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André Coutinho Augustin¹

Porto Alegre está comemorando 250 anos. Com uma população de cerca de um milhão e meio de habitantes e inserida em uma região metropolitana com mais de quatro milhões de habitantes, o transporte urbano e metropolitano é hoje um dos assuntos mais delicados da cidade. Afinal, não é simples organizar os deslocamentos de tanta gente. Mas nem sempre foi assim.

Até 1845, Porto Alegre era cercada por muros e ocupava apenas a área que corresponde aproximadamente ao que hoje é o Centro Histórico. Não era necessário, portanto, um sistema de transporte público para que a população pudesse se deslocar pela cidade. O primeiro Censo Demográfico realizado no Brasil, em 1872, mostrou que Porto Alegre – que estava completando 100 anos – já possuía 43.998 habitantes. E foi justamente nas comemorações do seu primeiro centenário que a cidade ganhou um sistema de transporte coletivo.

Em 19 de junho de 1872, o Imperador D. Pedro II autorizou a Companhia de Carris de Ferro Porto Alegrense (então uma empresa privada) a operar bondes movidos por mulas. A primeira linha – Menino Deus – foi inaugurada em janeiro de 1873. Em 1906 ela se uniu a outra empresa (Carris Urbanos) para formar a Companhia Força e Luz Porto-Alegrense. A partir daí passou a fornecer energia elétrica para a cidade e dois anos depois entraram em funcionamento os primeiros bondes elétricos, nas linhas Menino Deus, Glória, Teresópolis e Partenon. O serviço foi sendo expandido e, na década de 1950, a frota de bondes elétricos da Carris passava das duas centenas – sem falar dos ônibus, em operação desde 1929.

Seria esperado que, junto com o aniversário de 250 da cidade, a Prefeitura de Porto Alegre organizasse também as comemorações dos 150 anos de transporte coletivo na capital. Ainda mais por essa história ter como protagonista uma empresa que hoje é patrimônio público. Em 1954 a Carris foi encampada pela prefeitura, sob administração do prefeito Ildo Meneghetti. Como estatal, a Carris passou a ter destaque não apenas aqui, mas em todo país, principalmente após as melhorias na gestão ocorridas na década de 1990. Em 1999 e em 2001 ela foi escolhida a melhor empresa de transporte coletivo do Brasil pela ANTP e, em 2003, foi a primeira instituição municipal a conquistar o Prêmio Nacional de Gestão Pública.

Hoje a Carris é a empresa de transporte coletivo mais antiga do Brasil. Mas, infelizmente, nos últimos anos as sucessivas gestões neoliberais na Prefeitura de Porto Alegre promoveram o seu sucateamento. A qualidade caiu, mas mesmo assim continuou acima das concorrentes. Em 2021, a idade média da frota da Carris era de 5,2 anos, contra 7,7 anos das empresas privadas (acima do permitido pela legislação). Além disso, 94% dos ônibus da Carris possuíam ar condicionado, contra 41% nas privadas (a licitação de 2015 previa que 100% da frota deveria ter ar condicionado).

Logotipo da Carris. Museu Joaquim Felizardo.

Também foi a Carris que salvou o sistema de ônibus durante a pandemia, quando as empresas privadas descumpriram os contratos e começaram a abandonar as linhas mais deficitárias. Para garantir o direito ao transporte, previsto na Constituição, a Carris assumiu essas linhas – num subsídio indireto às suas concorrentes, que puderam operar apenas as linhas lucrativas. Isso fez o prejuízo da Carris aumentar, o que foi usado de argumento pelo prefeito Sebastião Melo para acabar com a Carris.

É bom lembrar que a Carris era uma empresa lucrativa até pouco mais de uma década atrás. Foi apenas no governo Fortunati que ela passou a dar prejuízo. Não que dar lucro seja algo necessariamente bom numa instituição pública. Seria aceitável a Carris abrir mão do seu lucro para oferecer um serviço mais barato (ou até mesmo gratuito) para a população porto-alegrense, mas não foi o que aconteceu. Os prejuízos surgiram depois de Fortunati entregar a gestão da Carris para o PMDB, partido do seu vice, Sebastião Melo. Entre outros escândalos, houve desvios de mais de um milhão e meio de reais pelo coordenador financeiro da companhia, que depois fez diversas doações para campanhas do seu partido, incluindo do próprio Melo.

Quando virou prefeito, Sebastião Melo usou o prejuízo iniciado na sua gestão como vice-prefeito para defender que a Carris não podia mais ser pública. Enviou então um projeto de lei à Câmara Municipal pedindo não a privatização, mas uma carta branca para fazer o que quisesse para destruir a Carris. O PL, aprovado durante a pandemia sem discussões com a sociedade, autorizou o prefeito a “alienar ou transferir, total ou parcialmente, a sociedade, os seus ativos, a participação societária, direta ou indireta, inclusive o controle acionário, transformar, fundir, cindir, incorporar, liquidar, dissolver, extinguir ou desativar, parcial ou totalmente, a Companhia Carris Porto-Alegrense”. Ou seja, os vereadores decidiram que o prefeito podia destruir a Carris da forma como desejasse, sem nenhuma explicação sobre o que aconteceria com o patrimônio da empresa e, ainda pior, com as linhas de ônibus que ela oferece. Não se sabe se essas linhas serão assumidas por outras empresas ou simplesmente extintas. E, caso sejam assumidas, se haverá uma nova licitação ou elas serão distribuídas entre as empresas privadas que já atuam na cidade.

A prefeitura fez questão de propagandear que não tinha planos de como efetivar essa autorização vaga. Em reunião com vereadores para tentar convencê-los a votar a favor do PL, em agosto de 2021, o presidente da Carris, Maurício Cunha, disse que “não há uma definição hoje, não está definido o que será feito” e que o caminho para desestatizar a Carris “começa aqui, mas ninguém sabe direito onde ele vai parar”.

É comum no discurso neoliberal essa defesa da privatização sem planejamento. O poder público não precisa saber “onde vai parar” o resultado da privatização, já que a mão invisível do mercado se responsabilizaria por levar tudo ao lugar certo. Por trás desse discurso contra o planejamento, entretanto, há um forte planejamento por parte do mercado. E o poder público também não é omisso, como tenta parecer, mas atua de mãos dadas com o mercado, para garantir o resultado desse planejamento.

A própria Carris, antes da estatização, nos dá exemplos de como funciona um transporte urbano “sem planejamento estatal”. No início do século XX, a maior empresa de loteamentos da cidade era a Companhia Territorial Porto-Alegrense. Seus donos se tornaram sócios da Carris e da Cia. Hidráulica Porto Alegrense, que explorou os serviços de água encanada entre 1866 e 1944 (o Departamento Municipal de Água e Esgotos – DMAE só foi criado em 1961). O objetivo era direcionar a ampliação dos serviços de transporte, luz e água para as regiões da cidade onde a Companhia Territorial Porto-Alegrense possuía terras e planejava novos loteamentos, valorizando essas áreas.

O transporte tem uma grande influência no valor da terra. Facilitar o acesso da população a uma determinada região – ou até mesmo impedir o acesso de alguns – pode trazer perdas e ganhos para os proprietários dos terrenos, dos imóveis e dos negócios existentes nos arredores. Esse é um aspecto pouco discutido sobre mobilidade urbana, mas que às vezes acaba se revelando no debate público.

Entre muitos exemplos que podem ser citados na nossa cidade nos últimos anos, um dos que teve mais repercussão foi uma declaração do então Secretário Municipal de Indústria e Comércio, Valter Nagelstein (que semana passada foi condenado a dois anos de prisão por racismo por seus comentários sobre os vereadores negros da cidade), defendendo a transformação do Largo Glênio Peres em estacionamento. O argumento dele era que facilitar o acesso de carros ao entorno do Mercado Público garantiria um “público mais qualificado”, aumentando o faturamento do comércio.

O Largo Glênio Peres fica ao lado de um dos maiores terminais de ônibus da cidade, mas os milhares de porto-alegrenses que circulam por ali todos os dias não têm a renda que a prefeitura considerava ideal para os frequentadores do Mercado. Para isso, era necessário reduzir o espaço dos pedestres e do transporte público e dar mais espaço ao automóvel, esse sim o meio de transporte adequado para o projeto de valorização imobiliária do Centro.

Mais recentemente, a prefeitura anunciou o “Programa de Reabilitação do Centro Histórico”, permitindo a construção de prédios de até 200 metros de altura. O objetivo seria dobrar a população do bairro. Perguntado por um jornalista se a habitação popular estava incluída nesse objetivo, o secretário de Planejamento e Assuntos Estratégicos, Cezar Schirmer, respondeu que “por óbvio, não adianta trazer um morador para o Centro que não possa pagar o condomínio”. Ou seja, esse aumento da população previsto não é para trazer para o centro os moradores das áreas mais periféricas, o que reduziria a necessidade de transporte na cidade. O foco é a população de maior renda, que anda de carro e tem capacidade de valorizar os imóveis.

A privatização da Carris e dos demais serviços urbanos (Melo já anunciou a intenção de privatizar o DMAE em breve) faz parte desse projeto. Assim como acontecia um século atrás, transporte e saneamento devem servir não para atender às necessidades da população, mas para garantir os lucros dos prestadores desses serviços e ainda ajudar na valorização da terra urbana. Não é, portanto, uma ausência do Estado, mas uma forte atuação estatal para construir uma cidade que gere lucro para determinados setores.

Se alguém tem dúvidas sobre quem são os beneficiados dessa política de valorização imobiliária, basta olhar os dados de financiamento de campanha divulgados pelo TSE. Entre os maiores doadores da campanha de Melo, em 2020, estão sócios de empresas como Goldztein, Cyrela, Melnick, CFL, Multiplan e Arado Empreendimentos. É para estes que se governa em Porto Alegre, seja na política de transportes, de saneamento ou nas mudanças no plano diretor.

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¹ Economista e pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.