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O Poder Americano e a reversão nacionalista conservadora

O Observatório das Metrópoles divulga a análise “Tendências e limites do poder global”, do cientista político José Luis Fiori, com o objetivo de contribuir para uma reflexão teórica sobre o fenômeno Trump, e sobre a reversão “nacionalista e conservadora” da sociedade norte-americana deste início do século XXI. Segundo Fiori, os tambores de guerra já voltaram a soar, anunciando o retorno do “poder das armas” ao epicentro do Sistema Mundial; e os EUA retomam o velho ideário da centralização do poder num só estado nacional, caracterizado pelo fortalecimento do poder territorial e do capital nacional para a conquista do poder global.

O texto “Tendências e limites do poder global”, foi extraído do artigo “Formação, expansão e limites do poder global” publicado no livro “O Poder Americano”, da Editora Vozes. O texto foi cedido por José Luis Fiori para a Rede Observatório das Metrópoles com o propósito de ampliar o debate sobre a análise geopolítica internacional.

Fiori é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor do livro “O Poder Global” (Editora Boitempo). Ele pesquisa e ensina há mais de 20 anos no campo das Relações Internacionais, e em particular, na área de Economia Política Internacional, com ênfase no estudo das relações entre a geopolítica e a economia política do “sistema inter-estatal capitalista”.

Até 2008, publicou 9 livros e organizou 5 coletâneas. Ganhou o Prêmio Jabuti de Economia, Administração, Negócios e Direito, na Bienal do Livro de São Paulo, em 1998, com o livro “Poder e Dinheiro. Uma economia Política da Globalização”, organizado com a professora M.C.Tavares; e recebeu Menção Honrosa, na Bienal do Livro de 2002, com o livro “Polarização Mundial e Crescimento”, organizado com o professor C. Medeiros. Desde 1990, publicou cerca de 230 artigos em jornais como Valor Econômico, Correio Braziliense, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Jornal do Comercio, e em revistas como Carta Capital, Exame, Praga, Margem Esquerda, Carta Maior, SinPermisso e La Onda.

 

Tendências e Limites do Poder Global

Por José Luis Fiori

(Extraído do artigo “Formação, expansão e limites do poder global)

Para explorar teoricamente o futuro do Sistema Mundial, criado a partir da expansão dos estados e das economias nacionais europeias, o caminho mais fecundo é partir da sua contradição fundamental e de suas conseqüências, para poder calcular sua capacidade de reprodução e seus limites de resistência. Como vimos, essa contradição aponta, no limite, por um lado, na direção do “poder global” e da construção de um “império mundial”, e por outro lado, na direção do fortalecimento do poder territorial, dos estados e capitais nacionais.

Não é impossível especular sobre o limite deste império global porque ele significaria – por definição – o fim político do sistema interestatal. E o mais provável, do ponto de vista econômico, que também signifique o fim do capitalismo. Como diz Max Weber, “foi o estado nacional bem delimitado que proporcionou ao capitalismo sua oportunidade de desenvolvimento – e, enquanto o Estado nacional não ceder lugar a um império mundial, o capitalismo também persistirá”. (Weber, 1961: 249).

Numa linguagem mais próxima da física e da termodinâmica, do que da dialética hegeliana, se pode dizer que a expansão do poder global, na direção do império mundial, é uma força que levaria à entropia do sistema ao provocar sua homogeneização interna com o desaparecimento das hierarquias e conflitos das suas unidades constitutivas responsáveis pelo dinamismo e pela ordem do próprio sistema. “Um só império seria sinônimo de um só “território econômico” com uma só moeda. Isto suporia a eliminação simultânea das soberanias políticas e das moedas nacionais dissolvidas no comando único, político e monetário do império que passaria a ser responsável pela política monetária e orçamentária de todas as províncias. Neste caso se eliminaria também o habitat do capital financeiro, que se alimenta da competição interestatal.

O cenário mais provável para este império seria uma tendência ao estado de estagnação ou a uma grande reversão histórica, em direção ao que foi no passado, durante séculos, o império chinês”. (Fiori, 1999: 63). Mas, mesmo na hipótese em que ocorresse este desaparecimento do sistema interestatal e capitalista, não se consegue ver, no presente, nenhum indício efetivo de um novo sistema que pudesse surgir e que fosse, por exemplo, mais pacífico ou igualitário. Nesta história global dos estados e economias nacionais, não se consegue identificar estados que sejam portadores de algum projeto revolucionário de reorganização do Sistema Mundial. Todos se movem com os mesmos objetivos e suas diferenças internas, de regime político e organização social, não parecem ter maior impacto no seu comportamento internacional, pelo menos nos momentos decisivos da história e do seu envolvimento em conflitos de maior proporção.

No mundo das Grandes Potências, e de todos os demais estados e economias nacionais, portanto, não existem bons e maus, nem melhores ou piores, em termos absolutos. O que existe são estados que, em determinados momentos da história, assumem posições mais ou menos favoráveis à paz e à convergência das riquezas nacionais. Mas, mesmo nestes casos, há que distinguir a retórica ideológica dos comportamentos concretos, e além disto, estar atento para as mudanças de comportamento de um mesmo estado, dependendo do momento e da posição que estiver ocupando dentro da hierarquia de poder e riqueza internacionais. Quase todas as Grandes Potências já foram colonialistas e anticolonialistas, pacifistas e belicistas, liberais e mercantilistas, e quase todas elas, além disto, já mudaram de posição várias vezes ao longo da história.

Neste contexto, todas as previsões, liberais ou marxistas, do fim dos estados ou das economias nacionais, ou mesmo da formação de algum tipo de federação cosmopolita e pacífica, são utopias, com toda a dignidade das utopias que partem de argumentos éticos e expectativas generosas, mas são ideias ou projetos que não têm nenhum apoio objetivo na análise da lógica e da história passada do Sistema Mundial. E neste ponto, como diz Hobsbawm, é bom “lembrar que a esperança e a previsão, embora inseparáveis, não são a mesma coisa (…) e toda previsão sobre o mundo real tem que repousar em algum tipo de inferência sobre o futuro a partir daquilo que aconteceu no passado, ou seja, a partir da história”. (Hobsbawm, 1998: 67).

Apesar desta opacidade, como na física também no caso do Sistema Mundial existem forças que atuam em direção contrária desse poder global e do império mundial, forças que impediram, até hoje, que este processo de centralização do poder chegasse até o ponto da entropia ou dissolução do sistema. A primeira e mais importante destas contratendências opera no campo geopolítico e geoeconômico, e tem a ver com o comportamento contraditório das próprias potências expansivas que aspiram ao império mundial.

Já vimos que não há possibilidade lógica de que uma potência ganhadora possa seguir acumulando poder e riqueza sem contar com novos competidores e adversários, econômicos e militares. Por isso ela própria promove, sempre que necessário, o desenvolvimento econômico dos seus futuros concorrentes, como aconteceu com a Inglaterra em relação à Alemanha, aos Estados Unidos e ao Japão, no século XIX, e voltou a acontecer com os Estados Unidos, no século XX, em relação à Alemanha, ao Japão, à Coréia, à Taiwan e, mais recentemente, com a própria China. Hoje se pode ver melhor a contribuição dos Estados Unidos, também no sucesso do antigo projeto russo de construção de uma Grande Potência durante o século XX, ao colocar a União Soviética na condição de seu principal inimigo, na sua estratégia de Guerra Fria.

A potência expansiva e ganhadora pode prever, com base na experiência da história passada, que o crescimento econômico e militar dos seus competidores mais próximos produzirá, no médio prazo, uma redistribuição territorial da riqueza e um deslocamento dos seus centros de acumulação mundial. E, muito provavelmente, acabará provocando, no longo prazo, uma redistribuição do próprio poder mundial. Mas a potência expansiva não tem como evitar esta conseqüência e por isto se pode dizer, em última instância, que é o seu próprio comportamento que cria seus principais obstáculos e adversários. É ela mesma que alimenta a contratendência “nacionalizante” dos demais estados que bloqueiam sua marcha em direção ao poder global, e ao império mundial.

Mas atenção, porque este comportamento não se restringe apenas ao campo econômico. Por mais paradoxal que possa parecer, ele também acontece no campo militar porque, em última instância, são as potências ganhadoras que também armam os seus futuros e eventuais adversários, pelo menos até o momento em que eles adquiram autonomia tecnológico-militar.

Mesmo depois do fim da Guerra Fria, os Estados Unidos (com 56,7% do mercado) e a Rússia (com 16,8% de todas as vendas de 2003) continuam dominando o mercado internacional de armamentos, e os países asiáticos, a China em particular, seguem sendo os seus maiores compradores. E não é necessário acrescentar que, depois dos Estados Unidos e da Rússia, os maiores vendedores são a Alemanha, a Inglaterra e a França, os demais membros do clube das Grandes Potências. Isto, a despeito de que a maioria dos analistas internacional considere que o maior desafio ao poder americano deverá vir, no longo prazo, da Ásia e da China.

Já foi assim no passado, mas depois da II Guerra Mundial, por exemplo, quando os Estados Unidos estimularam decisivamente o crescimento econômico dos seus concorrentes e adversários da guerra, eles mantiveram a Alemanha, o Japão e a Itália, na condição de seus “protetorados militares”. Enquanto que agora, no período mais recente, os Estados Unidos não exercem nenhum tipo de protetorado, nem têm nenhum tipo de presença militar direta dentro do território chinês. Mas, além disto, as Grandes Potências também vendem suas armas para todos os demais países do mundo, mesmo os que não têm nenhuma perspectiva de se transformar em potência.

Com isto, contribuem para a militarização dos conflitos internacionais em todos os patamares do Sistema Mundial, alimentando as guerras entre os países periféricos que podem não ter maior impacto sobre as grandes coordenadas do sistema, mas que recriam permanentemente suas regras de funcionamento, em todos os níveis da luta, pelo poder e pela riqueza. Como se a história do “jogo das guerras” entre as antigas “unidades imperiais”, de que falava Braudel, reaparecesse e recomeçasse de novo, e todos voltassem a competir por sua segurança com os seus vizinhos mais próximos.

Nesses níveis de competição, não importa a assimetria global de poder entre as Grandes Potências, porque se trata de lutas mais restritas que envolvem sócios menores do “grande jogo”, e onde as Grandes Potências podem experimentar suas novas tecnologias sem maiores riscos globais, ao mesmo tempo em que fazem seus “ajustes de contas” com as mãos de terceiros. Esta recriação da competição e dos conflitos e guerras nestes patamares inferiores da hierarquia do poder militar, dificultam a convergência de interesses e a possibilidade de uma aliança estável entre os estados insatisfeitos com o satus quo mundial.

Mas, ao mesmo tempo, estes conflitos reproduzem e aprofundam as contradições do próprio sistema e contribuem para a mobilização interna das populações que quase sempre se unem e se solidarizam com seus estados quando seus governantes decidem lutar por mudanças na posição do seu país dentro da hierarquia de poder e riqueza mundial. Ainda mais em conjunturas de excessiva polarização ou “desigualização” na distribuição da riqueza entre as nações e as classes sociais. Deste ponto de vista, se não há dúvida que a multiplicação destes conflitos locais fragmenta os países periféricos e dificulta o “internacionalismo dos países pobres”, ao mesmo tempo em que estes conflitos aumentam a força das lutas sociais e nacionais, contra a centralização do poder e da riqueza internacional.

“Salvo raras exceções, se pode afirmar que a aproximação nacionalista das elites com seus povos só ocorreu quando algum tipo de bipolarização ou competição política, militar ou econômica, no campo internacional ameaçou ou afetou os interesses do Estado e a riqueza das burguesias locais. Essa “lei” atuou de forma implacável na história europeia e se mantém vigente nas relações entre as grandes potências que compõem o núcleo central do sistema, mas só se manifesta excepcionalmente na periferia do sistema quando não existe um verdadeiro desafio geopolítico ou geoeconômico”. (Fiori, 2001: 72).

Ao analisar esta mesma convergência periódica entre o “nacional” e o “social”, Karl Polanyi formulou uma tese e uma versão extremamente original e provocadora dos efeitos da contradição central do Sistema Mundial, dentro de algumas sociedades e economias nacionais. Resumindo seu argumento, Karl Polanyi identifica a existência de um “duplo movimento” na história do capitalismo, desde o século XIX, resultado da ação permanente e contraditória de dois princípios organizadores das economias e sociedades de mercado, cada um deles apontando para objetivos diferentes.

Um, seria o “princípio do liberalismo” econômico que propõe, desde as origens do sistema, a globalização ou universalização dos mercados auto-regulados, através da defesa permanente do laissez faire e do livre comércio, processo análogo ao da construção do império mundial do capital financeiro, previsto por Nicolai Bukharin. E o outro, seria o princípio da “autoproteção social”, uma reação defensiva que se articula historicamente “não em torno de interesses de classes particulares, mas em torno da defesa das “substâncias sociais ameaçadas pelos mercados”. (Polanyi [1944], 1980: 164).

Muitos intérpretes de Polanyi leram sua tese sobre o “duplo movimento” das economias e sociedades capitalistas como se fosse uma seqüência no tempo ou como se tratasse de um movimento pendular ao longo da história. A visão de Karl Polanyi, entretanto, é mais dialética do que pendular porque, para ele, os dois princípios têm raízes materiais e sociais que convivem de forma necessária, permanente e contraditória dentro do capitalismo.

Os ‘anticorpos’, que acabam paralisando e corrigindo a expansão entrópica dos mercados auto-regulados, nascem de dentro da própria expansão mercantil, se manifestam esporadicamente nos interstícios do mundo liberal, e se fortalecem com a destruição que os mercados desregulados produzem, no longo prazo, no mundo do trabalho, da terra, do dinheiro e da própria capacidade produtiva das nações. Além disto, este princípio da “autoproteção social” pode se manifestar de duas maneiras diferentes: i) dentro das sociedades nacionais através de várias formas de democratização política e social e da construção de redes de proteção coletiva das populações; e ii) dentro do sistema internacional, na forma de uma reação defensiva dos estados que decidem proteger seus sistemas econômicos nacionais, em situações de crise ou de competição desigual.

No caso dos países europeus, e no período histórico analisado por Polanyi, estes dois movimentos de autoproteção convergiram, invariavelmente, devido à permanente competição interestatal europeia e ao lugar central ocupado pelas guerras dentro destas competições. Segundo Polanyi, dentro dos países que se envolvem nestas competições e guerras, o desafio externo dilui as fronteiras de classe e estimula várias formas de solidariedade e consciência nacional, como aconteceu na “era da catástrofe”, entre 1914 e 1945, momento em que se criaram as bases para o maior “choque distributivo” e democratizante da história do capitalismo, que viria a ocorrer depois de 1945 com as políticas de pleno emprego e de proteção pública e universal das populações, propostas que eram consideradas verdadeiras heresias durante a época de ouro da “civilização liberal”, entre 1840 e 1914. Hoje, olhando retrospectivamente, se pode ver que a própria revolução comunista, “num só país” – independente de sua gigantesca especificidade social – também cumpriu o papel vitorioso de atualizar o antigo projeto russo de construção de uma Grande Potência, durante o século XX.

Na virada do século XXI, a história pode estar anunciando uma nova etapa de convergência entre as lutas nacionais e sociais dos povos menos favorecidos, segundo o modelo de Polanyi. O Sistema Mundial viveu uma era de euforia liberal depois de 1990 e de novo, em muito pouco tempo, de desorganização do mundo do trabalho, da terra e do dinheiro, que levou à corrida imperialista e às Grandes Guerras dos séculos XIX e XX. Além disto, guardadas as diferenças, os tambores de guerra já voltaram a soar, anunciando o retorno do “poder das armas” ao epicentro do Sistema Mundial, ao mesmo tempo em que se multiplicam as formas de protecionismo das Grandes Potências econômicas.

Por isso, não é improvável um novo momento de convergência entre movimentos de autoproteção nacional que questionem o status quo internacional e movimentos sociais que pressionem contra a excessiva polarização da riqueza entre as classes sociais. É interessante observar, entretanto, que se esta convergência voltar a ocorrer, será também um movimento de resistência contra a entropia do Sistema Mundial, anunciada pela acelerada centralização do poder num só estado nacional, os Estados Unidos, que hoje se propõem realizar, explicitamente, a previsão de Kant, de que “o desejo de todo estado e de seus governantes é alcançar uma condição de paz perpétua, através da conquista de todo mundo”.

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