamos as propostas de alteração no sistema de proteção da paisagem e do meio ambiente, mais especificamente as incidentes nas Áreas Especiais de Controle de Gabarito – AECG em frações da zona costeira e no entorno do Parque das Dunas nela integrado, que poderão sofrer duras perdas no PL. Assim como os artigos anteriores, o objetivo deste é propiciar o debate sobre o tema, expondo os riscos do texto submetido ao legislativo, auxiliando os acadêmicos, vereadores e a população em geral na compreensão dos rumos do Planejamento Urbano de Natal e os possíveis efeitos na cidade.
Ver também:
- Os rumos do (novo) Plano Diretor em Natal-RN | Parte 1
- Os (novos) rumos do Plano Diretor de Natal: o que muda no zoneamento? | Parte 2
Sobre esta temática é importante, antes, ressaltar que o município de Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte, está localizado num sítio geográfico caracterizado pela presença de cordões dunares e as águas do rio Potengi e do Oceano Atlântico. Essas referências expressam o forte potencial paisagístico do território, mas também se configuram como barreiras a sua ocupação. Em razão dessas especificidades, a ocupação do solo de algumas frações territoriais do município tem sido construída e controlada observando tais referências cênico-paisagísticas e ambientais desde finais da década de 1970. Este controle constitui o principal fundamento do sistema de proteção da paisagem do município, que teve origem na reação da cidadania aos impactos da emergente indústria do turismo no estado, a qual, já naqueles anos, postulava a intensificação da ocupação da zona costeira por meio da verticalização (DUARTE, 2011, p. 187), personificada pela primeira vez no Projeto Via Costeira-Parque das Dunas. O projeto concebia a construção de uma via expressa como eixo de conexão entre as praias da orla central e a praia de Ponta Negra, além da construção de um parque hoteleiro e residencial multifamiliar, que causaria impactos ambientais na área e limitava o livre acesso à praia.
Naquele contexto e como fruto do debate que o projeto proporcionou em torno da necessidade de adoção de estratégias da proteção da paisagem dos territórios implicados foram instituídas duas importantes ações normativas: a criação (1) da Área Non Aedificandi – ANA de Ponta Negra, pelo decreto municipal nº. 2236/1979 e (2) das Zonas Especiais de Interesse Turístico – ZETs, instituídas pelo Plano Diretor de Natal – PDN de 1984 (NATAL, 1984). Ao longo dos anos essas estratégias foram reafirmadas e ampliadas nos planos diretores de 1994 (NATAL, 1994) e 2007 (NATAL, 2007). O primeiro ampliou as ZETs, incorporando a praia da Redinha como ZET 4 e instituiu a Área Especial de Controle de Gabarito do Entorno do Parque das Dunas – AECG do entorno do Parque das Dunas, e o segundo, atualmente em revisão, instituiu a Zona Especial Norte. Este sistema (Figura 1) traduz a proteção da paisagem enquanto construção social, incluindo também o controle de padrões construtivos que valorizem as especificidades ambientais do sítio e a permanência das comunidades em situação de vulnerabilidade social resguardadas pela delimitação das Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS.
A criação da ANA simbolizou um marco na proteção da paisagem da cidade, diante do avanço dos interesses imobiliários sobre a zona costeira, resguardando a ocupação por edifícios em nove quadras da antiga “Rodovia Natal – Ponta Negra”, atualmente conhecida como a Av. Eng. Roberto Freire, de modo a assegurar a perspectiva visual do Morro do Careca, um dos principais cartões-postais da cidade. As ZETs confirmaram a necessidade de alinhamento da atividade turística com a preservação dos recursos naturais e da paisagem que conformam Natal (DUARTE, 2011, p. 184). Atualmente incorporadas ao grupo das Áreas Especiais de Controle de Gabarito – AECGs, a delimitação destas incide sobre todo o território das praias do município, uma para cada região administrativa com faixa de praia – na Sul, a ZET 1, na Leste, ZET 3, e na Norte, ZET 4 – e uma dedicada a Via Costeira, que margeia o Parque das Dunas no seu limite leste, a ZET 2. Importante salientar que o fundamento norteador do controle da ocupação foi o estabelecimento de limites de gabaritos máximos ao longo da orla, nos termos do PDN 1984 e suas regulamentações posteriores.
A AECG do entorno do Parque das Dunas, na feição que margeia o tecido edificado, oposta a Via Costeira, restringe a verticalização no entorno do parque, preservando suas funções ambientais, incluindo a paisagística. Nesta última, observando as relações espaciais do entorno, o plano estabeleceu alturas máximas para as edificações localizadas numa extensa fração territorial que margeia o parque entre os bairros de Capim Macio, Lagoa Nova, Nova Descoberta e Tirol, variando de 6 a 30,0 metros. Esta área demarcada, junto com as ZETs, integra atualmente o grupo das AECGs. A ZEN envolve uma extensa área lindeira à margem esquerda do Rio Potengi, contígua a ZET 4 e inserida na Zona de Proteção Ambiental 8 – ZPA 8, que compreende o Ecossistema Manguezal e Estuário Potengi-Jundiaí. Entretanto, tanto a ZEN como a ZET 4 ainda não foram regulamentadas, indicando que, apesar dos avanços nos objetivos de proteção da paisagem, a não efetividade desses regramentos comprometem a proteção dos componentes ambientais do município e revelam indefinições das suas estratégias de gestão do solo. Apesar disso, tais delimitações demonstram o esforço de consolidação de um sistema de proteção das singularidades cênico-paisagísticas e ambientais do município.
Transcorridos mais de 40 anos desde as primeiras inciativas, o sistema tem assegurado a submissão dos padrões construtivos aos regramentos protetivos, mas sua gestão permanece ameaçada. Alguns agentes produtores do espaço, notadamente os proprietários fundiários e promotores imobiliários, reposicionam as narrativas fundamentadas na ideia de que as restrições urbanísticas incidentes sobre a orla do município constituem barreiras ao desenvolvimento urbano, traduzido pelas atividades turísticas e da construção civil. A revisão do PDN 2007, que ocorre desde 2017, abriu caminho para um novo reposicionamento, incentivado e acolhido pela atual gestão municipal. Neste processo, revelam-se problemas formais e de conteúdo, que se perpetuaram em todas as etapas, como: o curto prazo para discussão, a falta de comprometimento da gestão com os procedimentos aprovados em regimento e a ausência de uma metodologia clara para o processo (ATAÍDE et al., 2020, p. 157). Além disso, a incorporação arbitrária pela Semurb de propostas que não foram discutidas na etapa de leitura da cidade revela o caráter exclusivista do conteúdo do PL em discussão no legislativo municipal, que expressa, principalmente, interesses de alguns grupos econômicos e uma única visão de cidade. Tal orientação anula todo o acumulado do planejamento urbano e apresenta muitos retrocessos para a política urbana do município, com graves modificações em seu sistema de gestão da paisagem e do meio ambiente.
A primeira dessas desarticulações, inserida desde a minuta apresentada pela Semurb e mantida no PL 09/21, foi a extinção da ANA de Ponta Negra, destacada como sinônimo de modernização da gestão urbana do município (ATAÍDE et al., 2020, p. 160) desde que foi anunciada, em fevereiro de 2020. No PL em discussão, permite-se a construção nesses lotes, observando delimitações de uso e ocupação do solo que serão definidas em lei específica, a ser aprovada no prazo de 24 meses (CONCIDADE, 2021). Embora estabeleça limites de gabarito das edificações ao nível da calçada da Av. Eng. Roberto Freire para assegurar a perspectiva do campo visual do Morro do Careca a partir da via, o PL 09/21 prevê a possibilidade de flexibilização da ocupação dos terrenos, quando indica a possível aplicação de instrumentos de gestão mais flexíveis, como a Operação Urbana Consorciada – OUC, o Projeto Urbano Local – PUL e o Consórcio Imobiliário. Essas indicações aumentam os riscos da ocupação na perspectiva privatista, retirando da coletividade o direito ao usufruto do espaço e a apreciação estética da paisagem que dali se descortina.
Outra alteração de destaque do PL 09/21 é a exclusão da AECG do entorno do Parque Estadual das Dunas, também introduzida desde a primeira versão da minuta sistematizada pela Semurb, a qual, assim como a exclusão da ANA, representa um verdadeiro retrocesso para o sistema de gestão da paisagem e do meio ambiente do município. A confirmação dessas alterações pelo legislativo evidenciará a prevalência dos interesses dos agentes imobiliários com a anuência da gestão municipal e permitirá a construção de edifícios com até 46 andares (140 metros), considerando também o aumento de gabarito que, se aprovado, deverá ser aplicado em toda a cidade. Importante observar que as indicações da legislação federal aplicada aos parques ecológicos, que restringe a construção de edifícios num raio de 10 km dos seus limites, não se aplica a Unidade de Conservação Parque Estadual das Dunas, criada posteriormente à ocupação na área (ELALI, VIDAL e ATAÍDE, 1998). Entretanto, a restrição de gabarito no entorno do parque cumpre a função de criar uma área de amortecimento, garantindo a preservação da biodiversidade e de suas funções ambientais para a retroalimentação do aquífero subterrâneo do município, além da paisagem que a conforma, o que sempre foi visto como uma ferramenta essencial para a manutenção deste importante resquício dos biomas naturais do território.
Outra modificação, que aumenta as incertezas quanto ao futuro da gestão urbana e ambiental do município, é a criação das Áreas Especiais de Interesse Turístico e Paisagístico – AEITPs, em substituição às atuais ZETs. Apesar da nova nomenclatura, mais adequada aos objetivos iniciais do zoneamento, anexando inclusive um novo território, as desarticulações propostas no texto da nova minuta suscitam dúvidas sobre o grau de proteção que será assegurado. Considerando a necessidade de uma nova regulamentação conforme o texto do PL 09/21, questiona-se sobre o padrão de ocupação e de proteção da paisagem que será estimulado nesses territórios. Cabe ressaltar que o limite de gabarito estabelecido para a ZET 4/AEITP 4, que delimita a orla do bairro da Redinha (hoje limitado a 7,5 m), poderá ser ampliado para 30,0 m no texto em discussão no legislativo. A minuta de regulamentação da ZET 4, elaborada ainda em 2015 (SEMURB, 2015) e aprovada em 2017 pelo Conselho de Planejamento Urbano e Meio Ambiente – Conplam (CONPLAM, 2017), estabelece um controle do gabarito a partir de perspectivas visuais diferentes, garantindo a preservação cênico-paisagística da orla estuarina e marítima e da Área de Proteção Ambiental – APA Jenipabu, com uma área com gabarito máximo de 7,5 m e, outra, com gabarito máximo de 19,50 m. A mesma, entretanto, nunca foi enviada ao legislativo para aprovação e posterior sanção.
Considerando o acumulado de discussão sobre a ocupação do território, o aumento do gabarito para toda a zona costeira revela os riscos decorrentes de uma nova regulamentação para esta e as outras ZETs/AEITPs. Assim, diante das ameaças de quebra dos pactos sociais aplicados à proteção da paisagem da praia da Redinha, as expectativas para a regulamentação das AEITPs são temerárias, levando a crer que o potencial paisagístico desses territórios deverá sofrer duras perdas nesse processo.
Diante do exposto, as alterações no sistema de gestão da paisagem do município inseridas no PL 09/21 indicam um total desapreço da atual gestão pelo mesmo. A despeito das disputas territoriais que expressam os distintos interesses representados no processo de revisão dos regramentos urbanísticos e ambientais do município, as alterações propostas deveriam reafirmar a proteção da paisagem e confirmar os pactos coletivos firmados no longo prazo para este território.
Partindo da perspectiva de uma gestão urbana social e ambientalmente sustentável, é notável a constatação da primazia da visão mercadológica do espaço urbano nos processos de revisão dos Planos Diretores iniciados desde a segunda metade da década de 2010, que tem afetado duramente a gestão do território, gerando desarticulação das práticas que envolvem a preservação do patrimônio urbano, paisagístico e ambiental do município. No caso do processo de revisão em Natal, a desarticulação de seu sistema de gestão da paisagem e do meio ambiente aqui discutida está associada a justificativa de atrair novos investimentos privados, principalmente do setor da construção civil, através de perspectivas ampliadas de lucros com essa nova produção do espaço urbano que se espera no município. Com esse pretexto, a gestão municipal, aliada a esses setores econômicos, tem conduzido as suas ações desconsiderando ou relegando à segundo plano todo o acumulado histórico de planejamento urbano e ambiental construído durante décadas. Por fim, consideramos que, do ponto de vista da gestão da paisagem e do meio ambiente, a aprovação do PL 09/21 com os conteúdos aqui realçados resultará num grande retrocesso, colocando em risco todos os cenários explicitados.
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¹ Mestrando do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (UFRN) e pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.
² Professora do Departamento de Arquitetura (UFRN) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.
³ Professora do Departamento de Arquitetura (UFRN) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.
REFERÊNCIAS
ATAÍDE, R. M. D. C. et al. A pandemia da Covid-19 e suas prioridades: relato da atuação do Fórum Direito à Cidade na defesa da participação social na revisão do Plano Diretor de Natal. In: CLEMENTINO, M. D. L. M.; ALMEIDA, L. D. S. B.; SILVA, B. C. D. N. Em tempos de pandemia: contribuições do Observatório das Metrópoles – Núcleo Natal. Natal: Letra Capital, 2020. Cap. 9, p. 150-172.
CONCIDADE. Minuta do CONCIDADE – votada em 16 e 17 de Março de 2020, 2020. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1moR2jfGCa5LaP3kOxbHPpxz2TvMR0Yf9. Acesso em: 26 dez. 2020.
CONCIDADE. Resultado da Conferência Final do processo de revisão do Plano Diretor de Natal – Votação de 14 a 16 de junho de 2021. CONCIDADE. Natal. 2021.
CONPLAM. Parecer do CONPLAM sobre a Minuta de Lei de regulamentação da ZET 4 – Redinha. CONPLAM. Natal. 2017.
DUARTE, M. C. D. S. Espaços especiais urbanos: Desafios à efetivação dos direitos ao meio ambiente e à moradia. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011.
ELALI, G. A.; VIDAL, R. D.; ATAÍDE, R. M. D. C. Parecer técnico a respeito do projeto de revisão do Plano Diretor de Natal – revogação do inciso II do artigo 23 que trata do controle de gabarito. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. 1998.
MPRN. Nota Técnica conjunta sobre a alteração do Plano Diretor da cidade de Natal/RN (Lei Complementar 82/2007). Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Natal. 2020.
NATAL. Lei Complementar nº 3.175/1984. Dispõe sobre o Plano Diretor de Organização físico-territorial do município de Natal. Natal: DOM, 1984.
NATAL. Lei nº. 3607/1987. Dispõe sobre o uso do solo e prescrições urbanísticas da Zona Especial – ZET-01, criada pela Lei 3.175/84 de 26 de janeiro de 1984, e dá outras providências. Natal: DOM, 1987a.
NATAL. Lei nº 3.639, de 10 de dezembro de 1987. Dispõe sobre os usos do solo e prescrições urbanisticas da Zona Especial – ZET-3 , criada pela Lei nº.175, de 26 de Janeiro de 1984 e dá outras providências. Natal: DOM, 1987b.
NATAL. Lei Complementar nº 007/1994. Dispõe sobre o Plano Diretor de Natal e dá outras providências. Natal: DOM, 1994.
NATAL. Lei nº. 4547/94. Dispõe sobre o uso do solo, limites e prescrições urbanísticas da Zona Especial Interesse Turístico 2 – ZET-2, criada pela Lei nº 3.175/84 de 29 de fevereiro de 1984, que altera seus limites e dá outras providências. Natal: DOM, 1994.
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SEMURB. Minuta – Lei de Regulamentação da ZET 4. Dispõe sobre a regulamentação da Zona Especial de Interesse Turístico – ZET 4, instituída pela Lei Complementar nº 082 de 21 de Junho de 2007, e dá outras providências. Semurb. Natal. 2015.