Em setembro, foi lançado novo edital da PPP Habitacional de São Paulo. O objetivo é conceder para privados a implantação de mais de 14 mil unidades de Habitação de Interesse Social (HIS) e de Mercado Popular (HMP). Para a urbanista Paula Santoro, a leitura do edital permite assistir à saída do Estado da gestão de uma política habitacional. Acompanhe o debate sobre os planos urbanísticos de São Paulo no blog observaSP.
O blog observaSP é uma iniciativa do LabCidade (FAU/USP) com o objetivo de monitorar e influenciar políticas urbanas municipais, com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos. Coordenado por Paula Santoro e Raquel Rolnik, o observaSP irá monitorar os desdobramentos do novo Plano Diretor Estratégico de São Paulo e a implementação da Operação Urbana Consorciada Água Branca.
A iniciativa do observaSP integra o projeto de pesquisa “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados à implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil”, com financiamento da Fundação Ford. O INCT Observatório das Metrópoles participa do projeto com estudos de caso no Rio de Janeiro, coordenado pelo professor Orlando Alves dos Santos Jr., e em Fortaleza, coordenado pelo professor Renato Pequeno.
A seguir o texto da urbanista Paula Santoro sobre as PPP da habitação em São Paulo.
O papel do Estado na PPP da Habitação de São Paulo
*Por Paula Freire Santoro
No final de setembro, foi lançado um novo edital de licitação da Parceria Público-Privada Habitacional de São Paulo. Trata-se de uma concorrência internacional. O objetivo desta PPP é conceder administrativamente para privados, organizados nos termos de uma Sociedade de Propósito Específico, a implantação de 14.124 unidades de Habitação de Interesse Social (HIS) e de Mercado Popular (HMP) na região central de São Paulo, além de exigir dos mesmos a prestação de serviços, como trabalho técnico e social pré e pós-ocupação das moradias, além de apoio à gestão condominial, gestão da carteira de mutuários e manutenção predial (ver edital. O documento completo com anexos está disponível em www.habitacao.sp.gov.br até 12/11/2014). A concessão será de 20 anos.
Os valores estimados de contrato para os quatro lotes somam 7,34 bilhões de reais e correspondem aos valores projetados das receitas obtidas com a venda de unidades de HIS e HMP, somados aos pagamentos feitos pelo Estado para a execução do contrato que envolve também serviços.
A leitura do edital permite assistir à saída do Estado da gestão de uma política habitacional. Alguns elementos ajudam a compor esta tese:
(1) Ausência de discussão ou qualquer processo democrático na construção da política. Logo na abertura do edital o texto evidencia o cumprimento dos requisitos prévios à realização do procedimento licitatório: cita que realizou UMA Audiência Pública, em 25/03/2013, e uma consulta pública, que consistiu na consulta aos editais e contratos disponibilizados no site. Para o Estado Brasileiro, democracia é mais do que isso e consulta pública não é a possibilidade de acessar materiais, isso é obrigação de um processo licitatório.
Com certeza, considerando os problemas relativos ao primeiro edital, esperava-se que fossem feitos debates públicos com diferentes setores da sociedade, moradores da região e afetados pelos projetos, ampliando e democratizando o processo de construção de uma política.
(2) Critério do menor valor a ser pago. O critério de seleção das propostas será o menor valor a ser pago pelo poder público pela concessão. Espera-se, com isso, que o empreendedor privado que queira “morder menos” tenha mais chance de ganhar? Talvez… Mas as rentabilidades estão bem garantidas: uma conta simples baseada na leitura do edital demonstra que o valor que a iniciativa privada irá investir corresponde a 50% do valor total, que envolve os serviços contratados pelo poder público e os valores projetados das vendas das unidades (conhecido como Valor Geral de Venda, em linguagem do mercado imobiliário). Ou seja, um bom negócio.
O edital tenta controlar a qualidade habitacional através do estabelecimento de diretrizes para as intervenções urbanas (ver anexo ii), e a qualidade da localização através do estabelecimento de áreas de intervenção organizadas em quatro lotes. Mas não há a obrigatoriedade de seguir as diretrizes (aliás, boas! Afinadas com as propostas do Plano Diretor), nem descontos na avaliação da proposta caso o privado não as cumpra. Estaria o governo estadual abrindo mão de controlar a qualidade da produção de HIS ao não definir penalidades?
E ainda, em relação à localização das novas unidades, esta pode ser modificada se houver justificativa, através de autorização do Governo do Estado para implantação de unidades habitacionais em locais diversos dos indicados nos perímetros da figura que segue, desde que observado os limites do centro expandido (definido pelos distritos Sé, República, Santa Cecília, Barra Funda, Bom Retiro, Pari, Brás, Mooca, Belém, Cambuci, Liberdade, Bela Vista e Consolação). Quer dizer que, se não der para fazer aí, nos lotes definidos, é possível mudar de área. Mais uma garantia para o concessionário, principalmente se o preço da terra subir muito, conferindo a possibilidade de “reequilíbrio contratual”.
Na contramão do critério do preço mais barato, os colombianos, por exemplo, fazem editais de planos urbanísticos estabelecendo outras motivações para selecionar o vencedor, como: maior oferta de área por unidade, maior número de unidades, e pagamento de valor mais alto pelo preço da terra (sim, o governo recupera parte da valorização da terra para a coletividade).
(3) Aquisição de todos os terrenos utilizados para Habitação de Mercado Popular (HMP) pelo concessionário. Para isso, prevê a transferência das desapropriações para o privado, mas apenas quando se tratar de Habitação de Mercado Popular. Interessante ver como o obstáculo jurídico que impedia a desapropriação por privados quando de interesse público foi superado com a divisão entre HIS com desapropriação pelo poder público, e HMP com desapropriação pelo concessionário privado. Mas não fica claro quem desapropriará para a implantação de equipamentos e melhorias urbanísticas previstas no edital.
A possibilidade de desapropriar faz com que o privado não tenha que propor excelentes ofertas para convencer os proprietários a vender os terrenos para viabilizar a construção das novas unidades. Este fato faz com que seja interessante ao privado associar-se ao poder público, uma vez que pode utilizar-se do instrumento da desapropriação para fins que não sejam o “interesse público”, ou, melhor dizendo, o “interesse social”. Isso é questionável juridicamente uma vez que este instrumento deveria ser utilizado apenas para o interesse público e fazer HMP não configura interesse público.
Vale retomar post anterior sobre o tema, escrito pela urbanista Simone Gatti, no qual já citávamos a declaração à imprensa do secretário estadual de Habitação, que afirmava que 80% dos terrenos envolvidos já são públicos! Mas… Onde estão estes terrenos, secretário?
(4) Poder público não irá fiscalizar, contratará alguém para fiscalizar. Além da contratação da concessionária para implantação das unidades, haverá a contratação de uma “pessoa jurídica”, chamada de Certificadora da Implantação, para “apoiar” a fiscalização da implantação das unidades. Esta não é uma atitude nova em gestão pública. A contratação de gerenciadoras foi, por exemplo, uma medida tomada no caso de várias obras em áreas do Programa Mananciais, em São Paulo. É mais um passo na transferência da responsabilidade pela fiscalização para empresas privadas, sempre com o argumento – pró-privatização da gestão – da ineficiência do poder público em fiscalizar. Os gastos envolvidos nesta decisão, porém, têm sido pouco estudados.
(5) Normas específicas para HIS no âmbito da PPP. Embora o edital frise que respeita a legislação urbanística, através de reiterados comentários de que as regras das ZEIS, ZEPECs e Operações Urbanas devem ser respeitadas, há uma normatização específica para Habitação de Interesse Social no âmbito da PPP que soa como flexibilização de alguns parâmetros da normativa municipal.
Hoje, pelo Plano Diretor Estratégico, Habitações de Interesse Social são aquelas voltadas às famílias com renda entre 0 e 6 salários mínimos, contendo no máximo um sanitário e uma vaga de garagem; já as Habitações de Mercado Popular são aquelas voltadas para famílias com renda entre 6 e 10 salários mínimos, contendo até dois sanitários e até uma vaga de garagem. Mas o edital cria outros critérios para HIS, relacionando número de dormitórios com metragem mínima de área útil da unidade, que podem ser de 3 tipos – 1 dormitório com no mínimo 33 m2 de área útil; 2 dorms. com 43 m2; e 3 dormitórios com 50 m2 – e ainda podem ter varanda. Mas apenas 20% das unidades podem ser de 1 dormitório e 5%, de 3 dormitórios. Esta divisão em si não é o problema, pode ser interessante que haja diversidade de tipologias. Mas é necessário garantir que tais tipologias sejam destinadas aos públicos para os quais foram concebidas e que dialoguem com as regras urbanísticas do município.
Ainda, estranhamente, a proposta divide em outras faixas as rendas familiares colocadas pelo Plano Diretor Estratégico (Lei 16.050/14) – entre 0 e 6 salários mínimos para Habitação de Interesse Social (HIS 1 e 2) e de 6 a 10 salários para Habitações de Mercado Popular –, a saber:
Esta divisão torna a proposta mais complexa por não se relacionar com o quadro de necessidades habitacionais (no qual este ranqueamento de acordo com a renda familiar não existe), e sim com a capacidade de pagamento das unidades pelas famílias e os ganhos esperados pelas empresas. Será que faz sentido esta divisão considerando as necessidades habitacionais de São Paulo?
Soma-se a estes argumentos o fato de que algumas das áreas são ZEIS, cujas regras exigem um percentual de área para HIS que não parece coincidir com estes percentuais assim divididos. Será que a PPP será uma exceção às regras urbanísticas?
(5) Os beneficiários enquadram-se em uma determinada “faixa de renda”. Mas quem vai escolher os beneficiários dentro destas faixas? Não fica claro, mas parece que talvez esta seja uma das poucas decisões a serem tomadas pelo Governo do Estado. Mas sozinho? Como será a relação com o Conselho de Habitação do Estado? Ele funciona? Não há menção ao atendimento dos que vivem nos assentamentos precários próximos, então, os moradores da Favela do Moinho, que integra um dos lotes, não serão beneficiados pelas intervenções? E a Prefeitura de São Paulo e o Conselho Municipal de Habitação não estão envolvidos nesta discussão?
O anexo iii aponta que os beneficiários serão apresentados em uma lista cadastrada fornecida pelo governo do Estado. Que lista é esta? Seria a da CDHU? Em tempo: recente post de Caio Santo Amore aqui no blog tratou justamente deste tema, olhando para a cidade de São Paulo. Será que não é hora de o Governo do Estado avançar na discussão dos critérios que definem quem vai morar nas novas unidades a serem construídas?
Vê-se novamente a implantação da política de habitação voltada para os que podem pagar e baseada na propriedade privada. Uma vez no mercado, quem garante que serão as faixas de renda que compõem o déficit habitacional as que vão permanecer na área?
Por fim, o que se vê é o que historicamente vem sendo construído: uma reorganização do papel do Estado na transformação urbana, diminuindo sua presença na gestão e na construção do urbano, substituída pela fórmula das parcerias público-privadas em processos como os que David Harvey (1989) chamou de “empresarialismo” (vale a pena ler a tradução do texto para o português: “Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio” na Revista Espaço & Debates n. 39 de 1996). A experiência de implantação destas novas formas de gestão, associada à imposição da lógica da rentabilidade dos projetos para atrair o interesse privado, tem induzido a concentração de renda e a valorização da terra, restringindo o uso do espaço para formas e usos pouco (ou não) rentáveis, dificultando a produção de espaços públicos e, principalmente, de habitação de interesse social. Seria este um projeto diferente?
*Paula Santoro é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do projeto ao qual o observaSP é vinculado. Contribuiu com o Movimento pelo Direito à Cidade no Plano Diretor durante seu processo de discussão.
Última modificação em 26-11-2014