Remanescente de uma favela muito maior, a Pindura Saia, a Vila Santa Isabel, localizada no bairro Cruzeiro, área nobre de Belo Horizonte, é marcada por relações pacíficas e interdependentes entre os diversos grupos sociais. Essa experiência positiva de moradia popular em área central é o tema da dissertação da pesquisadora Tatiana Delfanti Melo, do INCT Observatório das Metrópoles, que serve de exemplo oposto ao chamado zoneamento excludente que impera nas cidades brasileiras, o qual restringe o acesso à moradia e gera padrões segregadores socialmente.
A dissertação “A Vila Santa Isabel na Avenida Afonso Pena: a experiência positiva da moradia popular em região central de Belo Horizonte”, de Tatiana Soledade Delfanti Melo, com orientação da professora Jupira Mendonça, foi defendida este ano no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, da Escola de Arquitetura da UFMG. O trabalho está inserido na Linha II de pesquisa do Observatório das Metrópoles – “Dimensão sócio espacial da Exclusão/Integração nas metrópoles: reprodução das desigualdades e impactos na sociabilidade urbana”.
Inicialmente, a pesquisadora queria descobrir como instrumentos urbanísticos de regularização fundiária, mais especificamente a legalização da terra, poderiam ter assegurado a permanência de uma favela em local tão visível, integrado e valorizado na capital. A pesquisa constatou que os moradores da Vila Santa Isabel, a maioria deles descendentes dos primeiros ocupantes, não possuem títulos, apenas posse. “Passei então a tentar entender a permanência da Vila também pela perspectiva das vivências cotidianas e das relações sociais entre moradores da comunidade e da região do entorno”, conta Tatiana Melo.
De acordo com a pesquisadora, os habitantes dos 48 domicílios da Vila, que ocupa área de quatro mil metros quadrados de propriedade do município, desfrutam de preferência nas vagas de emprego da região, o que indica a confiança dos empregadores e gera economia nos transportes – situação radicalmente oposta à dos moradores de comunidades carentes mais distantes. Tatiana descobriu ainda mercados aquecidos de aluguel de quitinetes para estudantes da Universidade Fumec e de fornecimento de refeições tipo marmitex, que incrementam a economia comunitária.
Tatiana Melo ressalta que a localização de moradia em área central, provida de infraestrutura completa, equipamentos e serviços, garante às famílias oportunidades que se traduzem em acesso a escolas de qualidade, níveis mais altos de instrução e qualificação profissional, e, por consequência, elevação da renda. Um dado que chamou a atenção da pesquisadora foi o bom desempenho escolar e a perspectiva do ingresso na universidade para os jovens: metade dos que terminaram o ensino médio cursa ou já concluiu o ensino superior. “Os conflitos vividos por alguns moradores derivam da infraestrutura precária em parte da Vila e do uso incipiente de drogas”, diz Tatiana. “Mas esses conflitos poderiam ser solucionados ou atenuados se a presença do estado não se limitasse às batidas policiais.”
A seguir algumas conclusões da pesquisa de Tatiana Delfanti Melo na Vila Santa Isabel.
Pela interação de moradias entre renda média e de interesse social
A Vila Santa Isabel é uma favela de dimensão e população reduzida. Localiza-se, há cerca de 80 anos, no “Alto” da Avenida Afonso Pena, região de elevado valor comercial e simbólico da capital mineira, em meio a bairros de classe média e alta. Três décadas separam a inauguração de cidade de Belo Horizonte do surgimento da Vila Santa Isabel. A origem da maioria dos moradores entrevistados na Vila guarda a descendência dos primeiros moradores da Favela Pindura Saia.
A vida cotidiana em meio à centralidade de maior pujança da metrópole é pacata, “tranquila”. “Os vizinhos são bons, ninguém incomoda”, segundo os próprios moradores. Os conflitos existem, Lícia Valladares (2005) já atentou para o “mito da comunidade coesa”. Mas, “não há tiroteio, nem confusão tem”, dizem os moradores. “Perto de outras favelas aqui é o céu”, disse moradora 69 anos. A violência atribuída ao território da favela não se verifica ali e esta é uma diferença importante.
O que os moradores da Vila mais gostam é da vizinhança, seguida da localização. A vizinhança e a estrutura familiar são determinantes para o aproveitamento da estrutura de oportunidades oferecida pela localização. Nas proximidades da Vila os moradores estudam, trabalham, consomem, passeiam, enfim, tecem a trama social que dá vida à cidade.
O desenvolvimento dos estudos dos jovens é muito positivo, metade deles terminou o segundo grau com a perspectiva natural da universidade. A insegurança sentida não se difere tanto daquela sentida pelos moradores da “cidade formal”, e a “casa fortaleza” (CAVALCANTI, 2009) é verificada tanto na Vila como no bairro. A região do Alto da Avenida Afonso Pena é classificada como “perigosa” pelos dois grupos sociais. O uso de drogas preocupa os adultos quanto ao futuro dos jovens, constrange os moradores diante da vizinhança “de dentro” e “de fora” da Vila. No entanto, não é problema exclusivo destas famílias, foi identificado também entre os jovens que moram nos bairros do entorno. O uso de drogas no interior da Vila é proporcionado pela configuração espacial do “lado de cima”, porção mais precária, que demandaria intervenções pontuais para elevar a qualidade do espaço habitado, e jamais uma intervenção estrutural nos moldes da política atual. A “proximidade física” não agrava a “distância social” (RIBEIRO, 2008).
Quando os moradores dizem “os ricos pra lá, nós pra cá”, expressam o “individualismo próprio das formas de sociabilidade contemporâneas” (ANDRADE, JAYME, ALMEIDA,2009), mas não a “segregação que exclui o outro” (MENDONÇA, 2002). Sentem que há algum preconceito, mas parece não se tratar de estigma. Possuem preferência nas vagas de trabalho da região, são percebidos positivamente pelos vizinhos como a expressão da diversidade da cidade (JACOBS, 2000). Há amizade com a vizinhança do bairro, há interação social, pertencem ao bairro.
A localização e a forma da moradia proporcionam o funcionamento de um mercado popular de aluguéis e de alimentação. Tanto os moradores da Vila se beneficiam com a renda gerada, como toda a estrutura comercial e de serviços do entorno, incluindo os serviços de educação prestados pela Universidade FUMEC. Estudantes provenientes do interior do Estado podem pagar a universidade FUMEC porque pagam barato pelo aluguel e pela comida, estendendo assim a positividade existente também no mercado popular proporcionado pela presença das Vilas Fumec e Pindura Saia.
Os moradores gostam de morar na Vila e querem permanecer. Para os moradores dos bairros do entorno imediato a vontade dos moradores da Vila deve prevalecer. Porém, as prospecções futuras dos moradores da Vila Santa Isabel nãosão positivas, indicam pouca capacidade de (ou mesmo disposição para) resistência. Imaginam que serão removidos porque o “terreno é caríssimo”. Poderiam pensar, qual o problema de morar num terreno caríssimo? Isto é meu e daqui ninguém me tira! Se pensassem assim, ofereceriam uma resistência que não está sendo considerada nas negociações entre a iniciativa privada e o Estado e que envolvem o território da favela. O morador de 75 anos lembrou-se com pertinência: “quem chegou primeiro é que fique primeiro, nós chegamos antes da Afonso Pena”. Se este fosse o pensamento da maioria talvez pudéssemos presenciar o êxito das classes populares sobre a hegemonia das forças políticas e econômicas.
O direito à moradia é assegurado pela Constituição Federal. Pela lei, os moradores deveriam ter sua segurança jurídica da posse. Com esta garantia, reconhecida através de uma Concessão Real do Direito de Uso (CDRU), por exemplo, poderiam até se mudar se assim desejassem (como foi manifestado por alguns moradores). Mas a área de ZEIS deveria permanecer para assegurar o direito à moradia para as futuras gerações. A localização da moradia em área central e todas as oportunidades que ela oferece, como visto na Vila Santa Isabel, garantem o acesso a outros direitos sociais constitucionais como educação, trabalho, saúde, lazer e segurança.
Por isso, o poder público ao invés de se unir à iniciativa privada para articular a extinção das ZEIS, deveria cumprir o arcabouço legal que ampara o direito à moradia e à cidade, ampliando a quantidade de ZEIS nos vazios urbanos centrais.
Nas palavras de Ermínia Maricato:
“A conhecida figura do zoneamento poderia ser utilizada para garantir áreas com um mix de moradia de camadas de renda média e interesse social, mas, em vez disso, o zoneamento tem contribuído para restringir o mercado e, portanto, o acesso à moradia, por meio de padrões excludentes e segregadores ou distinguidores” (MARICATO, 2000:177)
O “mix de moradia” defendido por Maricato é o que se observa no contexto urbano da Vila Santa Isabel, embora não tenha derivado de um propósito das sucessivas leis de zoneamento da cidade. A região é de renda alta e média, há diversidade de usos e há a presença das três vilas diretamente conectadas à malha de transporte urbano. Esta forma do arranjo urbano, através do mix, mostrou-se mais eficaz na interação social entre Vila, bairro e cidade, do que o Programa Vila Viva cujo slogan é de “Integração das Vilas à Cidade”.
A experiência da moradia popular na Avenida Afonso Pena, área central de Belo Horizonte, verificada no caso da Vila Santa Isabel, mostrou-se positiva sobre vários aspectos. A pesquisa permitiu verificar o que é o oposto da segregação socioespacial e como a interação social relaciona-se diretamente com a configuração do espaço urbano. O espaço urbano que mistura moradias “caras” e “baratas”, mercado sofisticado e popular, e que por isso é acessível a diferentes grupos sociais, mostrando que há uma interação socioespacial possível. Mas até quando? A julgar pelo desenrolar da história e pelas tendências apontadas pela política atual de intervenção em favelas no município, somadas à imagem de remoção futura que os moradores possuem, a Vila Santa Isabel corre o risco de desaparecer.
As tendências atuais apontam para a extinção da Vila e para a exclusão de sua área da Zona Especial de Interesse Social. As perspectivas futuras significam retrocesso nos reconhecidos avanços da instituição democrática brasileira. Porém, este retrocesso é apropriado, ironicamente, pelo discurso da “participação popular” e quer passar desapercebido diante do senso comum. Como considerações finais, reitero as palavras de alguns autores que foram referência para esta pesquisa. Como Silva, desejo encontrar “ações contrahegemônicas que poderiam conduzir-nos a uma sociedade mais justa e igualitária” (SILVA, 2011:128). Como Ostos, considero que “a URBEL, enquanto instituição, deveria pensar justamente no lugar ‘fora dos limites do pensado’”. (OSTOS, 2004:172). Como Lopes, considero “que o enfrentamento da prática do desfavelamento de novo tipo passa pela superação da participação orientada, a partir do exercício do direito de discordar”. (LOPES, 2010:156). Como Burgos (2005), considero a necessidade de ampliação dos canais de voz. Como Fernandes, considero que “as condições para reverter as bases do processo de espoliação urbana no Brasil passam pelo enfrentamento da questão central dos direitos de propriedade imobiliária” (FERNANDES, 2008:134). E, enfim, como Maricato, considero que não basta a “perplexidade” diante dos fatos, há a necessidade de uma “militância intelectual” ativa que impeça a consolidação de práticas que se apropriam do discurso democrático “para ocultar a verdadeira orientação dos investimentos ou dos privilégios nas cidades” (MARICATO, 2000:188).