Tarcyla Fidalgo Ribeiro¹
Na última semana, a aprovação na Câmara de Deputados do PL nº 4188/21 movimentou os noticiários e grupos progressistas, ao possibilitar a perda do imóvel utilizado para a residência – bem de família – em caso de execução de dívidas, do proprietário ou de terceiros, para as quais tenha sido dado em garantia.
O instituto do bem de família está presente no ordenamento jurídico brasileiro desde 1916, no Código Civil, assumindo diversas configurações ao longo das décadas seguintes, até chegar à sua configuração atual dada pela Lei nº 8.009, de 1990. Em seu aspecto atual, a figura do bem de família dialoga diretamente com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e com o direito à moradia, efetivados por meio da proteção ao imóvel que serve de residência familiar.
Para além de endossar as falas e manifestações contrárias à medida, que sem dúvidas aprofunda o arcabouço neoliberal de precarização das condições de vida dos mais vulneráveis em privilégio dos interesses de agentes financeiros, é importante contextualizá-la e explicitar quais podem ser, de fato, seus principais efeitos.
Inicialmente, cabe esclarecer que a alteração promovida pelo referido projeto de lei em relação ao bem de família autoriza a penhora do imóvel de moradia da família “para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”. Ou seja, apenas as dívidas que tenham o imóvel como garantia poderão levar à sua penhora.
Neste sentido, é importante refletir sobre quantas famílias podem, de fato, oferecer seus imóveis como garantia de dívidas, o que pressupõe a regularidade registral. Em um país com um histórico de irregularidade fundiária generalizada, no qual, apesar da falta de dados, se estima que mais de 70% dos imóveis sejam irregulares, é seguro afirmar que a medida não terá maiores efeitos práticos imediatamente.
Também é importante dizer que a medida apenas aprofunda um processo de desmobilização do instituto do “bem de família”, já em curso há alguns anos no país, seja por meio de alterações na Lei nº 8009/90, que o instituiu, seja por alterações na interpretação dos tribunais superiores sobre o tema. Cabe aqui destacar que, desde março deste ano, o STF passou a permitir a penhora do bem de família do fiador de contratos de locação residencial e comercial, entendendo que a voluntariedade no oferecimento do bem para servir de garantia a contrato alheio superaria a proteção à família que nele reside.
Assim, a indignação sobre a proposta contida no PL nº 4188/21 não pode prescindir de uma visão que o coloque em perspectiva, dentro de um cenário amplo de alterações legislativas dedicadas a criar um arcabouço normativo de valorização da propriedade e responsabilidade individual pelos riscos sociais e econômicos em detrimento de políticas e institutos de proteção ao mínimo existencial, como o bem de família objeto desta análise.
Deste modo, é preciso retornar para 2017, com a inflexão do modelo de regularização fundiária e aprofundamento do processo de privatização de imóveis públicos que vem se prolongando até hoje. O PL nº 4188/21 se torna expressivamente perigoso a partir do momento em que a população vulnerabilizada receba, de forma rápida e massiva como prevê o novo modelo de regularização fundiária, títulos de propriedade individual que permitam a negociação dos seus imóveis como garantia de dívidas.
O que está em jogo, mais do que a perda imediata da moradia, é a montagem de um arcabouço normativo que permita uma nova rodada de mercantilização e o aprofundamento da financeirização da terra no Brasil. Sem a disseminação de títulos de propriedade privada prevista pela Lei nº 13.465/17, o PL nº 4188/21 terá pouca efetividade. Por sua vez, sem o referido PL, a Lei nº 13.465/17 pode ter dificuldades para converter a regularidade registral dos imóveis na dinamização de um mercado de hipotecas, títulos financeirizáveis lastreados na terra urbana.
Nossos olhos devem estar voltados para o todo, denunciando a perversidade do aprofundamento de um arcabouço normativo que reforça o ideário da terra e da moradia como mercadoria e ativo financeiro, em detrimento de sua concepção como direito.
O PL nº 4188/21 segue o – problemático – modelo norte americano que originou a crise de 2008 e resultou no despejo de milhares de famílias norte-americanas, mas não está sozinho na construção da versão brasileira deste modelo. Devemos nos questionar como sociedade se é esse modelo que queremos para as moradias em nossas cidades, e não cair na armadilha de imaginar que se trata de uma iniciativa que pode ser combatida, e derrubada, isoladamente.
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¹ Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Coordenadora do Projeto Termo Territorial Coletivo na ONG Comunidades Catalisadoras (ComCat). Pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Rio de Janeiro. Conselheira Regional do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.