Na Sombra dos Megaeventos: exceção e apropriação privada
Excesso de gasto público e criação de leis de exceção para atender demandas da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Esses são os principais temas analisados pelas organizações Justiça Global e Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs), em parceria com pesquisadores de universidades brasileiras e da Articulação Nacional dos Comitês Populares, em dois artigos produzidos com o apoio da Fundação Heinrich Böll. Os textos estão sendo lançados a exatos dois anos do início da Copa do Mundo no país.
Os artigos “Legislação de exceção no contexto dos Megaeventos esportivos no Brasil” e “Copa 2014: Recursos públicos, apropriação privada” são resultados de um esforço em discutir o tema dos megaeventos no Brasil, deixando de lado a euforia festiva que se instaurou após a escolha do país para sediar a Copa do Mundo de 2014 e o Rio de Janeiro como cidade-sede das Olimpíadas de 2016. A propaganda pública e privada, movimentada pelos atores envolvidos na realização destes acontecimentos, tenta vender uma imagem de consenso social absoluto. Ao colocar a Copa e as Olimpíadas como uma oportunidade única de progresso e crescimento, um outro lado acaba ofuscado. Uma chance única a qual todos os brasileiros e brasileiras deveriam se agarrar em prol do bem coletivo. Pode até ser que haja alguns percalços, mas o legado dos megaeventos será de maior prosperidade para todos. Será mesmo?
O que não aparece na maior parte dos meios de comunicação e na fala do governo são as inúmeras denúncias de violações de direitos que vêm se acumulando. Gastos públicos excessivos, endividamento, sérios impactos sociais e ambientais, retrocessos legislativos e falta de transparência generalizada são alguns dos exemplos de arbitrariedades cometidas em nome dos megaeventos e exploradas nestes dois artigos. Apesar da falta de atenção inicial a esta temática, o volume de denúncias e a organização de setores da sociedade civil em torno do tema conseguiu levar a discussão a uma esfera mais ampla de debates.
Assim, se por um lado os megaeventos se insinuam como uma “oportunidade” de agravamento da exclusão social, segregação espacial, militarização e mercantilização do espaço público e apropriação privada de recursos públicos, por outro a resistência coletiva, principalmente daqueles que sofrem estas violações, logrou alguns êxitos, ainda que tímidos, como a constituição de uma plataforma nacional de comitês populares para a Copa e Olimpíadas.
Como linha geral, verifica-se uma aliança entre o poder público e alguns setores da iniciativa privada nacional e internacional no sentido de assegurar que Copa e Olimpíadas sejam fontes de lucros exorbitantes, com o mínimo risco possível e transformação do máximo de gastos e ônus em externalidades. A previsão de que 98,6% do dinheiro gasto para a realização da Copa do Mundo seja proveniente do poder público é uma prova clara desta afirmativa.
Sobre o tema dos gastos públicos, o artigo “Copa 2014: Recursos Públicos, Apropriação Privada: Financiamento para Copa do Mundo 2014” mostra como, além das discrepâncias entre gastos públicos e gastos privados, o volume de investimento não é conhecido nem mesmo pelo próprio Estado Brasileiro. A inexistência de uma base de dados unificada de gastos, a concessão de inúmeras isenções fiscais (ponto presente na Garantia nº 3 do documento ‘Garantias Governamentais’, enviado já em 2007 pelo governo brasileiro à FIFA prevendo isenção até mesmo para torcedores estrangeiros) e estimativas iniciais de gastos que se mostram muito baixas (de R$ 2,1 bilhões pela CBF em 2007 para R$ 7 bilhões pelo TCU em 2012, apenas em relação aos gastos com estádios para a Copa) são alguns dos fatores que inviabilizam a mensuração dos gastos com os megaeventos.
A criação de novas leis é outro ponto preocupante e que articula as diversas violações de direitos que vem ocorrendo e que ameaçam se perpetuar. O estabelecimento do Regime Diferenciado de Contratações – que viola o anterior procedimento legalmente previsto para licitações ao possibilitar, dentre outros absurdos, o sigilo parcial – é um dos casos analisados nos textos aqui apresentados, que mostra o grau de preocupação que devemos ter com o controle dos gastos públicos, assim como a dificuldade que a sociedade civil enfrentará nesta tentativa. O Regime Diferenciado de Contratações é apenas uma dentre uma longa série de leis produzidas no contexto de preparação e realização dos megaeventos, e que devem ser entendidas como exemplos de legislação de exceção. O maior e mais famoso representante desta lógica é o Projeto de Lei nº 2.330 de 2011, conhecido como Lei Geral da Copa, cuja análise mais detida se encontra no artigo “Legislação de Exceção no Contexto dos Megaeventos Esportivos no Brasil”.
Este projeto vem sendo alvo de pesadas críticas por parte dos movimentos sociais, mas a pressão das entidades internacionais e a postura adotada pelo Governo brasileiro levou à sua recente aprovação na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Dentre as diversas alterações no ordenamento jurídico brasileiro promovidas pela Lei Geral da Copa, podemos destacar a criação de um regime especial de registro de marcas e das chamadas ‘zonas de exclusão’ – um raio de dois quilômetros ao redor dos locais oficias de competição, onde qualquer atividade comercial não autorizada pela FIFA será proibida. Após a passagem pelo Câmara dos Deputados, se determinou que a lei não atinja os estabelecimentos comerciais pré-existentes.
Ambas as alterações se articulam com o tema da apropriação privada dos recursos públicos – presente também na discrepância entre o montante de gastos públicos e privados – na medida em que são apenas outros mecanismos de garantia de maximização dos lucros para o capital transnacional que capitaneia a realização destes megaeventos. Isso alcança estágios alarmantes com a previsão, na mesma lei, de que a responsabilidade por danos resultantes de acidentes de segurança seja assumida pela União; é o Estado tornando-se fiador da FIFA.
Entretanto, a face oculta dos megaeventos capaz de violar direitos se expressa em dois outros pontos: criação de novos tipos penais e remoções urbanas para as obras de adequação da cidade. Relativo ao primeiro tema, além da Lei Geral da Copa, temos o Projeto de Lei do Senado nº728 de 2011 – também conhecido como AI-5 da Copa, em referência ao Ato Institucional nº 5 que, durante a ditadura civil-militar brasileira, permitiu a tortura e execução dos membros da resistência.
Tomando ambos os projetos de lei, temos a proposta de criação de novos crimes que vão desde o terrorismo e dopping, a supostas formas de marketing abusivo. Neste último caso, a Lei Geral da Copa traz o delito de ‘marketing de emboscada por intrusão’ que prevê a detenção de até um ano daquele que, dentre outras condutas, exponha produtos não autorizados pela FIFA nos locais oficiais do evento. É a lógica do lucro promovendo a expansão irracional do sistema penal. No projeto do Senado, o crime de dopping nocivo permite que a FIFA determine quais as substâncias que devem ser consideradas entorpecentes, fazendo com que o Estado abra mão de determinar o conteúdo do delito. É o monopólio do uso da força penal do Estado atuando descaradamente a serviço de interesses privados.
A respeito do segundo ponto, o Projeto Porto Maravilha combina a falta de transparência dos gastos públicos com a tentativa de remoção de comunidades tradicionalmente estabelecidas e consolidadas. Com a proposta de promover a revitalização da área portuária do Rio de Janeiro, sob o argumento da urbanização, o projeto pretendia remover milhares de famílias do Morro da Providência, a favela mais antiga do Rio de Janeiro, com 110 anos de existência. A organização popular, principalmente através do Fórum Comunitário do Porto, conseguiu barrar parte de processo e os moradores atualmente resistem a novas investidas do poder público, aliado ao setor privado, de retirar esses moradores de suas casas.
O legado dos megaeventos não será a promoção da igualdade e garantia das liberdades se tivermos como parâmetro a postura que o poder público e o setor privado vêm, em conjunto, adotando ao impor à sociedade brasileira a lógica de subordinação ao capital transnacional, brevemente apresentada aqui e melhor exposta nos dois artigos a seguir. O resultado será a maior concentração do capital, o agravamento da segregação espacial e a promoção de violências reais e simbólicas, sobretudo contra as camadas sociais que já são o alvo preferencial deste poder punitivo e opressor.
Os megaeventos servem como ambiente perfeito para a criação de um espaço de exceção, nos quais as regras do Estado Democrático de Direito ficam suspensas alegadamente em prol do bem comum, porém, na prática, em defesa do capital privado. As entidades esportivas internacionais, as empreiteiras, as empresas de marketing esportivo, dentre outros representantes do setor privado, formam um contínuo com o poder público, ao menos sua parte capturada pelos interesses privados, valendo-se deste discurso da excepcionalidade para impor sua agenda sobre os direitos das pessoas. Um povo que gostaria de ter a Copa do Mundo e Olimpíada como momentos de alegria, acaba vendo nestes mais uma fonte de violações de direitos.
Esta, porém, não é uma luta perdida. A presença da publicação “Na Sombra dos megaeventos: exceção e apropriação privada” prova que há setores da comunidade nacional e internacional que estão atentos ao que está acontecendo no Brasil e que não estão calados diante do quadro que se desenha. Algumas das iniciativas de resistência e construção de uma outra realidade para os megaeventos foram citados aqui e outras são apresentadas nos dois textos que seguem. Apenas uma mobilização popular forte e permanente é capaz de segurar as investidas da apropriação privada daquilo que deverá ser uma vitória de todos, e garantir que o modelo de desenvolvimento adotado não seja erigido sobre os escombros daquilo que foi construído no comum.
Acesse os dois artigos do documento “Na Sombra dos Megaeventos: exceção e apropriação privada” aqui.