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Dado o esvaziamento do espaço público tradicional na cidade, a disseminação da cultura do medo do outro e do espaço urbano, o artigo Desculpe incomodar o silêncio de vocês: o transporte coletivo enquanto espaço público, de autoria de Priscila Gonçalves Santos, busca analisar o ônibus sob dois aspectos: o passageiro do transporte coletivo enquanto uma releitura contemporânea da figura do flâneur, resgatando a reflexão sobre o ambiente construído e as práticas socioculturais contemporâneas; e enquanto microcosmo da cidade e, consequentemente, janela para a observação das questões em torno do sujeito social e espaço de resistência da esfera pública.

Nesse sentido, analisam-se as consequências do planejamento urbano modernista (predomínio do automóvel, zoneamento monofuncional, explosão das cidades) no sujeito social e na desconstrução da cidade enquanto ambiente diverso e democrático, propício ao encontro, à sociabilidade, à troca entre estranhos e ao conflito, assim como o espaço público enquanto espaço de permanência, fim em si mesmo, e espaço de exercício de civilidade e consolidação da esfera pública.

O artigo “Desculpe incomodar o silêncio de vocês: o transporte coletivo enquanto espaço público” é um dos destaques da edição nº 33 da Revista eletrônica e-metropolis.

ABSTRACT

Given the emptying of traditional public space in cities, the dissemination of the culture of fear of others and urban space, this article aims to analyze the bus under two aspects: its passengers as a contemporary re-reading of the flâneur character, leading to reflections about constructed environment and contemporary sociocultural practices; the mass transportation as microcosm of the city and, therefore, a glimpse to the matters of the social being and a space of resistance of the public sphere. In this regard, it analyses the consequences of modernist urban planning (car predominance, monofunctional zoning, urban sprawl) in the social being and the deconstruction of the city as a diverse and democratic environment, able to foster meetings, sociability, exchange and conflicts between strangers. The public space is accounted as a space of permanence, an end in itself, and as a place to exercise civility and consolidate the public sphere.

INTRODUÇÃO

O urbanismo modernista, a predileção pelo modelo de cidade rodoviarista e os condicionantes do contexto histórico provocaram a partir do século XX uma série de alterações no perfil do sujeito social, na configuração espacial das cidades e no imaginário urbano. Essa conjuntura desencadeou, principalmente entre as décadas de 1990 e 2000, uma crise social e uma crise no espaço público, tanto em sua dimensão material quanto imaterial. Essa foi fundamentada em grande parte pelo esvaziamento e negação do espaço público tradicional e intensificou no sujeito o medo do outro que lhe é estranho e da cidade, acirrando preconceitos e comprometendo a heterogeneidade do espaço público.

No entanto, é possível perceber que o instinto social do ser humano persiste, embora em menor proporção, e que muitos espaços na cidade ainda são capazes de reunir estranhos, promover a troca entre eles e potencializar o sentido social, civil e político do espaço público. Desse modo, busca-se destacar o espaço em movimento do ônibus como um desses espaços de exterioridade, de exposição ao outro e à cidade, onde é possível às pessoas exercitarem sua civilidade. Diferentemente do metrô, modal que tende a ser predominantemente subterrâneo, o ônibus destaca-se por permitir uma relação mais direta e peculiar entre seu usuário e o espaço urbano. Não só porque é mais lento, pode flexibilizar o seu trajeto a depender do motorista ou do trânsito e está mais vulnerável a imprevistos, mas principalmente porque realiza seu trajeto predominantemente na superfície do espaço urbano, permitindo não apenas sua contemplação como também uma maior interação com o mesmo.

Apesar de a frota ser insuficiente para acessar todas as regiões das cidades, essa modalidade de transporte tem uma importante função de integração e dessegregação do território urbano, na medida em que sua função primordial é justamente conectar as diversas partes da cidade, “conduzir e distribuir as pessoas, levá-las para longe de suas vizinhanças” (CAIAFA, 2007, p.89). Seu cotidiano repleto de acontecimentos inusitados e situações imprevistas convida aqueles que dele usufruem a interagir, e sua capacidade de produzir um recorte da vida social na cidade o transforma em um lugar propício à observação e vivência do cotidiano urbano. Do mesmo modo, o ônibus, ao mesmo tempo em que possibilita a troca e o convívio entre grupos sociais distintos, cria oportunidades de o passageiro observar e refletir sobre a paisagem urbana e funciona como espaço propício ao exercício da arte de flanar, a partir de uma releitura da figura do flâneur.

Opta-se, portanto, por refletir sobre o potencial desse espaço em manter viva a dimensão imaterial do espaço público na medida em que a sua dimensão material tradicional tem perdido essa capacidade. Busca-se contextualizar a descaracterização do espaço público da cidade enquanto espaço vivo e propício ao exercício de civilidade para, então, aprofundar as questões peculiares ao ônibus enquanto espaço de exterioridade. Para tal, propõe-se refletir sobre algumas práticas socioculturais comuns a esse espaço-tempo compartilhado, em especial os momentos de entretenimento e solidariedade protagonizados por seus passageiros, funcionários e pelos ambulantes, artistas e pedintes.

Nessa perspectiva, busca-se refletir sobre as experiências vivenciadas nesses transportes coletivos na cidade de Salvador e do Rio de Janeiro, respectivamente, entre 2006 e 2013 e entre 2013 e 2017, assim como a coleta de reportagens relacionadas a esse tipo de transporte. Pretende-se, portanto, refletir sobre acontecimentos cotidianos e discutir no campo acadêmico questões relativas à cidade, ao espaço público, ao sujeito contemporâneo e à sociabilidade urbana.

Leia o artigo completo no site da Revista e-metropolis.