Via Revista PUC Minas
Por Lívia Arcanjo
Luciana Andrade observa que a história de Belo Horizonte é marcada pela segregação socioespacial, com a expulsão da população com menores recursos para regiões cada vez mais longínquas. Essa é uma característica do desenvolvimento das cidades latino-americanas que, de modo geral, se baseiam no modelo centro-periferia de segregação socioespacial. A socióloga observa, porém, que essa mobilidade forçada rompe com elos sociais e espaciais e, consequentemente, com parte da memória afetiva das pessoas. “É um processo perverso que priva um grupo, à medida em que ele tem que sair de onde residia, de toda uma vida social construída naquele lugar. Vida que é feita de relações de vizinhança, de apropriação do espaço, ou seja, de parte da identidade que construímos com a nossa cidade”, pontua. Ela também critica os discursos contrários, que argumentam que as políticas antigentrificadoras congelam a cidade. “Não se trata disso. A cidade é obviamente algo em constante transformação. O problema é quando essa transformação tem como objetivo o lucro de alguns, os empreendedores imobiliários, e o bem-estar de outros, os novos moradores, em prejuízo dos menos favorecidos economicamente”, analisa.
Embora a gentrificação seja, conceitualmente, um processo residencial, esse fenômeno afeta outros aspectos, como o comercial, já que interfere na economia local, e nos usos dos espaços públicos que, por definição, são espaços abertos a todos. Luciana ressalta, porém, que na prática essa abertura não se efetiva. “Essas ocupações têm relação direta com o poder de certos grupos, mas também com determinadas políticas públicas que não levam em conta os hábitos e costumes de um grupo social. Por isso sempre falamos que o espaço público é um lugar de conflitos e de poder. Se um grupo passa a predominar em um espaço ele pode gerar constrangimentos para as práticas e usos de outros grupos, assim como pode exigir do poder público medidas gentrificadoras do espaço público, proibindo ou dificultando certos usos que têm relação com o outro grupo”, explica.
Novamente, o Santa Tereza foge à regra. “É muito comum que os bairros de classe média tenham políticas segregacionistas e elitistas, e o Santa Tereza, não”, observa Luciana. A forte influência da comunidade local colaborou, inclusive, para que o Quilombo Souza, também conhecido como Vila Teixeira Soares, recebesse o título de Patrimônio Cultural Imaterial da cidade. O processo foi iniciado em 2019, logo após o reconhecimento do local como território quilombola pela Fundação Palmares, e o registro foi concedido no ano passado, às vésperas do Dia da Consciência Negra, aprovado por unanimidade pelos integrantes do Conselho do Patrimônio Cultural, durante sessão do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (CDPCM-BH). Este foi o quarto quilombo urbano a receber o registro imaterial do CDPCM-BH.
A professora Luciana Andrade, membro do Conselho, foi a responsável pelo parecer que garantiu o tombamento. “Tais políticas públicas foram resultado da gestão municipal, mas também, e muito importante, da organização dos moradores. Ou seja, a gentrificação não é um fenômeno inexorável. Ela pode e, frequentemente, tem encontrado resistência com políticas que propiciam uma cidade mais justa, e não uma cidade-mercadoria”, pondera.
Quilombo urbano
A história do Quilombo Souza é tão antiga quanto a do bairro. Sua origem vem de Petronillo de Sousa e Elisa da Conceição, que se casaram em 1902 e vieram para a capital mineira em 1909, assim como muitos trabalhadores, sobretudo afro-brasileiros, em busca de oportunidades. Os Souzas adquiriram um terreno, onde atualmente se encontra o bairro de Santa Tereza, com registro de compra datado de 1923, presenciando e contribuindo para o processo de urbanização do bairro ao longo dos anos. Atualmente, a comunidade localizada na rua Teixeira Soares abriga 14 famílias e 35 pessoas, que ainda preservam a cultura e os saberes de seus ancestrais.
Gláucia Cristine, líder do quilombo, afirma que o reconhecimento como patrimônio cultural e imaterial é uma forma de resistência e luta. “Conhecíamos as nossas origens e nossa história. Mergulhamos no passado, em busca dos documentos necessários para o nosso reconhecimento e, assim, manter a preservação do nosso território, que estava sob forte ameaça”, conta, ao afirmar que o registro é uma forma de resguardar os direitos do grupo, e que, para adquiri-lo, recebeu a contribuição da Associação Comunitária do Bairro Santa Tereza (ACBST) e do Movimento Salve Santa Tereza. “Esse apoio foi muito importante, pois, foi através dos encontros para a votação da ADE que houve o despertar que o nosso modo de vida era de uma comunidade quilombola e isso seria um dos meios para nossa defesa e resistência contra o despejo”, explica.
Pedro Barros, presidente da ACBST, conta que a articulação para reverter a ordem de despejo que ameaçava a comunidade foi um esforço conjunto da associação com alguns vereadores, assessores e vizinhos. “Recebemos o convite para uma reunião com a Polícia Militar, que afirmava que o terreno já havia sido destinado aos antigos donos. A partir daí acreditávamos que os moradores seriam despejados. Contudo, fomos procurados por vizinhos ligados a movimentos sociais de luta por moradia que informaram que a situação jurídica da posse dos terrenos não estava determinada. Daí passamos a conhecer a história destes vizinhos e sua identidade como grupo descendente de escravos e suas características quilombolas e abraçamos essa luta, dando apoio para a construção de toda a documentação, relatórios, materiais e ações necessárias para este merecido título”, conta.
Gláucia ressalta a boa convivência da comunidade quilombola com os demais moradores do bairro, apesar de sofrerem preconceitos por parte de alguns habitantes. “Estar na minha comunidade, que é patrimônio cultural e imaterial, em Santa Tereza, que também é patrimônio, é muito importante para que a gente possa ter os nossos direitos garantidos, preservados, e que a gente tenha essa convivência harmônica com o bairro. Santa Tereza é um bairro tradicional e nós somos uma comunidade tradicional, porque ser quilombo é ter uma cultura tradicional. Então, a gente se sente em casa”, afirma.
Articulação comunitária
Pedro Barros, que preside a ABCST há três anos e foi membro por dois anos da gestão anterior, explica que a Associação atua buscando respostas do poder público para demandas coletivas dos moradores e comerciantes, na proteção do patrimônio material e imaterial do bairro e no resguardo da qualidade de vida de Santa Tereza. “Alguma forma de organização sempre é necessária para a preservação das características culturais locais já consolidadas em centros urbanos. Os interesses sobre o espaço nas cidades são múltiplos e se apresentam de forma desigual perante o poder público, gerando dentre outros efeitos a gentrificação citada no bairro Anchieta. Nesse sentido, a participação da comunidade, através de associações ou outros modelos coletivos, é essencial, pois caso contrário a representação comunitária terá voz mínima frente a outras com maior capilaridade dentro das instituições públicas”, afirma.
Residente do bairro há 39 anos, ele acredita que a luta dos moradores para preservar as características originais do bairro é o que permite a formação de uma identidade comunitária, mantendo as pessoas como os bens mais importantes do bairro. “É o que garante a qualidade de vida no bairro, a história local e o charme de Santa Tereza para a cidade”, afirma Pedro, que é autor da dissertação Movimentos sociais e políticas públicas: um estudo de caso do Movimento Salve Santa Tereza, e acredita que a atuação da comunidade colaborou para a efetivação de políticas de conservação do patrimônio do bairro. “Foram diversos atos de mobilização social, participação em fóruns, debates, câmaras, exposição midiática, dentre outras ações para manutenção e criação de leis de proteção, tombamento de bens materiais e imateriais, e destinação correta dos imóveis públicos presentes no bairro”.
Para saber mais:
- Ouça o episódio A Dinâmica Espacial da Desigualdade Social nas Metrópoles do podcast PUC Play PUC Minas. A entrevistada é a cientista social Luciana Teixeira de Andrade, professora Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas e pesquisadora do Observatório das Metrópoles.
*Matéria publicada originalmente no site da Revista PUC Minas. Acesse: revista.pucminas.br/transformacoes-urbanas