Quase um mês após os primeiros decretos estaduais terem editado medidas referentes ao isolamento social para o combate ao coronavírus (COVID-19), vemos que a situação da construção civil continua negligenciada.
De acordo com a atualização do levantamento feito pela equipe do GT Habitação e Cidade do Observatório das Metrópoles, até 13 de abril caíram para dois o número de estados brasileiros onde ainda vigoram medidas que suspendem as atividades da construção civil. No contexto atual, 40% dos estados do Brasil, através de legislação específica, liberam explicitamente o trabalho no setor.
Existem indícios claros de que as entidades patronais vêm pressionando os governos locais e as assembleias estaduais no sentido de manter as atividades do setor em pleno funcionamento. Segundo o Jornal Focus, em matéria divulgada em 14 de abril:
“A intenção dos empresários na conversa com o secretário [de Saúde do Ceará] foi conseguir algum nível de funcionamento dos canteiros de obras. A resposta do secretário não deixou margens de dúvidas quanto à inadequação do momento para o retorno ao trabalho, dizendo que o mundo vive a sua terceira guerra mundial”.
Além disso, em webinar promovida pela CBIC no dia 02 de abril, Claudio Hermolin, presidente da ADEMI-RJ e da Brasil Brokers, ressalta textualmente que:
“O SINDUSCON-Rio fez um trabalho junto ao governo e junto ao sindicato dos trabalhadores para que as obras continuassem em execução. Como não houve a restrição [do governo] à paralisação da obra, a decisão passou a ser individual, de cada empresa”.
Aparentemente, portanto, a pressão das entidades patronais têm sido bem sucedidas na maioria das UFs. Nos estados, cada governador adota uma medida diferente, sem um eixo articulador nacional para determinar se as indústrias, e particularmente a construção civil, sejam impedidas ou não de trabalhar. Não há um alinhamento federativo no combate à COVID-19, reflexo, entre outras coisas, da ingerência irresponsável do Presidente da República na política de saúde.
Chama atenção ainda a postura da Caixa Econômica Federal, que divulgou recentemente um pacote econômico de ajuda, voltado quase que exclusivamente para os mutuários e para as empresas que já são financiadas pelo banco. O pacote ignora tanto as pequenas e médias empresas do setor, espremidas pelas possibilidade da paralisação, quanto as associações, entidades e os beneficiários do MCMV-Entidades e MCMV-FAR (Faixa 1), que não foram incluídos nas medidas adotadas.
Essa situação é bem diferente, por exemplo, da Argentina, que adotou medidas únicas de restrição e trata o assunto com seriedade. Por lá, a paralisação foi total e especula-se uma volta gradual dos setores sendo que a construção civil está entre um dos primeiros na lista de liberações pela sua magnitude, segundo o presidente Fernandez.
De acordo com os dados apresentados pelo GT Habitação e Cidade em nota anterior, 550 mil trabalhadores da construção civil no Brasil encontram-se no grupo de risco por pertencerem à faixa etária acima de 60 anos, com o agravante de serem em sua maioria trabalhadores informais ou autônomos. Porém, uma nova problemática é trazida para o debate envolvendo o risco das profissões que atuam em canteiro de obras. Segundo dados disponibilizados por pesquisadores da COPPE/UFRJ, as cidades com maior número de trabalhadores da construção expostos ao risco de contaminação por doenças ou infecções também são os locais de maior incidência da COVID-19 no país.
Ainda de acordo com a pesquisa, no setor da construção, a ocupação de pedreiro é a que mais concentra trabalhadores e o nível do risco de contágio dessa ocupação foi considerado como médio, calculado em 57 pontos. Outras ocupações no setor da construção apresentam riscos mais elevados, sendo o profissional mais exposto com nível de risco calculado em 71 pontos¹.
Quando comparado aos profissionais da saúde, que apresentam o maior risco de contágio dentre as ocupações, percebe-se que a vulnerabilidade do setor da construção está relacionada mais à proximidade física durante o trabalho. Assim, cabe o questionamento sobre a eficácia das medidas de higiene, limpeza e de evitar aglomerações nos canteiros de obra, que vêm sendo defendidas pelas entidades patronais, empresas e até mesmo governantes.
A realidade das pequenas e médias empresas do setor, que operam com um alto número de profissionais autônomos, e mesmo das grandes empresas, onde o nível de subcontratação é muito elevado, torna extremamente difícil um controle rigoroso das medidas adotadas, tornando pouco provável que os espaços e instrumentos de trabalho estejam sendo higienizados adequadamente e que a concentração de trabalhadores numa mesma frente esteja sendo evitada, de modo a garantir a segurança dos operários. Poucas empresas do setor têm ainda condições de controlar a presença de profissionais doentes ou infectados sem sintomas.
Além dos fatores de risco ligados à proximidade física dos operários em meio a pandemia de COVID-19, dados da RAIS (2018), sistematizados pelo Observatório das Metrópoles, indicam que o setor da construção civil está entre os cinco ramos de atividades econômicas que apresentam o maior percentual de afastamento do trabalho por motivo de doença, no Brasil. Dois dos três ramos relacionados ao setor da construção são responsáveis, respectivamente, por 14% e 13,5% dos afastamentos, na soma dos motivos “doença/acidentes no trabalho”: os ramos da construção de edifícios e dos serviços especializados para a construção.
Estudos anteriores também apontavam que a exposição dos trabalhadores do setor da construção nas tarefas desenvolvidas no canteiro de obras oferecem riscos elevados para o desenvolvimento de doenças respiratórias, o que indicaria possibilidades de comorbidade elevadas. Atividades como lixamento de concreto, quebra de pisos, corte de granito e operações de transporte de solo e cal são listadas em estudos científicos dentre as mais arriscadas para a saúde devido à presença de compostos químicos perigosos em dispersão no ar. Antes mesmo da pandemia, tais estudos apontavam para a necessidade de medidas mais rígidas de proteção da saúde dos trabalhadores em empresas do setor.
Algumas associações profissionais, como o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU-RJ), já se manifestaram claramente pela paralisação dos canteiros. Assim, destacamos novamente a importância da ação dos órgãos competentes, dos agentes operadores e financeiros e do poder público para a elaboração de medidas e programas que protejam a saúde e garantam a manutenção dos salários dos operários de canteiro de obras – que em condições normais já são expostos a doenças ocupacionais e recebem baixa remuneração. Estabelecer critérios para definir as obras essenciais que devem permanecer funcionando, elaborar um plano de retomada gradual do setor após o pico da crise e implementar uma regulamentação rigorosa da licença remunerada dos operários é urgente.
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[Texto produzido por pesquisadores(as) do GT Habitação e Cidade do Observatório das Metrópoles, com contribuição de Juciano Rodrigues]¹ O nível de risco pode variar de 0 a 100, com 0 representando nenhum risco de contágio e 100 representando um altíssimo risco de contágio.
REFERÊNCIAS:
Kulcsar Neto, F. Sílica: Manual do trabalhador. Fundacentro. São Paulo, 1992.
Souza,V. F. & Quelhas, O. L.G. Avaliação e controle da exposição ocupacional à poeira na indústria da construção. In: Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, ano 08, nº 3, pp. 801-807, 2003.