por Tomás Rigoletto Pernías / Le Monde Diplomatique
O documento recém lançado “World Inequality Report 2018” aponta que o crescimento da desigualdade social é um fenômeno que tem ocorrido, de maneira geral, em todas as regiões do mundo. O relatório mencionado, que visa contribuir para enriquecer o debate sobre a desigualdade, demonstra que a concentração de renda aumentou, grosso modo, em todos os países: desde 1980, de maneira acelerada nos Estados Unidos, China e na Índia; e moderadamente, entre os países da Europa. Em perspectiva histórica, diz o texto, trata-se do fim de uma era marcada por regimes econômicos mais igualitários, a depender da região considerada.
O documento esclarece, todavia, que apesar de a desigualdade social ter crescido em todas as regiões do mundo, foi possível observar diferenças substanciais na velocidade em que a concentração de riqueza ocorreu. As diferentes trajetórias do crescimento da desigualdade entre os países estudados mostra, desse modo, que as políticas públicas e as instituições de cada país possuem tem um papel fundamental em moldar as formas e a intensidade da desigualdade entre os cidadãos.
Ainda que o relatório pondere que há exceções dignas de serem mencionadas, como o Brasil, país em que a desigualdade social permaneceu relativamente estável ao longo dos últimos anos, cumpre enfatizar que o panorama geral não é animador. O Brasil, país que não teve um passado marcado por uma maior igualdade socioeconômica entre seus cidadãos (tal como ocorreu nos países desenvolvidos), apresenta um índice de desigualdade social similar ao dos países do oriente médio. Portanto, ao apresentar um nível de desigualdade social alarmante, o Brasil representa o que o documento chama de “fronteira da desigualdade”, uma expressão criada para designar os países em que a desigualdade se manifesta de forma mais intensa.
Combater a desigualdade social no Brasil, infelizmente, não é uma tarefa trivial. Como se não bastasse a complexidade do tema, o enfrentamento da questão ainda carrega a imensa dificuldade de confrontar os economistas que buscam deslegitimar essa batalha, ora negando o problema, ora relativizando as mazelas envolvidas, ou, ainda pior, afirmando que não há nada que realmente se possa fazer sobre o assunto.
João Amoêdo, candidato à presidência da República, afamado por sua sua candidatura de viés econômico liberal (porém conservadora nos costumes), é um dos que procuram minimizar o problema da desigualdade social. Numa recente entrevista para a Folha São Paulo, o candidato declarou que, mais importante do que o combate à desigualdade social, é preciso combater a pobreza. Na mesma entrevista, o candidato foi além e afirmou: “Qual é o problema da desigualdade? Você acha que se a gente resolver a desigualdade no Brasil é bom?”[i]
O candidato mencionado, que possui um patrimônio estimado em R$ 425 milhões – cuja metade está investido em aplicações de renda fixa – é também conhecido por denunciar os privilégios da “classe” política, um tema que certamente merece prioridade na agenda pública. Entretanto, algumas dúvidas a respeito de seu comprometimento em colocar um fim a todos os privilégios ainda permanecem. O que Amoêdo tem a dizer, por exemplo, sobre o seu privilégio de pagar 15% de imposto sobre suas aplicações financeiras, enquanto um trabalhador brasileiro chega a ter 27,5% de seu salário tungado pela Receita Federal? Será que resolver essa desigualdade no Brasil é bom?
A declaração de Amoêdo reproduz um velho pensamento muito comum entre diversos economistas liberais: trata-se da ideia de que a desigualdade social não configura um problema e, portanto, não deveria entrar na agenda do poder público. O verdadeiro problema, conforme essa linha de raciocínio, estaria na pobreza, essa sim merecedora de atenção especial. As palavras de um ex-professor da London School of Economics e atual economista chefe do Citygroup, Willem Buiter, sintetizam bem a mensagem: “Poverty bothers me, Inequality does not. I just don´t care[ii]. De maneira mais sútil, Barack Obama já declarou também algo no mesmo sentido: “eu, como a maioria dos americanos, não invejo o sucesso ou a riqueza de outras pessoas. Isso faz parte do sistema de livre mercado”[iii], afirmou o ex-presidente Norte-americano. [iv]
Assim, o candidato que integra o Partido Novo revela sua disposição em aderir ao “velho”. Em meados do século XX, o economista austríaco Friedrich A. Hayek já pregava que intervenções públicas na distribuição da riqueza social reduzem a produtividade dos indivíduos e, portanto, rendem efeitos negativos. De modo similar, Milton Friedman pregava que a atuação governamental em busca de maior igualdade social, numa sociedade constituída por indivíduos com aptidões diferentes, prejudica os incentivos econômicos e enfraquece os nexos entre esforço e recompensa, causando um desserviço à sociedade. Ambos, cada um a seu modo, procuravam demonstrar a incoerência de se aplicar a noção de “justiça social” num sistema em que a distribuição de riqueza é um resultado de forças impessoais, os mecanismos de mercado.
Nesse sentido, Amoêdo não faz mais do que ecoar ideias decrépitas e ultrapassadas de antigos economistas liberais. Não é uma surpresa. É comum encontrar nos discursos de empresários, políticos e figurões do mercado financeiro argumentos vão no mesmo sentido da declaração de Amoêdo: um entendimento de que a desigualdade social não é um problema legítimo e digno de ser combatido. Lembremos as palavras de John Maynard Keynes, ainda no século XX: “Os homens práticos que se julgam livres de qualquer influência intelectual são habitualmente escravos de algum economista morto”[v].
Sem mais floreios, é preciso ser direto: níveis elevados de desigualdade social são disfuncionais para a sociedade, seja sob um ponto de vista econômico, seja sob um ponto de vista político.
Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que níveis alarmantes de desigualdade social são disfuncionais para o funcionamento da economia. A progressiva concentração de renda nos estratos superiores, ao diminuir a renda disponível para os estratos inferiores, limita as possibilidades de gasto de uma camada social que, em função de suas carências materiais de todo o tipo, possui maior propensão ao consumo. O enfraquecimento das possiblidades de consumo das camadas de baixa renda, por sua vez, impacta negativamente na demanda agregada de uma economia. Uma demanda agregada débil e incerta, por fim, prejudica o ímpeto de investimento dos empresários. Níveis baixos de investimento são incompatíveis com o crescimento econômico sustentado e com a elevação do emprego e da renda dos trabalhadores. A desigualdade social em níveis extremos, portanto, é irracional do ponto de vista econômico.[vi]
Em segundo lugar, é forçoso observar que níveis alarmantes de desigualdade social são prejudiciais à democracia: há um custo político a ser considerado. Em sociedades extremamente desiguais, a elite econômica pode facilmente fazer uso de seu poder para influir nos processos políticos, fazendo valer seus interesses, moldando as instituições conforme suas vontades e bloqueando as políticas públicas que poderiam melhorar a distribuição de renda. A concentração extrema da riqueza se traduz na criação de um Estado plutocrático, em que o poder do Estado é direcionado a facilitar a transferência de renda da base da sociedade para os estratos do topo. O resultado é um ambiente econômico e institucional que acentua a desigualdade social: uma espécie de mecanismo (nada impessoal) que reproduz a concentração de riqueza. [vii]
Para finalizar, vale dizer que se a desigualdade social realmente fosse uma condição para o crescimento econômico, um fator que enseja mais investimentos ou um incentivo para os agentes produzirem mais, tal como alguns economistas liberais preferem insinuar, o Brasil certamente estaria na pole position do progresso. Como o leitor pode observar, não é o caso.
*Tomás Rigoletto Pernías é doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituo de Economia da Unicamp