A metrópole brasileira na transição urbana (1980-2010): mudanças e continuidades
Quais as principais transformações urbanas ocorridas entre 1980 e 2010 nas metrópoles brasileiras? Esse é o ponto de partida do estudo comparativo que o Observatório das Metrópoles produzirá em 2013 sobre as 15 principais regiões metropolitanas do país, relacionando as mudanças econômicas, sociais e políticas às dinâmicas urbanas nacionais, regionais e locais. Vinculado ao Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT), o projeto tem como objetivo oferecer uma análise mais completa sobre a evolução urbana brasileira, servindo assim de subsídio para a elaboração de políticas públicas nas grandes cidades e para o debate sobre o papel metropolitano no desenvolvimento nacional.
O projeto de análise comparativa das metrópoles brasileiras (1980-2010) representa a última etapa do Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) para o Observatório das Metrópoles. “O nosso instituto vem acumulando expertise sobre a temática metropolitana há mais de 15 anos, a partir da consolidação de um trabalho em rede multidisciplinar, de produção de conhecimento científico, de metodologias e ferramentas para a pesquisa da questão metropolitana. Há quatro anos passamos a fazer parte do Programa INCT, integrando o conjunto de 123 centros de excelência em pesquisa do país. Agora estamos diante do nosso maior desafio: incorporar os dados do Censo 2010 relacionados às transformações ocorridas nas principais metrópoles na última década, e oferecer à sociedade brasileira a análise mais completa sobre a evolução urbana nos últimas 30 anos”, explica o coordenador nacional do instituto, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro.
Mas quais os desafios para a produção de uma análise comparativa das metrópoles no Brasil? O primeiro deles refere-se à compatibilidade dos Censos 2000-2010, tanto no que diz respeito às Categorias Sócio-Ocupacionais quanto às bases geográficas. O segundo diz respeito às transformações do modelo de desenvolvimento nacional e como a sua interpretação influi na análise sobre as metrópoles. O Observatório das Metrópoles tem preparado sua equipe de pesquisadores para a solução dos problemas tanto de ordem teórica quanto metodológica.
Desafio teórico: mudanças na ordem urbana brasileira?
Desde o começo da sua trajetória o Observatório das Metrópoles tem analisado as transformações urbanas das metrópoles a partir da ótica da mudança social. A análise, por exemplo, da década de 1980 se baseou na bibliografia internacional que defendia as transformações urbanas sob o duplo impacto da globalização econômica e da reestruturação produtiva, sendo que na sociedade brasileira prevalecia o modelo de desenvolvimento por substituição de importações. Para o decênio 1990/2000, o instituto já desenvolveu suas análises sob o prisma das mudanças urbanas decorrentes de um ajuste defensivo (nos planos do mercado e do Estado) decorrente da política de abertura da economia brasileira à competição internacional e das transformações liberais no papel do Estado.
Mas como analisar o período 2000/2010? O que diz a literatura especializada sobre esse período no Brasil? Como interpretar as mudanças econômicas (mercado de trabalho e estrutura produtiva); sócio-espaciais (segregação, desigualdades e sociabilidade) e institucionais (padrão de governança das metrópoles) desse período? No que diz respeito a esse desafio, o Observatório das Metrópoles realizou, em setembro de 2012, o Seminário “Território, Coesão Social e Governança Democrática”, no qual debateu duas hipóteses de interpretação para a mudança urbana no período 2000/2010. O objetivo: ajudar na construção coletiva de uma compreensão compartilhada da Rede e preparar os núcleos regionais para a produção da análise comparativa (1980-2010).
A seguir as duas hipóteses interpretativas para o período.
Neodesenvolvimentismo
O neodesenvolvimentismo se caracteriza pela postulação da existência de significativa inflexão da rota neoliberalizante que orientou a política econômica nos anos 1990, sendo que a partir de 2003 rompe com o ciclo de acumulação fundado na financeirização da riqueza. Os dois governos Lula expressariam a constituição de uma nova correlação de forças políticas capaz de sustentar um novo ciclo desenvolvimentista, expresso nos avanços da economia fundada pelo dinamismo do seu mercado interno, por expansão do emprego formal, distribuição da renda, pela constituição de uma ampla política de proteção social e pela retomada do papel planejador e regulador do Estado.
Tal análise foi postulada, por exemplo, pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos que em janeiro de 2011 publicou na revista Carta Capital um longo texto comparando políticas públicas do Governo Lula com o de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso. Wanderley Guilherme dos Santos apresenta uma avalanche de indicadores positivos obtidos durante o governo Lula. O cientista político defende a ideia do nascimento de um “Novo Brasil” entre os anos de 2003 e 2011: crescimento econômico, inflação sob controle, expansão do emprego e redução das desigualdades sociais. Em sua conclusão, Wanderley Guilherme dos Santos procurou negar as afirmativas segundo as quais a popularidade de Lula tivesse sido obra do marketing, mas resultado de ações do governo cujo balanço contraria as visões das elites tradicionais e conservadores.
Para Wanderley Guilherme dos Santos, portando, um sistema de valores e de práticas de perfil tradicionalmente elitista deu lugar a uma orientação de governo comprometido com a promoção econômica, social e cultural da vasta maioria de trabalhadores brasileiros, em particular de suas camadas mais pobres. E com isso, houve uma redução na intensidade dos conflitos que as elites conservadoras sempre empurraram para frente. O absoluto respeito por parte do Executivo às regras do jogo e às demais instituições do País, como judiciárias, legislativas e estaduais, é, na opinião dele, um dos aspectos incluídos no reconhecimento que a população dispensou ao governo.
Neoliberalismo Periférico
Em contraposição, um grupo de economistas tem buscado demonstrar a continuidade da lógica econômica fundada na financeirização da economia. Em vários textos os integrantes do grupo buscam gerar evidências empíricas e construir argumentos que permitem identificar a existência de uma linha de continuidade entre os governos de FHC e de Lula, expressa pela manutenção do modelo econômico “intrinsecamente instável e gerador de vulnerabilidade externa estrutural”.
Entretanto, observam que a conjuntura internacional favoreceu a flexibilização dos constrangimentos que subordinam histórica e estruturalmente a economia nacional à lógica da financeirização internacional, traduzida na política macroeconômica pela diminuição da taxa de juros, ampliação do crédito e a expansão dos gastos públicos em investimentos. No plano da proteção social, a flexibilização permitiu a ampliação da política de transferência de renda constituída no período do governo de Fernando Henrique Cardoso, considerada limitada pelos seus fundamentos focalizados, e a adoção de uma política de valorização real do salário-mínimo.
Um dos autores dessa vertente é o professor Luiz Filgueiras que afirma: “Os resultados mais importantes dessa flexibilização foram maiores taxas de crescimento da economia e redução das taxas de desemprego, com a ampliação do mercado interno, uma pequena melhora (na margem) da distribuição funcional da renda e, sobretudo, na distribuição pessoal (portanto, no interior dos rendimentos do trabalho). Adicionalmente, reduziram-se os níveis de pobreza considerados mais dramáticos – conforme definido por ‘linhas de pobreza’ subestimadas, próprias das políticas sociais focalizadas. Ao mesmo tempo, essa flexibilização da política macroeconômica está sendo acompanhada pela presença mais incisiva do Estado no processo econômico, através das empresas estatais – especialmente, a Petrobras e os bancos oficiais – e dos fundos de pensão comandados pela aristocracia sindical. Com isso, vem se alterando, aos poucos, o bloco de poder político dominante no país, alteração esta que é, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma nova acomodação e, sobretudo, fortalecimento do modelo econômico vigente. À hegemonia financeiro-exportadora (bancos e agronegócio) que comanda a economia brasileira, vieram se juntar segmentos nacionais do grande capital, articulados por dentro do Estado”. (Filgueiras, L; Pinheiro, B, et alii: 2010:37-38)
Como a cidade participa deste novo ciclo de expansão capitalista?
A hipótese básica levantada pelo Observatório das Metrópoles é a de que o Brasil está diante de um momento de transição histórica em vários planos da sociedade brasileira, cujo desenrolar enquanto trajetória dependerá fortemente da dinâmica política. Se é um momento de disputa de projetos históricos na sociedade brasileira valeria à pena pensar as mudanças nas metrópoles não apenas como resultante de dinâmicas contraditórias, mas como possível variável independente capaz de influenciar tal trajetória? Pensar nesta direção justifica-se em razão do papel que a cidade assumiu na consolidação do tripé capital internacional/Estado/capital nacional, agora sob a hegemonia do capital financeiro (internacional e nacional) e de sua lógica, com o reforço e internacionalização de grandes grupos econômicos nacionais.
A partir dessa ótica, como entender a mudança ou não do papel do urbano nesta nova etapa de expansão do capitalismo brasileiro? “Acreditamos que neste novo ciclo de desenvolvimento capitalista o urbano continua tendo este papel de suporte da aliança de classes, mas ao mesmo tempo a presença dos novos interesses financeiros na coalizão coloca a necessidade de um padrão de gestão do território urbano, no qual a propriedade privada e, consequente, o mercado autorregulado devem ser os únicos mecanismos de acesso ao solo urbano”, explica Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro.
Dessa forma, o que se vê é a cidade tornando-se objeto de um novo padrão de gestão, cuja marca principal seria o “desembebimento” das relações mercantis de uso e ocupação do solo, de produção da moradia, de provisão de serviços, das convenções sociais (propriedade privada ad hoc, com jurisdição e instituições próprias), políticas (clientelismo) e culturais (modelos ideológicos e cognitivos de representação social da questão urbana e da política urbana, como a transformação da favela como direito em negócio) que limitam o pleno funcionamento do mercado autorregulado.
Tomando por base as ideias de David Harvey, pode-se dizer que está em curso nas cidades brasileiras no longo período 1980/2010 a disputa por um novo marco regulatório na direção da sua plena mercantilização, como base da constituição de uma nova coerência estruturada que crie as condições da plena circulação do capital.
Projeto de análise comparativa (1980-2010)
A partir dessa reflexão teórica, o Observatório produzirá uma série de livros referentes as 15 principais regiões metropolitanas do Brasil, contendo a descrição das mudanças ocorridas nesses territórios urbanos no período que vai de 1980/2010 a partir de temas como:
– A Metrópole na rede urbana brasileira e configuração interna;
– A Metrópole na transição econômica: estrutura produtiva e mercado de trabalho;
– Organização social do território: dinâmicas demográficas, família e mobilidade espacial;
– Organização social do território e formas de provisão de moradia;
– Organização social do território e desigualdades sociais: oportunidades (mercado de trabalho e educação) e bem-estar-urbano
– Organização social do território e mobilidade urbana
– Governança urbana, política pública e gestão metropolitana: padrões, efeitos e desafios.
Segundo a coordenação do instituto, serão realizadas, neste começo de 2013, oficinas regionais para preparar as equipes para a produção das análises, além de aprofundar o debate sobre como e o que comparar. O objetivo final da série de livros é recompor a análise de conjunto, integrando todos os projetos do Observatório entre si e com as linhas de pesquisa. Como também reconstruir o enfoque integrado: território e economia, território e sociedade e território e política.
Última modificação em 30-01-2013 20:52:17