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Movimentos populares e política habitacional no Brasil

By 10/10/2012janeiro 29th, 2018Artigos Científicos
Conjunto União da Juta/SP

Conjunto União da Juta/SP (Crédito Luciana Corrêa Lago)

Neste artigo Regina Fátima Ferreira discute o papel dos movimentos de moradia na construção de uma política de habitação de interesse social (HIS) no Brasil, nos últimos vinte anos. Segundo a pesquisadora, a demanda por recursos, programas e ações para financiar a produção habitacional realizada de forma autogestionária resultou não só na retomada da atuação do Estado, em âmbito nacional, na questão da habitação, como também tem fomentado a construção de um projeto coletivo alternativo de sociedade, baseado nos princípios da igualdade e justiça social.

O artigo “Movimentos de moradia, autogestão e política habitacional no Brasil: do acesso à moradia ao direito à cidade”, de autoria da pesquisadora Regina Fátima Ferreira, foi apresentado no último Congresso ISA em Buenos Aires. O trabalho é mais um resultado do GT Habitação do INCT Observatório das Metrópoles.

A pesquisa de Regina F. Ferreira também busca identificar as experiências autogestionárias na produção social da moradia que vem sendo realizadas através dos programas federais. A partir deste mapeamento, a pesquisadora tentou levantar algumas questões que envolvem o papel da autogestão na política habitacional e na crítica à produção de cidades que reflitam tão somente o tratamento da moradia e dos serviços urbanos como mercadorias e não como bens e serviços indispensáveis ao direito humano à vida e à cidade.

Acesse aqui o artigo completo sobre movimentos de moradia, autogestão e política habitacional no Brasil. A seguir a introdução do trabalho de Regina F. Ferreira.

 

Introdução

No Brasil, na América Latina e nos países do Sul, em geral, a falta de moradia ou a falta de moradia em condições adequadas para se viver de maneira digna sempre representaram um grave problema social, poucas vezes tratado como um problema público prioritário a ser respondido pelo Estado.

As políticas neoliberais que incidiram sobre toda a América Latina e, especialmente no Brasil, a partir da década de 80, agravaram o quadro de crise habitacional e crise urbana, decorrente da redução de gastos nas políticas sociais e do desemprego em massa. Na ausência de políticas de subsídio por parte do Estado, a população desprovida de recursos materiais para a “compra” de uma moradia (significativa parcela da população, considerando seu alto custo), ocupou áreas inadequadas para a habitação e utilizou-se da autoconstrução como estratégia para viabilizar um “teto”, iniciando processos organizatórios em torno da luta pela moradia. Sistematicamente, à luta pela habitação, segue-se a luta pelo acesso aos serviços urbanos, aos equipamentos comunitários necessários à educação, à saúde e à mobilidade urbana – condições indispensáveis para a integração socioespacial e ao exercício do direito à cidade.

A falta de um bem indispensável à vida humana resulta na organização sociopolitica, fenômeno bastante presente na América Latina e em diversos países do sul. Em torno da luta pela habitação, constituíram-se sujeitos políticos nas cidades – os movimentos sociais de luta pela moradia, entendendo-se como movimentos sociais, segundo Scherer-Warren (2009), aqueles movimentos que conectam sujeitos individuais e atores coletivos em torno: (i) de identificações comuns; (ii) de um campo de conflito e de seus principais adversários; (iii) e de um projeto ou utopia de transformação social.

No Brasil, os movimentos sociais urbanos se organizaram ainda no período da ditadura militar, na década de 70, em torno das lutas pela moradia, regularização fundiária, saúde e saneamento, tendo a Igreja progressista um forte papel neste processo. No período de redemocratização, na década de 80, os movimentos de moradia se articularam com outras organizações da sociedade (sindicatos, universidades, organizações não governamentais) e ampliaram a luta do direito à moradia para o direito à cidade, constituindo-se uma rede de reforma urbana aglutinada no Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU).

A concepção do direito à cidade, conforme enunciada na década de 60 por Lefèbvre (2008), envolvendo não só o direito ao trabalho, à instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida, mas também o direito à criação, à atividade participante e à apropriação da cidade, influenciou esta rede, que atua desde o processo de redemocratização e construção de uma nova Constituinte (1987) até os dias atuais. Durante este período, a rede de reforma urbana logrou a conquista de marcos legais na direção do direito à cidade como, por exemplo, a inclusão, em 2000, do direito à moradia como um direito social fundamental na Constituição Federal do Brasil e a aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, referência para a regulação do uso do solo e a implementação de uma política fundiária urbana. No entanto, as conquistas legais não representaram uma mudança substancial na realidade urbana brasileira, notadamente marcada pela segregação socioespacial e pelas desigualdades intra-urbanas, metropolitanas e regionais.

Na plataforma da reforma urbana brasileira destacam-se não somente o acesso universal aos serviços urbanos através de políticas urbanas redistributivas, mas, principalmente, a apropriação criativa do espaço urbano pela população que usa a cidade como o espaço do encontro, do trabalho, do lazer, da vida. O caráter político emancipatório da rede de reforma urbana está expresso nas lutas dos movimentos sociais para a realização de processos autogestionários nas cidades e para a participação social nos processos de planejamento e gestão municipal, materializando o que Harvey (2005) anunciaria como a utopia de espaço e de processo.

É neste contexto que vão se inserir as lutas dos movimentos de moradia e reforma urbana tanto por políticas de habitação de interesse social voltadas para grupos autogestionários como pela radicalização da participação social nos processos de formulação e gestão das políticas urbanas.

A eleição de Lula para presidente em 2002 gerou uma grande expectativa quanto às possibilidades de se avançar nestas lutas. De fato, em 2003 teve início um processo de conferências públicas, nas três esferas de governo (municipal, estadual e federal) para a discussão das diferentes políticas. A 1ª Conferência das Cidades inaugurou a discussão participativa das políticas urbanas e resultou na criação do Conselho Nacional das Cidades, com ampla representação dos segmentos populares e em pleno funcionamento desde então.

Já no âmbito do fomento à autogestão popular nas políticas urbanas houve grande resistência por parte do governo federal, resistência esta que somente foi quebrada devido a grandes mobilizações nacionais dos movimentos sociais urbanos, realizadas anualmente, pressionando para que entrasse na agenda pública a autogestão na produção de habitação de interesse social (HIS).

Será apenas em 2004 que o primeiro programa federal voltado à autogestão habitacional será criado: o Programa Crédito Solidário; em 2008 é lançada a Ação de Produção Social da Moradia; e, em 2009, o Programa Minha Casa Minha Vida Entidades; este último, o principal programa hoje em funcionamento. Como resultado da implementação destes programas, é possível identificar, desde 2005, experiências de provisão habitacional lideradas por associações, cooperativas e grupos populares, em boa parte dos estados brasileiros. Qual o impacto e significado destas experiências sobre as cidades e se elas expressam a utopia do direito à cidade construída desde as décadas de 70 e 80 é a questão central que vem orientando nossa pesquisa.

Não temos a pretensão, contudo, de responder neste momento a esta questão. Neste artigo, nosso objetivo foi tão somente resgatar a longa trajetória feita pelos movimentos de moradia e reforma urbana para tornar real o acesso a fundos públicos para a produção social da moradia por grupos autogestionários, bem como mapear o conjunto de experiências que vem tendo lugar nos diversos estados brasileiros. Experiências estas que, como sabemos, passam invisíveis para o conjunto da sociedade, mas que podem representar uma alternativa à produção habitacional de mercado e, principalmente, uma alternativa política para a construção de uma sociedade que tenha como valores fundantes a igualdade, a solidariedade e a justiça social.