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Já está disponível o número 24 da revista Cadernos Metrópole,  cujo objetivo central é discutir as novas formas de configuração urbana, com destaque para os espaços metropolitanos. Nos treze artigos desta edição, como destaca o professor Frederico de Holanda, que especialmente escreveu a apresentação da revista, as contribuições sobre a realidade metropolitana brasileira vêm de um espectro diverso de formações disciplinares: geografia, arquitetura e urbanismo, sociologia, demografia, história e economia.

Vale lembrar que a Revista Cadernos Metrópole, de periodicidade semestral, tem como enfoque o debate de questões ligadas aos processos de urbanização e à questão urbana, nas diferentes formas que assume na realidade contemporânea. A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na governança urbana.

 Confira abaixo a apresentação escrita pelo Professor Frederico de Hollanda e Acesse a página dos Cadernos Metrópole.

 Apresentação

A realidade metropolitana brasileira é vista, nesta edição, de maneira rica e variada, desde sua natureza intrínseca à comparação com outras situações do planeta. Não só os núcleos centrais dos assentamentos são estudados: focam-se também a natureza de sua área de influência, os processos de suburbanização, as formas múltiplas em que se expande a mancha ocupada. As contribuições vêm de um espectro diverso de formações disciplinares: geografia (a maioria), arquitetura e urbanismo, sociologia, demografia, história, economia.

Na escala maior, temos os trabalhos de Emilio Pradilla Cobos e Neil Brenner. Pradilla reflete sobre a mundialização neoliberal, as mudanças urbanas e as políticas estatais. Num panorama que tende rapidamente à “urbanização total”, mostra como ela é hoje constituída por “cidades-região”, um tecido multifacetado, constituído por 1) “grandes desenvolvimentos imobiliários mistos”, 2) “centros comerciais socialmente diferençados” e 3) “unidades habitacionais fechadas”. Em todos identifica formas antiurbanas de desenvolvimento, envolvendo a primazia ao carro como modo de transporte (em detrimento do transporte público), a interiorização de atividades urbanas centrais (que antes estavam diretamente relacionadas ao âmbito público, como ruas e praças), e a segmentação das próprias residências, agora fechadas em guetos habitacionais, soluções que se disseminam por todas as faixas de renda. Conhecemos bem as versões no Brasil. Brenner aborda o tema mais processual que fisicamente. Discute as formas de governança metropolitana, basicamente na Europa. Descreve o processo de globalização como “desterritorialização” da nacionalidade pelo enfraquecimento dos Estados nacionais na regulação de suas economias e de seu espaço. E usa provocativo neologismo: progressivamente testemunhamos uma lógica espacial “glocal” a presidir a intervenção do capital globalizado nos empreendimentos pontuais em nossas cidades. As cidades – e seus processos de governança – se reestruturam para inserir-se competitivamente numa hierarquia urbana mundial. Isso implica um redesenho do “campo de batalha”, útil analogia para caracterizar desde sempre os conflitos de interesses na arena urbana. Talvez possamos deduzir da leitura de Brenner que o controle do Estado tende a confinar-se em nichos mais restritos e estrategicamente periféricos ante os interesses do capital mundial.

Numa abrangência espacial menor, temos os trabalhos sobre processos de urbanização dos quais as metrópoles são um elemento constituinte. Entre os artigos, isso é feito em várias perspectivas.

Na interface entre aspectos demográficos e do mercado de trabalho há os trabalhos de Carlos Lobo e Ralfo Matos, e de Hipólita Siqueira e Alexandre Gori Maia. Lobo e Matos questionam a tendência à “reversão da polarização” pela qual empregos e habitantes, pelas deseconomias de aglomeração (congestionamentos, preço de imóveis, criminalidade, etc.) estariam provocando uma dispersão dos investimentos e uma rarefação da urbanização na direção de pontos cada vez mais distantes do núcleo central. Sim, há uma desconcentração, mas os autores argumentam que, melhor que uma “reversão de polarização”, o processo poderia ser descrito como o de um “desenvolvimento poligonal”, com investimentos ainda concentrados, se não nos núcleos históricos, numa área de influência bem próxima deles. As atividades econômicas continuariam a usufruir das economias de aglomeração sem, contudo, sofrer mais diretamente os impactos das “deseconomias”. A “dispersão espacial” é um fato, mas “é equivocado absolutizar o processo de desconcentração espacial”. Sua contribuição quanto às “regiões de influência”, de primeiro, segundo e terceiro níveis, lança importante luz sobre o assunto.

Siqueira e Maia informam o leitor mediante um histórico mais longo, considerando os períodos de crescimento de 1930-1970, o período de “dinâmica amplamente desfavorável ao mercado de trabalho” dos anos 1980-1990 e uma “certa recuperação industrial” no início do novo século. Apontam uma desconcentração da indústria, mas parecem corroborar as conclusões de Lobo e Matos, num outro recorte, o das desigualdades regionais: elas “permanecem inaceitáveis, tanto nas regiões ‘mais pobres’ como nas ‘mais ricas’”. Citando Cano, comentam das “causas estruturais regionais que perpetuam um quadro social com índices deploráveis de pobreza e de enfrentamento das estruturas (regionais) de dominação: renda, propriedade, controle político, acesso ao Estado, etc.”. Quiçá os recentes investimentos industriais, por exemplo, nos grandes empreendimentos do Nordeste (que estão fora do escopo temporal do texto) minimizem a perversidade.

Nos aspectos demográficos, há o trabalho de Douglas Sathler e Vitor Miranda, num marco espacial menor: a realidade paulista. Seu interesse reside no contraponto oferecido aos argumentos de concentração antes comentados. Para o âmbito paulista, os autores sugerem que, sim, houve significativo aumento da importância demográfica de cidades médias, e que a “Região Metropolitana de São Paulo vem repartindo o seu dinamismo econômico e populacional com o interior do estado”. Teria havido movimentos a contrariar “tendências históricas” e a “migração de retorno” chega a levar, para o interior, “problemas antes exclusivos da RMSP”. Como as análises anteriormente citadas centram o foco no emprego formal ou em produção industrial, é possível não haver contradição entre o presente texto e aqueles: as novas tendências aqui apontadas poderiam estar relacionadas a um crescimento demográfico com empregos em serviços e predominantemente informais – uma hipótese a ser verificada.

Por sua vez, Rosa Moura analisa o tema concentração/dispersão sob o olhar do impacto das novas tecnologias, particularmente as telecomunicações. Supostamente, como quer parte da literatura, elas estariam na base de um novo modelo aespacial de relações sociais, tornando irrelevantes as distâncias físicas, inclusive mediante o teletrabalho. Desde Castells (1999) banalizou-se a expressão “sociedade em rede” para descrever as novas interações humanas numa sociedade “pós-urbana”. O erro é duplo. Primeiro, a contemporaneidade não inventou a “sociedade em rede” – todas, em todos os tempos e espaços, sempre o foram. Apenas, eram mais limitadas, na medida dos recursos disponíveis, tecnológicos ou simbólicos (Hillier e Netto, 2001). A diferença, pois, é de quantidade, não de qualidade. Segundo, a suposta desimportância do lugar  tampouco ocorre, pelo contrário: a importância da identidade do lugar cresce porque ainda não inventaram uma maneira de enviar a Praia de Copacabana pela internet… William Mitchell o demonstrou num brilhante texto, The revenge of place [A vingança do lugar] (2001). Mediante extensa pesquisa empírica, Moura revelou, em contraste com certa tendência da literatura (inspirada por Castells?…), que as novas tecnologias não criam uma sociedade “pós-urbana”, “deslocalizada”, com ruptura das relações centro-periferia, etc. Ao contrário, os arranjos urbano- regionais no Brasil implicam uma contínua concentração (desigual) da atividade econômica, e a “proximidade espacial permite a articulação de estratégias de desenvolvimento entre os segmentos atuantes na produção do espaço”. Está se consolidando uma fase “pós-metropolitana”,mas não no sentido da decadência desses grandes aglomerados, porém no de sua transformação. Importante atributo dela é o fortalecimento de densos eixos de atividades, a usufruírem dos intensos fl uxos circulatórios, até certo ponto a “costurarem” a fragmentação e descontinuidade da mancha urbanizada. O fenômeno é muito claro, por exemplo, em Brasília, cidade fragmentada por excelência. Modelos morfológicos associados a modelos de transportes demonstram que os eixos fisicamente mais acessíveis à metrópole como um todo atraem os fluxos veiculares mais fortes, que por sua vez “puxam” atividades centrais para suas faixas lindeiras (Barros, 2006). Moura cita oportunamente as análises de François Ascher (2010) referidas à realidade francesa. Este último autor fala de um assentamento complexo e organicamente estruturado, onde podemos identificar quatro “cidades”: 1) as áreas centrais, habitadas por uma população cosmopolita de alta renda que consegue enfrentar o mercado imobiliário de altos valores; 2) uma população de rendas mais modestas, que foge dos altos preços centrais, mas ainda frequenta rotineiramente os equipamentos metropolitanos; 3) uma população multimotorizada que opta por pagar o preço de uma vida semirrural – os “rurbanos” – viajando grandes distâncias, servindo-se ainda, contudo, dos equipamentos centrais e 4) os moradores da “habitação social”, semiencerrados em seus bairros-gueto subequipados, pouco frequentadores do centro da cidade. Isto tende a ser, propõe Ascher, a realidade metropolitana hodierna – nova a ponto de merecer específica denominação: a metápole. Decerto as metápoles brasileiras não são como as francesas (e estes artigos ajudam a detectar sua identidade peculiar), mas Moura sugere que, também no Brasil, testemunhamos algo novo. E mostra, mais uma vez, que teoria não é como vinho – não é “de origem controlada”, com qualidade atestada pelo local de fabricação… Uma coisa é transpor interpretações empíricas concretas para realidades estranhas. Outra é inspirar-se em reflexões abstratas, e repensar nossa realidade empírica à luz delas. Como tantas ideias, dos quatro cantos do planeta, as de François Ascher são inspiradoras.

Luiz César de Queiroz Ribeiro e Marcelo Gomes Ribeiro exploram uma tipologia metropolitanabrasileira, ao estudar quinze unidades identificadas pelo Observatório das Metrópoles. Os tipos são construídos a partir do espectro das atividades econômicas, divididas em quatro grandes setores: indústria, serviços, construção civil e comércio. Detecta-se uma transformação no tempo, advinda da transferência de atividades antes alocadas como “indústria”, para “serviços”, porém serviços de tecnologia de ponta, ainda relacionados à produção material. A rigor, portanto, não há um decréscimo na produção de bens tradicionais e de bens duráveis, mas uma “mudança no padrão de produção industrial”. Mais importante, “as atividades ligadas às novas tecnologias (…) têm nas metrópoles o locus principal do seu desenvolvimento”.

A partir de análise fatorial e de análise de cluster, Ribeiro e Ribeiro classificam as metrópoles brasileiras em quatro grupos, diferençados por seu perfil econômico. O primeiro é de metrópoles de serviços, embora complementares à atividade produtiva, compreendendo Belém, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Recife e Rio de Janeiro. O segundo resume-se a Brasília e à Região Integrada do Entorno (RIDE), metrópole tipicamente terciária, mas agora de prestação de serviços às “empresas, famílias e finanças, aluguéis e agrícola”. A atividade do terceiro grupo são as commodities, o grupo formado por Salvador e Vitória. O quarto grupo relaciona-se às atividades industriais, “tanto relativas à produção de bens tradicionais e bens duráveis como referente à produção de bens difusores de progresso técnico”. Compreende Belo Horizonte, Campinas, Curitiba, Manaus, Porto Alegre e São Paulo. Mediante procedimentos diversos, os autores corroboram conclusões de outros estudos, ao verificarem que as metrópoles continuam exercendo centralidade na economia nacional: apesar de sua perda relativa na participação em ramos de atividades consolidados até os anos 1970, elas concentram (a aumentam) sua participação relativa às atividades decorrentes de progresso técnico. Vejamos agora estudos de caso de metrópoles específicas. Maria da Penha Smarzaro Siqueira analisa Vitória e as relações da cidade com o porto (lembremos que o estudo de Ribeiro e Ribeiro a qualifica essencialmente como metrópole exportadora de commodities, junto com Salvador). Mostra como, na esteira das reformas urbanísticas higienistas do início do século XX, que de uma maneira ou de outra mudaram a face de inúmeras capitais brasileiras (no caso de Vitória isso se deu em 1920), as obras que visaram “garantir a salubridade da região que permeava os portos” mudaram a fisionomia da cidade, “marcando a grande e longa parceria entre a cidade e seu porto”. Estudos morfológicos futuros, por exemplo, utilizando técnicas da Teoria da Sintaxe Espacial (Medeiros, 2006; Holanda, 2010), poderão lançar mais luz sobre o interessante processo, ao considerar o impacto de tais obras na malha viária da cidade, e como elas mudam a estrutura das acessibilidades urbanas.

Letícia Peret Antunes Hardt, Carlos Hardt e Marlos Hardt estudam Curitiba. Suas conclusõestambém ratificam conclusões anteriores sobre o processo da crescente importância demográfica e econômica das metrópoles brasileiras, apesar de uma certa “concentração decentrada” vis-à-vis o núcleo central: no Paraná, dos dezoito municípios com taxa estimada de crescimento superior a 3% ao ano para a primeira década do século XXI, dez encontram-se na região metropolitana de Curitiba”. Isso implica igualmente uma “exportação” para estes municípios dos graves problemas sociais do núcleo central.

A seguir mudamos novamente a escala. Os estudos analisam a realidade “perimetropolitana”– áreas de expansão urbana, pequenos municípios, “cidades-dormitório”, etc. Eles funcionamcomo bom contraponto aos estudos metropolitanos propriamente ditos – um “outro lado damoeda” que ajuda a compreender melhor a própria metrópole. Jorge Gonçalves revisita o planejamento territorial, particularmente o local, no contexto da globalização, para o caso dos municípios portugueses. Mostra como o processo tornou-se mais complexo, com a “multiplicação dos atores presentes”: “o tempo da Câmara Municipal, enquanto agente único, acabou”. Mas sua visão não é pessimista: “existiu um amadurecimento generalizado no domínio do desenvolvimento, estimulado pelas obrigações resultantes da integração do país na União Europeia e noutras esferas supranacionais”. O processo de integração à economia global, quase escusado dizer, é pois contraditório: mesmo uma visão empírica de quem visita Portugal periodicamente permite identificar as profundas modificações pelas quais o país passou, modificações que reverberam até nas menores e mais “locais” localidades.

As “cidades-dormitório” no Brasil são tema de Ricardo Ojima, Eduardo Marandola Jr., Rafael Henrique Moraes Pereira e Robson Bonifácio da Silva. O estudo insurge-se contra o “estigma”em torno desse tipo de núcleo no Brasil, que ficou associado, nos estudos urbanos brasileiros,sobretudo nos anos 1970, a processos de marginalização e periferização da pobreza. A realidade hoje, mostram os autores, é bem diferente: “todos os estratos sociais aprenderam a lidar com a distância e com a possibilidade de fugir da cidade”. Resulta uma realidade multifacetada, policêntrica, como a apontada por Ascher e corroborada por vários outros estudiosos (Bertaud, 2003), em que, frequentemente, ao contrário do que reza a literatura, os “rurbanos” são um contingente de renda elevada que optam por pagar os altos custos de uma intensa motorização (vários veículos por família) e de deslocamento rotineiro, dado o tecido rarefeito das regiões que habitam (nelas, é impossível implantarem-se sistemas eficientes de transporte público). No Brasil não é diferente, e Brasília, como uma das cidades mais dispersas do mundo, talvez seja exemplo emblemático (Ribeiro e Holanda, 2006; Ribeiro, 2008).

Paula Freire Santoro, Patrícia Lemos Cobra e Nabil Bonduki estudam o espraiamento das cidades brasileiras, particularmente a partir dos anos 1980, e as implicações das transformações correlatas de mudança de solo rural para urbano. Ilustram, mediante o exemplo de empreendimentos em São Carlos, como instrumentos como a Outorga Onerosa de Alteração de Uso pode ser utilizada, primeiro, para melhorar controlar os processos de expansão urbana, segundo para captar recursos que possam ser utilizados em programas de urbanização ou habitação de interesse social.

Preocupam-se também com mudanças do Brasil rural para o Brasil urbano, estudando espaçosnão metropolitanos, Renato Pequeno e Denise Elias. Debruçam-se sobre o caso de Mossoró (RN), onde a utilização dos novos instrumentos de desenvolvimento urbanístico previstos no Estatuto da Cidade não revertem na estruturação de uma cidade mais democrática. Pelo contrário, a edificação compulsória (que se limita a áreas sem importância) ou a delimitação de ZEIS (que se limita a zonas periféricas) apenas reforçam e reproduzem uma organização espacial segregacionista. Aqui, como em São Carlos ou em qualquer lugar, são as correlações de força que definem se os instrumentos formais de controle da urbanização disponíveis (como o Estatuto da Cidade) resultam (ou não) em letra morta.

Enfim, o conjunto de artigos compreende um rico panorama da questão metropolitana brasileira e de (alguns) espaços que lhe são periféricos. Este volume não é para ser lido, é para ser cuidadosamente estudado. Ilumina a compreensão de um dos fenômenos socioespaciais mais importantes da atualidade – algo de cuja natureza multifacetada só recentemente estamos nos dando conta. Algo, talvez, que conduza, mais cedo do que pensamos, e de forma mais generalizada, a novas configurações. Em outras palavras: das metrópoles de ontem às metápoles de amanhã.

Frederico de Holanda

UnB, Brasília