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“Não há urbanismo em Fortaleza, porque não há planejamento”

By 28/09/2011dezembro 12th, 2017Notícias

Em entrevista para o Jornal O Povo, o professor Renato Pequeno, da Universidade Federal do Ceará e coordenador do núcleo regional do INCT Observatório das Metrópoles, faz uma análise da dinâmica urbana da quinta maior metrópole do país. De acordo com ele, sem uma estrutura montada para ordenar a cidade e pensar o seu planejamento, Fortaleza caminha para o esgotamento.

Leia a seguir a íntegra da entrevista, publicada no dia 17 de setembro, na página do Jornal O Povo digital. Durante a conversa, Renato Pequeno falou sobre a ausência histórica de planejamento urbano para Fortaleza, abordou os projetos urbanísticos que estão sendo implementados, e o peso que tem tido o mercado para a conformação territorial da cidade.
Planos e projetos desordenados

O arquiteto e urbanista Renato Pequeno, professor da Universidade Federal do Ceará, é categórico: não há urbanismo em Fortaleza porque não há planejamento urbano e um não existe sem o outro. “A cidade vem sendo gerida por projetos, mas não existe diálogo entre eles. Estão desconectados de um processo de planejamento. Vão fazendo projetos ao Deus dará”, critica Renato em entrevista para O POVO.

Sem uma estrutura montada para ordenar a cidade e pensar seu planejamento, Fortaleza caminha para o esgotamento. A quinta maior metrópole do país acumula problemas e vive um momento atípico com obras em vários pontos da malha viária e projetos grandes sendo executados ou pensados, mas sem conexão entre eles.

Mesmo sendo um crítico ferrenho do caos instaurado, Renato tem uma teoria otimista. Ele acredita que esse monte de projetos sem interligação vai ser o gatilho para um cenário melhor. “A quantidade de projetos, sendo todos feitos ao mesmo tempo, vai dar essa lição de que a cidade não vive sem planejamento. A falta de vínculos entre os projetos vai começar a ser vista melhor”. Totalmente dedicado à Academia, “até para manter a independência”, Renato tem outras teorias interessantes sobre a falta de planejamento em Fortaleza. (Mariana Toniatti)

O POVO – Em que espaços temos urbanismo aplicado em Fortaleza?

Renato Pequeno – Para ter urbanismo, é fundamental que tenha planejamento urbano. Vou ter uma compreensão de como o crescimento vai ser ordenado para que se possa identificar que projetos aquela cidade deverá ter e em que condições esses projetos serão formulados. Na ausência desse processo, a cidade acaba carecendo bastante de urbanismo. Quando penso, o desenho atual da Beira Mar, que proposta urbanística tem ali? É um mero calçadão linear. De que maneira aquela forma se ajusta ao que há no entorno? Qual o urbanismo que existe na Praia do Futuro? Nenhum. É o caos. A gente sofre desse mal porque os processos de planejamento na forma como foram pensados – para gerar Planos Diretores – desconsideram essa dimensão. Pensam o planejamento da cidade simplesmente indicando qual o coeficiente de aproveitamento, a taxa de ocupação, o gabarito, mas não desenha aquele espaço, não dá diretrizes urbanísticas para os projetos.

OP – Na prática, o que seriam essas diretrizes?

Pequeno – Elas indicam, por exemplo, os tipos possíveis de pavimentação, a largura das ruas, as relações com entorno, alguns padrões de ocupação. O projeto Vila do Mar (de urbanização da orla da Barra do Ceará ao Pirambu, com reassentamento de mil famílias) tem um princípio de urbanismo, nos indica um caminho possível. O projeto original, o Costa Oeste, foi revisto e virou o projeto Vila do Mar. Era só uma obra viária. Agora o projeto está no caminho. Houve uma grande melhoria. Vai haver urbanismo pleno quando houver uma integração daquela via com o entorno. O que é interessante também é que o projeto urbanístico está inserido num processo de planejamento que veio posterior à obra da avenida. A via toda está numa Zona Especial de Interesse Social (Zeis, definida no último Plano Diretor), que pega desde o bairro da Barra do Ceará até o kartódromo. O fato de ter essa zona pode vir a garantir uma permanência das famílias que estão ali.

OP – Temos uma orla segmentada, cortada. Isso é ruim ou é uma orla diversa?

Pequeno – Reflete nossa realidade. Tem espaços de concentração de riqueza, o trecho verticalizado da Beira Mar, para onde convergem boa parte dos investimentos. O trecho da Costa Oeste, que em princípio ia abrir uma nova fronteira para o mercado imobiliário, mas com a delimitação da Zeis, há expectativa de que isso seja impedido. Há um trecho que seria um grande espaço de lazer da cidade, a Praia do Futuro, aguardando por melhorias, um processo de urbanização. E há um trecho a ser preservado, a foz do Cocó e a Sabiaguaba. O litoral reflete a condição de desenvolvimento desigual e bagunçado que a gente tem e a desconexão do planejamento urbano.

OP – Numa cidade com formas mais harmônicas, com deslocamentos mais interessantes, tende-se a ter um comportamento melhor e a ter mais qualidade de vida, mas por outro lado, a população também tem a cidade que merece. Como resolver essa equação?

Pequeno – Fortaleza não tem história de planejamento urbano. É difícil lembrar de algum Plano Diretor que tenha sido efetivamente implementado e eles são mais uma coisa jurídica, não chegam a sugerir formas, vão dar índices. O Município não montou sua equipe para a elaboração desses planos, foi ficando cada vez com menos capacidade institucional para realizar seu controle urbano e elaborar seu planejamento. Houve a extinção do Instituto de Planejamento do Município num momento crucial, quando a cidade estava numa explosão imobiliária formal e informal. Fortaleza tem mais de 600 favelas. Não temos uma estrutura de planejamento que pense a cidade no futuro, em quais vão ser as demandas, e consiga encontrar soluções para os problemas que já estão sendo detectados.

OP – Por que chegamos nesse cenário? São muitas variáveis. Você tem algumas conclusões?

Pequeno – Vê Curitiba. Tem um processo de planejamento instalado desde a década de 40. Um arquiteto francês foi contratado pela Prefeitura e pensou um primeiro plano para a cidade que vai ter continuação desde os anos 60, quando é criado o Instituto de Planejamento Urbano. Na época com o arquiteto Jaime Lerner, que depois se torna prefeito. As tentativas de implantar um processo de planejamento urbano aqui sempre foram abortadas. Existe um plano que considerava que a cada nove ou 15 quadras, teria uma praça. Quando a proposta foi apresentada, ninguém queria doar aquela quadra. Desde os anos 70 que os novos loteamentos têm que doar áreas para a Prefeitura implantar espaços livres. Muitas das favelas de Fortaleza estão nos espaços livres que nunca foram urbanizados. As tentativas de elaboração de Planos Diretores têm sido pouco efetivas. Do plano mais recente, aprovado em 2009, até hoje muito pouco foi implementado. O que a cidade sofre hoje é histórico. A meu ver, passa por como se dá a questão fundiária da cidade. Quem são os grandes proprietários de terra?

OP – Aqui tem essa peculiaridade, tem bairros inteiros só de uma família.

Pequeno – Até que ponto essa concentração fundiária está associada também às estruturas de poder? Dessa junção entre o privado e o público, podemos encontrar algumas respostas para os problemas que a gente enfrenta.

OP – Se não tiver planejamento e controle, a Beira Mar, por exemplo, pode continuar com problema de circulação, estacionamento, sujeira e não ter impacto urbanístico, o que acabou acontecendo com o Centro Dragão do Mar?

Pequeno – A cidade vem sendo gerida por projetos – o Vila do Mar, o Acquário, o do Titãnzinho, o Centro de Feiras -, mas não existe um diálogo entre eles. Estão desconectados de um processo de planejamento. Vão fazendo projetos ao Deus dará. Tem recurso para esse projeto, faço e pronto. Não tem uma postura desse projeto com o entorno. O urbanismo poderia ser essa ponte entre o que está sendo projetado e o que está sendo planejado. Qual a conexão entre a nova Beira Mar e o Acquário? Não tem uma cidade desenhada que indique esse projeto para os próximos dez anos. Vamos entender a situação existente, pensar quais são os temas críticos, que atores estão envolvidos e que estratégias consigo traçar pra promover o desenvolvimento urbano. A partir das estratégias, os projetos poderiam ser apontados. Desses projetos apontados, quais a cidade tem recursos, quais tem capacidade de endividamento para captar os recursos, quais dá para realizar? Tem o projeto Vila do Mar, um projeto habitacional muito bonito, diga-se de passagem. O conjunto que está sendo feito é da maior qualidade nos materiais, na execução, tem qualidade arquitetônica, urbanística inclusive. Aquele projeto está sendo pensado, mas também é desconectado da cidade.

OP – Hoje quem dita para onde a cidade vai crescer não é o planejamento urbano, é o mercado.

Pequeno – Hoje, ontem e antes de ontem também. Foi o mercado imobiliário que lançou a Praia do Futuro. Aquela área que era inviável num determinado momento por conta da maresia, já tem duas torres perto da barraca Ytapariká e outras que vão ser construídas perto do (hotel) Vila Galé. É uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que é favorável eu fazer o que bem entenda, chega um determinado momento que vai estrangulando as oportunidades da cidade. Começa a ter desperdícios, ‘deseconomias’. O turista que vem para Fortaleza utiliza a como cidade dormitório. Um dia vai para o Cumbuco, Lagoinha, Canoa Quebrada, Beach Park, e a cidade mesmo ele aproveita pouco, é uma ‘deseconomia’. Se a Praia do Futuro fosse um lugar mais atrativo, a cidade poderia ter esse turista aqui também.

OP – Como você imagina Fortaleza em dez anos?

Pequeno – Apesar da crítica, sou otimista. Prefiro acreditar que todos esses investimentos que estão vindo desconectados, sem planejamento, vão fazer com que essa possibilidade de crescimento se esgote. A quantidade de projetos, sendo todos feitos ao mesmo tempo, vai dar essa lição de que a cidade não vive sem planejamento. Na hora que tiver um VLT que atravessa uma área de ocupação com tanta pobreza – caso ele venha a ser executado -, as medidas vão precisar ser tomadas. A falta de vínculos vai começar a ser vista melhor. À medida que tiver o Pirambu como faixa de praia urbanizada que chega na Praia de Iracema e não existe conexão, a falta de conexão vai ficar mas evidente. A Beira Mar, enquanto trecho da orla urbanizado, deixa de ser a exceção. Os projetos todos vindo ao mesmo tempo vão garantir essa chance de repensar a cidade.

OP – A gente já tem regras de uso de calçada, por exemplo, mas não respeita. Investir no controle urbano, no dia a dia, pode trazer mais conforto de maneira mais rápida?

Pequeno – A cidade tem controle urbano restrito a uma parte. Fortaleza é pensada, conduzida, para um setor. Se você construir alguma coisa na calçada da Leonardo Mota, chega um fiscal, mas se fizer uma escada helicoidal no Bom Jardim, não chega ninguém. E a parte controlada, na verdade não está sob controle porque se julga acima do controle. Aí tem a Dom Luís com calçadas irregulares, por exemplo. É tudo ideológico. O urbanismo deveria ser melhor pensado, melhor incorporado. Tanto no controle como no projeto urbano. Quem são os novos urbanistas trabalhando no poder público? Não existe mais.

OP – Numa cidade com formas mais harmônicas, com deslocamentos mais interessantes, tende-se a ter um comportamento melhor e a ter mais qualidade de vida, mas por outro lado, a população também tem a cidade que merece. Como resolver essa equação?

Pequeno – Fortaleza não tem história de planejamento urbano. É difícil lembrar de algum Plano Diretor que tenha sido efetivamente implementado e eles são mais uma coisa jurídica, não chegam a sugerir formas, vão dar índices. O Município não montou sua equipe para a elaboração desses planos, foi ficando cada vez com menos capacidade institucional para realizar seu controle urbano e elaborar seu planejamento. Houve a extinção do Instituto de Planejamento do Município num momento crucial, quando a cidade estava numa explosão imobiliária formal e informal. Fortaleza tem mais de 600 favelas. Não temos uma estrutura de planejamento que pense a cidade no futuro, em quais vão ser as demandas, e consiga encontrar soluções para os problemas que já estão sendo detectados.

Fonte: Jornal O Povo

 

Última modificação em 28-09-2011