Mobilidade urbana: os desafios do futuro
Num período em que os novos países emergentes atravessam uma fase de forte crescimento econômico e consequente aumento da motorização individual, Fernando Nunes da Silva volta seu olhar para o passado – num período pós Segunda Guerra Mundial de domínio do automóvel – para analisar a evolução das políticas de mobilidade e retirar algumas conclusões quanto aos caminhos a prosseguir. Da crise dos preços do petróleo nos anos 1970 começaram a se desenhar outros tipos de políticas, mais orientadas pelos conceitos de intermodalidade e de coesão social, além de mais preocupadas em reduzir os impactos ambientais da mobilidade urbana.
O artigo “Mobilidade urbana: os desafios do futuro”, de Fernando Nunes da Silva, é um dos destaques do Dossiê: “Mobilidade urbana nas metrópoles brasileiras”, da Revista Cadernos Metrópole nº 30.
Abstract
The decades following the Second World War were characterized by the predominant presence of the automobile in urban mobility, both in terms of its increasing importance in the modal split, and also regarding the definition of public policies and strategies of accessibility. With the first oil crisis in the 1970s and the subsequent environmental awareness of the negative impacts of the transport sector, new policies began to be designed, guided by concepts such as intermodality and social cohesion, as well as more concerned about reducing the environmental impacts of urban mobility. In a period where the new emerging countries present a strong economic growth and a consequent increase in the motorization rate of their population, it is useful to analyze the evolution of such mobility policies and share some conclusions about the paths to follow, highlighting the specificities of those countries, and also the lessons of the recent past.
Do sonho à realidade, ou de como o automóvel passou de mito a pesadelo
Por Fernando Nunes da Silva
Enquanto na Europa a ideologia do “tudo pelo automóvel, nada contra o automóvel”, que marcou as políticas de mobilidade e transportes no pós Segunda Guerra, está claramente posta de parte e é apenas encarada como uma curiosidade científica a estudar, nos países emergentes e em desenvolvimento acelerado, a pressão das nossas classes médias e dos interesses associados ao mercado do petróleo e das grandes obras públicas continuam a determinar as opções e prioridades políticas da administração pública no sentido do favorecimento do transporte individual.
Tal como nos EUA das décadas de 1950 a 1970, o automóvel (e toda a economia que gira em torno dele) continua nesses países a ser visto como um forte motor do crescimento econômico e de acesso à mobilidade. Assim sendo, é “natural” que as políticas públicas não deixem de o privilegiar, quer no que se refere aos incentivos para a indústria de montagem de automóveis,como ao nível da construção de novas infraestruturas rodoviárias, quer ainda no controle do aumento dos preços de combustível (sempre abaixo da inflação) e na relativa estagnação ou secundarização do investimento nas redes e sistemas de transportes coletivos. De fato, parece que ainda nos encontramos na época em que, nos EUA, publicava-se o que muitos consideram já o último elogio e defesa do automóvel e da sua cultura. Aí se afirmava que “unless there is a radical change in our social and economic structure, people will continueto want and use transportationthat will give them maximumfreedom to moveabout and to choose where they live, work, or locate their businesses” (Rae apud Flink, 1975, p. 212), para logo a seguir concluir que colocar limitações artificiais ou restrições ao uso do automóvel e do transporte rodoviário, apenas conduziria à estagnação social e econômica. Desse modo, as políticas deveriam sobretudo orientar-se para responder a essa procura crescente, pois “the Road and Car togetherhave an enormouscapacityfor promotingeconomicgrowth, raisingstandardsof living and creatinga good society.The challengebeforeus is to implementthis capacity” (ibid.).
Hoje, perante os problemas associados ao aquecimento global e ao peso que o setor dos transportes tem na emissão de gases com efeito de estufa, o aumento do número de vítimas relacionadas com os acidentes e a poluição atmosférica atribuídos ao transporte rodoviário, a perda de competitividade urbana devido aos crescentes congestionamentos de tráfego, e agora, mais recentemente, aos movimentos sociais que exigem melhores transportes coletivos e mais baratos, talvez estejamos mais próximos da “mudança radical” de que falava Rae, do que se continuarmos a atuar segundo do modelo “predict and provide”,que dominou os estudos e as políticas de transportes e mobilidade nos 30 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Todavia, por mais exemplos que se deem de como esse caminho só pode conduzir ao desastre – tanto urbanístico como social e econômico – a recusa em olhar a realidade tal como ela se apresenta nesses países e em responder com imaginação e realismo aos problemas específicos que se colocam têm falado mais forte e impedido que se avance com políticas de mobilidade mais adequadas às necessidades de deslocação da esmagadora maioria da população (grande parte sem ter sequer os meios para pagar qualquer transporte motorizado, quanto mais um automóvel!), mais interligadas e articuladas com os modelos de crescimento urbano e mais amigas do ambiente e não tão consumidoras de energia primária.
Os recentes acontecimentos no Brasil, provocados pelo anúncio (e várias tentativas) de aumento das tarifas dos transportes urbanos e metropolitanos, vieram mostrar, em toda a sua extensão, como a questão da mobilidade urbana é cada vez mais percebida como um direito de cidadania e uma exigência de equidade social, com um potencial mobilizador que vai muito para além das reivindicações tradicionais, promovidas e enquadradas pelas estruturas sindicais e partidárias habituais.Não ter entendido que, com a progressiva construção e consolidação de uma classe média (mesmo que “baixa” para os padrões europeus), as necessidades e ambições de mobilidade não poderiam continuar a ser satisfeitas com base em um modelo importado dos EUA e do Banco Mundial dos anos 1970 e 1980 – onde tudo era pensado e planejado em função do automóvel privado, de acordo com o modelo “predict and provide” –, mas sim através de uma política e estratégias de promoção e favorecimento dos modos não motorizados e dos transportes coletivos, custou caro ao governo, tanto o federal como os estaduais. A explosão de contestação social que essa questão das tarifas do transporte coletivo desencadeou – pelo que isso implicava de limitação da mobilidade para milhões de pessoas – e de como rapidamente se passou para a discussão da coerência e das prioridades a atribuir aos investimentos públicos é um primeiro sinal dos tempos que hão de vir, caso as políticas públicas de mobilidade e transportes mantenham o rumo seguido até aqui.
Daí o interesse em analisarmos a evolução dessa problemática na Europa, onde a força do movimento sindical do pós-guerra e as ideias e governos social-democratas e democratas-cristãos, que dominaram a cena política nas três décadas que se seguiram, conduziram ao progressivo desenvolvimento de políticas públicas de transportes e mobilidade que nunca deixaram de ter em conta o seu caráter social e, portanto, de se orientarem para satisfazer as necessidades básicas de deslocação da população. O maior peso atribuído ao transporte coletivo ou ao individual – sem que nunca se permitisse que o papel de um anulasse o do outro (foi esse o compromisso político possível) – dependeu primeiro da própria estrutura industrial e de rendimentos do país em causa e, mais tarde, já após a entrada em cena do conceito de “desenvolvimento sustentável” no final da década de 1980, das preocupações ambientais e de coesão social.
A história europeia das políticas de mobilidade, neste período, é assim um percurso que começa por se maravilhar com o potencial econômico, social e cultural associado à democratização da posse e do uso do automóvel (seguindo aqui as pisadas dos EUA, ainda que com uns trinta anos de atraso), para depois, em resultado do próprio sucesso da motorização individual e da pressão dos movimentos ambientalistas, passar a abraçar políticas mais equilibradas do ponto de vista modal, onde o transporte coletivo urbano assume o papel estruturante de todo o sistema de transportes e no assegurar da mobilidade da grande maioria da população, mesmo aquela que possui automóvel.
Para ler o artigo completo “Mobilidade urbana: os desafios do futuro”, acesse a edição nº 30 da Revista Cadernos Metrópole.
Última modificação em 17-04-2014 18:26:50