Os Megaeventos Esportivos e o Direito à Cidade: uma agenda para o Conselho das Cidades
Orlando Alves dos Santos Junior
Professor do IPPUR/UFRJ
Membro do Conselho das Cidades (ANPUR – segmento entidades acadêmicas e profissionais)
Relator Nacional do Direito à Cidade – Plataforma Dhesca
Integrante da Rede Observatório das Metrópoles
Exposição proferida no Conselho das Cidades, no dia 07 de dezembro de 2011, em Brasília.
Essa exposição, dividida em cinco pontos centrais, está baseada fundamentalmente em dois subsídios:
Primeiro, a pesquisa nacional desenvolvida pela Rede Observatório das Metrópoles, denominada “Metropolização e Megaeventos Esportivos: os impactos da Copa 2014 e Olimpíadas 2016”, financiada pela FINEP, que tem por objetivo analisar os impactos das intervenções urbanas em todas as cidades-sedes vinculadas a esses dois eventos.
Segundo, a experiência da Missão da Relatoria do Direito à Cidade, ligada a plataforma brasileira de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Na condição de relator nacional, realizamos essa missão no primeiro semestre de 2011, em torno das denúncias de remoções que estavam e continuam acontecendo no Rio de Janeiro, em decorrência das intervenções vinculadas à Copa do Mundo e das Olimpíadas. Durante a missão, foram visitadas diversas comunidades e realizadas diversas audiências em torno dos processos de remoções relacionadas às intervenções urbanas na cidade do Rio de Janeiro, vinculadas à Copa do Mundo 2014 e às Olimpíadas 2016.
O objetivo dessa exposição é apresentar algumas reflexões sobre o processo de intervenção urbana vinculado à Copa do Mundo, tendo em vista o seu caráter nacional (portanto, apesar da sua importância as Olimpíadas não serão objeto da minha intervenção), e levantar temas e questões visando à constituição de uma agenda de trabalho para o Conselho das Cidades.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que o Conselho das Cidades está fazendo essa discussão tardiamente, tendo em vista que os projetos de intervenção nas cidades-sedes da Copa estão definidos e muitas das intervenções estão em curso. No entanto, apesar do atraso, essa discussão é estratégica e ainda há tempo de intervir, tendo em vista que grande parte dos projetos ainda não estão detalhados, a maior parte dos editais ainda não foi lançado, e muitas obras ainda não começaram.
Cabe chamar atenção que o projeto da Copa se relaciona diretamente com a política urbana em, pelo menos, três aspectos: (i) mobilidade urbana – ou seja, as intervenções vinculadas à mobilidade urbana; (ii) planejamento e gestão do solo – relacionado à re-estruturação urbana e os processos de valorização imobiliária decorrente das intervenções urbanas; (iii) moradia – sobretudo no que se refere às remoções decorrentes das intervenções urbana. Em outras palavras, o projeto da Copa é do interesse de todo o Conselho das Cidades e exige uma discussão coletiva que envolva o conjunto dos comitês técnicos, ou pelo menos os comitês de mobilidade, planejamento e gestão do uso do solo e habitação.
Por fim, apesar de não ser objeto da minha reflexão, também é fundamental sublinhar a importância da temática do esporte, tendo em vista que 25% dos recursos estão sendo investidos na construção ou reforma dos estádios – cabe lembrar que, excetuando o estádio Beira Rio, todos os demais estádios estão sendo reformados ou construídos utilizando financiamento público ligado ao BNDES. E que grande parte desses estádios estão sendo reformados através de contrato de parceria público-privada. Tudo indica que estamos diante da reconfiguração das práticas vinculadas aos esportes com estádios menores, elitização do público, estágios multifuncionais para recepção de megaeventos, e legitimação simbólica da reconfiguração urbana.
A reflexão em torno dos impactos dos megaeventos parte da hipótese geral de emergência de um novo padrão de governança urbana nas metrópoles brasileiras, caracterizado pelo que a literatura vem denominando empreendedorismo empresarial neoliberal. De uma forma esquemática, pode-se dizer que nesse padrão de governança o poder público assume como responsabilidade central a criação de um ambiente favorável aos negócios, no qual os grandes empreendimentos, os megaeventos e o marketing urbano teriam uma importância central nas estratégias de inserção econômica global, e na qual as parcerias entre os setores público e privado (PPPs) seriam uma das principais estratégias de promoção de serviços urbanos. Essa governança empreendedorista empresarial seria sustentada pela conformação de uma nova coalizão político-social – expressando uma aliança entre agentes econômicos e políticos e frações de classes sociais específicas, dependendo do contexto social de cada cidade. A noção de governança urbana aqui se refere às formas de interação entre governo e sociedade, ou mais precisamente, entre governo, mercado e sociedade.
Buscando contribuir para uma compreensão crítica das transformações urbanas em curso, a exposição está organizada em quatro pontos.
1. O projeto da Copa e o Processo de Reestruturação Urbana das Metrópoles Brasileiras
Os investimentos previstos para a Copa do Mundo de 2014 indicam que estamos diante de intervenções urbanas de grande magnitude, com grande impacto sobre a dinâmica urbana de todas as cidades-sedes. De fato, a maior parte dos recursos está alocada em mobilidade urbana, que representa cerca de 49% do total de investimentos. Do restante dos investimentos, aproximadamente 25% estão alocados na ampliação ou reforma da infraestrutura dos aeroportos e portos, e outros 25% na reforma ou construção dos estádios de futebol. Por fim, pouco mais de 1% dos investimentos está alocado em turismo e segurança.
Em síntese, a importância da Copa do Mundo parece estar menos ligada à realização de um evento em si mesmo (a Copa, as Olimpíadas), e mais ao processo de reestruturação da dinâmica urbana nas metrópoles brasileiras, legitimada e possibilitada pela realização desses megaeventos.
Sob o ponto de vista dos investimentos, pode-se dizer que a realização da Copa do Mundo 2014 (bem como das Olimpíadas 2016) tem como agente econômico protagonista o poder público, responsável ou pelos investimentos diretos ou pelo financiamento das intervenções vinculadas a esses megaeventos.
Tomando como referência a Copa do Mundo de Futebol, estão previstos pouco mais de R$ 17 bilhões entre financiamentos e investimentos, só do governo federal. Somando os recursos dos governos federal, estaduais e municipais, estão previstos mais de R$ 25 bilhões. Nesse ponto, cabe registrar que a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) são as duas principais instituições de financiamento do projeto (com aportes de recursos da ordem de 6,6 e 5 bilhões, respectivamente).
Em relação às cidades beneficiadas pelos investimentos, destaca-se o fato das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro receberem a maior parte dos recursos previstos no projeto. Juntos, essas duas cidades devem receber mais que R$ 8,6 bilhões.
Em seguida, em termos de volume de investimentos, destacam-se as cidades de Manaus (2,8 bilhões) e Belo Horizonte (2,5 bilhões).
As quatro cidades-sedes do Nordeste – Salvador, Recife, Fortaleza e Natal – recebem juntas 23% do total dos investimentos previstos.
Cabe registrar que, excetuando-se Curitiba, todas as demais cidades recebem investimentos superiores a 1 bilhão de reais.
Como pode ser observado, há uma relativa relação entre a divisão dos investimentos e a distribuição da população por região do país , com as regiões Norte e Centro-Oeste recebendo proporcionalmente mais recursos em relação a sua população e a Região Sul menos.
Percebe-se também que os governos estaduais e municipais, sem exceção, têm percebido a realização da Copa do Mundo como uma oportunidade de alavancar o desenvolvimento dos seus estados e municípios, reposicionando-os regionalmente ou nacionalmente, do ponto de vista do lugar atualmente ocupado na dinâmica econômica.
2. A Promoção de Políticas Redistributivas – o legado social – e a nova coalização empreendedorista empresarial
A análise dos projetos e das políticas públicas urbanas vinculadas a esses megaeventos esportivos, sobretudo aquelas vinculadas aos programas federais, parecem ser marcadas por componentes redistributivos, ou seja, parecem estar associadas aos investimentos em políticas, equipamentos e serviços urbanos – habitação, saneamento, saúde e educação – nas cidades, parte dos quais destinados as classes populares, o que tem sido identificado como legado social da Copa do Mundo.
Aqui é preciso considerar que o grau em que tais políticas são desenvolvidas é variável em cada localidade e parece estar fortemente ligado à natureza da coalizão empreendedorista empresarial que emerge em cada cidade brasileira.
No quadro das grandes desigualdades sociais que marcam o país, pode-se colocar como hipótese a necessidade desses investimentos em políticas urbanas para as classes populares como requisito para a legitimação do Estado enquanto poder público, e também da coalizão que sustenta essa nova governança urbana empreendedorista empresarial. De fato, não é raro observar nas grandes cidades brasileiras, que ao lado do intenso processo de remoção de comunidades compostas por famílias de baixa renda nas áreas revitalizadas, existem investimentos significativos na urbanização e regularização de favelas e assentamentos precários, sobretudo através do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. Também se observam importantes investimentos voltados à população de baixa renda, como a regularização fundiária de ocupações de imóveis públicos e o financiamento de empreendimentos habitacionais geridos pelos movimentos sociais de moradia (Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV/Entidades).
No entanto, seja qual for o caráter redistributivo dos investimentos, o projeto de cidade que está em curso parece aprofundar ou, pelo menos, corre o risco de aprofundar, o padrão de urbanização excludente que caracteriza a ordem urbana brasileira.
São diversos os indícios de especulação imobiliária e supervalorização das áreas urbanas que estão sendo objeto de intervenção por parte do poder público, em especial em torno dos projetos de mobilidade urbana. De fato, tudo leva a crer que os investimentos em mobilidade são os principais investimentos de reestruturação das cidades, incidindo sobre a sua dinâmica urbana na perspectiva da (re)valorização de certas áreas e na viabilização dos investimentos na expansão urbana das cidades. O setor imobiliário, dependo da cidade e da área de intervenção, trabalha com índices de valorização imobiliária que variam entre 100% a 1.000% (por exemplo, em Fortaleza).
Aqui, cabe levantar a importância da aplicação de instrumentos de captura da mais valia fundiária associada à valorização imobiliárias dessas áreas. Os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores – em especial a instituição e demarcação de Zeis em vazios urbanos como a outorga onerosa do direito de construir – poderiam estar sendo aplicados tanto para conter a especulação imobiliária como para capturar parte da valorização imobiliária decorrente dos investimentos urbanos.
Cabe ao Conselho das Cidades monitorar a aplicação, pelas cidades-sedes da Copa do Mundo, dos instrumentos previstos nos planos diretores, recomendando a aplicação dos mesmos quando for o caso.
3. Uma nova rodada de mercantilização da cidade acionando processos de acumulação por espoliação: a difusão das cidades neoliberais no contexto brasileiro.
Mesmo que seja possível constatar intervenções urbanas destinadas à ampliação do acesso das classes populares aos serviços e equipamentos urbanos, são claros os indícios de que se está diante de uma nova rodada de mercantilização da cidade, caracterizada pela transformação de espaços, equipamentos e serviços urbanos desvalorizados – e, portanto, parcialmente ou totalmente desmercantilizados – em mercadoria, ou seja, em ativos inseridos nos circuitos de valorização do capital. Esse processo ocorre, seja pela transferência forçada de ativos sob o controle das classes populares para setores do capital imobiliário ou de serviços urbanos, seja pela criação de novos serviços e equipamentos urbanos que serão geridos pela iniciativa privada (por exemplo, na área do transporte, esporte e lazer). Em outras palavras, estar-se-ia diante de uma nova rodada de mercantilização e elitização da cidade, onde certas áreas passam a se constituir em mercadoria destinada as classes médias e altas que têm poder aquisitivo para pagar pelas habitações e serviços que serão oferecidos.
De fato, em quase todas as cidades onde estão ocorrendo intervenções urbanas vinculadas à Copa do Mundo estão ocorrendo ou estão previstas remoções. Efetivamente essas remoções representam a transferência de ativos sob a posse de grupos e classes populares (muitas das quais morando em áreas com situação fundiária irregular) para outros agentes econômicos e sociais que vão comprar e se apropriar desses ativos valorizados. Em geral, essas remoções têm ocorrido desrespeitando-se os direitos coletivos das famílias e comunidades moradoras das áreas de intervenção.
Considerando-se as configurações sociais das diferentes comunidades afetadas pelas intervenções urbanas, pode-se constatar remoções, ou seja, processos de transferência de ativos sob o controle das classes populares, no qual parcela da população (por exemplo, em situação de vulnerabilidade social e vivendo em uma habitação com alto grau de precariedade) poderia estar sendo beneficiada com a aquisição de um imóvel regularizado e em bom estado, mesmo em uma área distante; enquanto que outra parcela da mesma comunidade (com sua inserção social mais ou menos estabilizada em razão de vínculos estabelecidos com redes sociais e de trabalho formais ou informais) poderia estar sendo vulnerabilizada pela sua exclusão da área na qual organiza sua reprodução social. Dito de outra forma, o direito à moradia pode estar ao mesmo tempo sendo negado e promovido, desde que permita e não ameace o processo de mercantilização da cidade.
Nesse plano, é preciso levar em consideração que os despejos e as remoções ocorrem sob a legitimidade conferida pelo Poder Judiciário (que permite e determina as remoções) e da ordem pública, que operam no conflito entre, de um lado, os processos de mercantilização da cidade – promovido pelo poder público e pela coalizão de forças que sustenta a nova governança empreendedorista empresarial, acionando o discurso do interesse público em torno do desenvolvimento econômico e social – e, de outro, os processos de desmercantilização da cidade e de promoção do direito à moradia, encarnado pelos movimentos sociais organizados em torno da reforma urbana e do direito à cidade. Mas ambos os processos e discursos se expressam em políticas públicas e aparatos institucionais no interior do aparelho de Estado, apesar da lógica mercantil ser a dominante e hegemônica. Daí resulta a dificuldade de enfrentamento desse projeto.
Nesse ponto, cabe levantar a importância das intervenções urbanas nas cidades-sedes respeitarem o direito à moradia estabelecido na Constituição Brasileira e no Estatuto das Cidades, garantindo a permanência das famílias nas áreas por elas ocupadas, ou, em caso de absoluta necessidade de sua transferência para outras moradias, garantindo-se a discussão com as comunidades do projeto de reassentamento em área próxima, e o acesso à moradia digna através do procedimento chave-por-chave, ou seja, a saída das família para outro imóvel já construído e pronto para ser ocupado.
Cabe ao Conselho das Cidades definir critérios que devam ser cumpridos pelos governos estaduais e municipais como requisito para o recebimento de recursos do governo federal. Sem o respeito ao direito à moradia não pode haver repasses de recursos do governo federal.
4. A lógica da exceção na intervenção do Estado
Por fim, as intervenções em curso revelam a incapacidade do Estado em se pautar por critérios universalistas, centrados no objetivo da inclusão social dos diferentes grupos sociais à cidade, e a crescente adoção de um padrão de intervenção centrado na exceção, focado em certas áreas da cidade com capacidade de atração de investimentos, subordinando as políticas, implementadas de forma discricionária, aos interesses de grandes grupos econômicos e financeiros que comandam a nova coalizão empreendedorista empresarial. Os projetos determinam o que pode e o que não pode ser realizado (Copa do Mundo de Futebol e Olimpíadas aqui, um porto ou um teleférico acolá), as comunidades que podem permanecer e aquelas que precisam ser removidas, legitimados, em primeiro lugar, pelo discurso do desenvolvimento, e de forma subsidiária, pelo discurso da ordem, da ilegalidade fundiária ou do risco ambiental. Se existem direitos coletivos e sociais estabelecidos no Estatuto da Cidade, relativos à moradia e à participação nos projetos urbanos, estes serão aplicados de forma diferenciada segundo o grupo social envolvido em um determinado conflito.
No caso da Copa do Mundo de Futebol e das Olimpíadas, esse padrão de intervenção pela exceção fica bastante evidenciado na subordinação das ações do poder público às exigências dos organismos internacionais que coordenam esses megaeventos esportivos, a FIFA (Fédération Internationale de Football Association) e o COI (Comitê Olímpico Internacional).
5. Recomendações para o Conselho das Cidades
Tendo em vista o exposto, destacam-se quatro recomendações:
(i) a criação de uma instância no âmbito do governo federal para monitoramento das intervenções vinculadas à Copa do Mundo, com a participação do Conselho das Cidades; e a criação de um grupo de trabalho específico sobre o tema, no âmbito do Conselho das Cidades.
(ii) a necessidade de criação de critérios para a liberação dos recursos federais, associados ao respeito ao Estatuto da Cidade e ao direito à moradia, em especial, e a necessidade dos projetos serem discutidos com as comunidades envolvidas e com a sociedade como um todo; e a necessidade de respeitarem o direito à moradia digna das famílias afetadas pelas intervenções.
(iii) o monitoramento, pelo Conselho das Cidades, da aplicação, pelas cidades-sedes, dos instrumentos de captura da valorização fundiária previstos no Estatuto da Cidade e nos planos diretores, nas áreas que estão sendo objeto de intervenção.
(iv) a proposição de critérios para a aprovação dos projetos de mobilidade vinculados à Copa do Mundo, associados a integração dos modais – envolvendo ciclovias e calçadas – a acessibilidade em relação as tarifas, a acessibilidade dos deficientes físicos, e a priorização de investimentos em áreas ocupadas pelo população de baixa renda. Sugere-se que o Conselho das Cidades, através do Comitê Técnico de Mobilidade, e por meio da mobilização de pesquisadores e consultores – faça a análise de todos os projetos vinculados à mobilidade urbana nessas cidades.
(v) a análise dos impactos sociais gerados pelas intervenções já realizadas e medidas de reparação nos casos de violação do direito à moradia e do direito à cidade que forem identificados.
(vi) a realização de um seminário nacional promovido pelo Conselho das Cidades, dedicado à discussão do projeto da Copa e das Olimpíadas e de seus impactos sociais, urbanos, econômicos e ambientais.