Após a tragédia no centro de São Paulo no começo de maio, com o desabamento de um prédio público ocupado por dezenas de famílias, surgiram vários discursos de criminalização das vítimas da tragédia e também dos movimentos sociais de luta por moradia. Para confrontar esse tipo de abordagem, Adauto Cardoso e Luciana Ximenes apresentam neste artigo um relato sobre a trajetória da ocupação Manuel Congo, localizada no centro do Rio de Janeiro, um exemplo de luta por moradia popular nas áreas centrais. Além disso, o texto traça um panorama das ocupações na capital fluminense e mostra que, apesar do êxito da Manuel Congo, o cenário é de recrudescimento, com remoções forçadas e aumento da vulnerabilidade no direito de morar.
A Rede INCT Observatório das Metrópoles apoia a luta dos movimentos de moradia, e entende que a imprensa tem feito, de um modo geral, uma abordagem simplista e tendenciosa das ocupações de prédios públicos no país, após a tragédia ocorrida no dia 1º de maio em São Paulo.
Para confrontar a enxurrada de discursos muitas vezes rasos sobre os processos de ocupação, a nossa rede tem divulgado análises a fim de trazer informações mais cuidadosas sobre os movimentos e ocupações, relatos que consigam mostrar os fundamentos das lutas e os vários tipos de organizações envolvidas.
O artigo “Manuel Congo, movimentos sociais e a luta pelo direito à moradia no Rio de Janeiro” é uma contribuição do profº Adauto Lúcio Cardoso e da pesquisadora Luciana Ximenes para o debate.
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MANUEL CONGO, MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA PELO DIREITO À MORADIA NO RIO DE JANEIRO
Por Adauto Cardoso¹ e Luciana Ximenes²
A tragédia ocorrida no largo do Paissandu, centro de São Paulo, com o incêndio e o desabamento de um prédio público ocupado por dezenas de famílias, trouxe a questão da moradia de volta para o centro do debate público. Imediatamente começaram a aparecer discursos de criminalização das vítimas da tragédia e também dos movimentos sociais de luta por moradia que apoiam e promovem ocupações de prédios vazios, partindo de uma abordagem simplista e tendenciosa. Esses argumentos deixam de lado questões essenciais ao debate e que têm formado barreiras intransponíveis para a garantia do direito à moradia em nossas cidades, como a insuficiente e inadequada política pública de provisão habitacional, o elevado valor dos aluguéis nas áreas centrais de São Paulo e da maioria das cidades brasileiras, os baixos salários e a crescente taxa de desemprego.
Questões que são estruturais, mas que têm se aprofundado na crise recente. Neste quadro, torna-se essencial destacar a condição das ocupações urbanas de prédios vazios como uma luta constante, marcada por diversos momentos de tensão, tendo em vista o risco eminente de despejos forçados e violentos; a precariedade das condições de vida nessas ocupações e a enorme energia e disciplina necessárias para levar adiante esse projeto em condições adequadas; assim como os casos em que estas ocupações foram apoiadas por políticas públicas que possibilitaram a requalificação de seus espaços, como o caso emblemático da Ocupação Manuel Congo, no centro do Rio de Janeiro.
Buscando uma forma de sobrevivência alternativa aos pernoites nas calçadas e ruas, muitas famílias têm ocupado antigos prédios vazios. No Rio de Janeiro, centenas de famílias têm se articulado em movimentos sociais que têm feito das ocupações não só uma solução à demanda urgente por moradia, mas também como forma de luta social, formação política e denúncia do enorme problema da falta de moradia popular em contraste com o extenso estoque de prédios vazios em áreas centrais, bem servidas de infraestrutura e com localização estratégica para a mobilidade.
A Ocupação Manuel Congo teve seu início em outubro de 2007, em um antigo prédio do INSS na região da Cinelândia, ao lado da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, erguido na década de 1940 e sem uso a mais de 10 anos. Esta localização estratégica da Ocupação possibilita tanto a inserção das suas famílias numa área central da cidade, amplamente servida por equipamentos públicos e transporte urbano, como o cumprimento do seu papel político de chamar atenção para a questão da moradia.
Este mesmo coletivo de famílias, antes de chegar ao prédio que hoje ocupa na Rua Alcindo Guanabara, ocupou por alguns dias o antigo Cine Vitória, também localizado na região da Cinelândia.
Esta ocupação do antigo cinema ganhou força simbólica por ter ocorrido no dia Internacional de Luta pelo Habitat e na Semana Nacional de Luta pela Reforma Urbana. Antes do despejo, que viria com um pedido de reintegração de posse do proprietário do imóvel, o prédio foi aberto para a exibição do documentário “Encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de cá”, com a presença do diretor Silvio Tendler. Esta primeira experiência fortaleceu este grupo de famílias e abriu um caminho de diálogo com alguns gestores públicos que viriam a se tornar importantes apoiadores na luta do movimento.
A ocupação do antigo prédio do INSS ocorreu enquanto realizava-se no Rio de Janeiro a Conferência Nacional das Cidades, com a presença do então Presidente Lula, que manifestou-se formalmente contra o despejo de famílias ocupantes de prédios públicos e em especial dos imóveis federais. Tomando a ocupação como um fato político importante para o debate que se travava na Conferência, os movimentos sociais fizeram importantes articulações com os gestores públicos presentes, que se revelaram essenciais para a permanência das famílias no imóvel reduzindo a ameaça de remoção violenta.
Ao longo de sua trajetória, a Ocupação Manuel Congo buscou diversas formas de financiamento público para a obra de reforma do prédio, que deveria ser feita através do modelo de autogestão, que passaria pela obtenção da segurança de posse e pela necessária reforma do prédio ocupado. Superando diversas barreiras, a Ocupação conseguiu elaborar seu projeto completo de reforma acessando recursos do FNHIS. Este mesmo Fundo possibilitou que o Governo do Estado do Rio de Janeiro comprasse o imóvel do Governo Federal, com o compromisso de ser formalizada a Concessão de Direito Real de Uso aos moradores da Ocupação, após a conclusão das obras de requalificação.
A obra, custeada com recursos federais pelo FNHIS, teve início em 2013, porém foi interrompida por um entrave burocrático que forçou a “migração” dos contratos para o Programa Minha Casa Minha Vida na sua linha Entidades. A “migração” do SNHIS para o PMCMV já havia sido contestada pelo movimento anteriormente, por entender que a permanência no SNHIS era parte uma luta política mais ampla. Entretanto, a entrada no PMCMV consolidava-se como o único caminho para a continuidade das obras com financiamento público.
Superando entraves diversos, a Ocupação Manuel Congo resiste até hoje. A obra readequou os andares do antigo prédio para o uso habitacional, com apartamentos que variam de acordo com a demanda de cada família. Os andares inferiores foram destinados pela Ocupação para espaços coletivos, como a cozinha da cooperativa Liga Urbana, o auditório Miguel Lanzellotti Baldez e a Casa de Samba Mariana Crioula, localizada no térreo do edifício. Esse projeto revela de forma inequívoca a potencialidade da ação do movimento de moradia na luta para que os imóveis abandonados nas áreas centrais cumpram a sua função social, como determina a Constituição Federal.
Os resultados positivos alcançados pela Manuel Congo, no entanto, não podem esconder a longa e difícil luta das Ocupações por reconhecimento público e pela realização do Direito à Moradia. No período recente, a Ocupação Chiquinha Gonzaga foi a primeira ocupação realizada na área central da cidade do Rio de Janeiro por articulação de movimentos sociais. A organização dessas famílias começou em 2003, com diversas reuniões preparatórias. O nome da ocupação foi escolhido em homenagem à Chiquinha Gonzaga, considerada forte referência da luta das mulheres e de grande destaque no movimento abolicionista no Brasil. Em 2004, no dia do aniversário de 11 anos da Chacina da Candelária, o grupo com cerca de 40 famílias ocupou um antigo prédio do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), sem uso há mais de 20 anos, dando origem à ocupação Chiquinha Gonzaga.
No ano seguinte surge uma nova ocupação, a Zumbi dos Palmares. Formada por um coletivo de mais de 120 famílias, a ocupação se deu em um antigo hospital próximo à Praça Mauá, de propriedade do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) construído sobre terreno da União e sem uso a mais de 10 anos.
No período que segue, passa a ser articulado o grupo da terceira ocupação mobilizada por movimentos de moradia na antiga região portuária, que viria a se chamar Quilombo das Guerreiras. Após uma longa peregrinação, marcada por ocupações e despejos de alguns prédios, somente em uma terceira tentativa o grupo obteve sucesso, ocupando um prédio vazio da Companhia DOCAS do Rio de Janeiro próximo ao Terminal Rodoviário Novo Rio. A ocupação foi realizada em outubro de 2006 e teve seu nome, Quilombo das Guerreiras, escolhido como uma homenagem às lutas populares.
Chiquinha Gonzaga, Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras foram as primeiras ocupações de sem-teto na região central do Rio de Janeiro articuladas por movimentos sociais, com projetos políticos, e que até hoje mantêm-se como referencias importantes desta luta. Após estas primeiras experiências sucederam-se diversas ocupações semelhantes, dentre as quais é possível listar: Ocupação Flor do Asfalto (2006), Ocupação Carlos Marighela (2007), Ocupação Nelson Mandela (2007), Ocupação Manuel Congo (2007), Ocupação Alípio de Freitas, Ocupação José Oiticica, Ocupação Machado de Assis (2008).
Como parte da luta, além de conviver anos com condições precárias de moradia dada a situação física dos prédios ocupados, grande parte das ocupações na área central e na zona portuária do Rio de Janeiro também sofreram com despejos forçados e violações de direitos fundamentais. Legitimados pela implementação da Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha e pelas obras na cidade para a realização de megaeventos esportivos (especialmente Copa do Mundo de Futebol em 2014 e Jogos Olímpicos em 2016), foram removidas diversas ocupações, dentre as quais podemos listar aqui Ocupação Casarão Azul, Ocupação Zumbi dos Palmares, Ocupação Carlos Marighela, Ocupação Quilombo das Guerreiras e Ocupação Machado de Assis.
Nestes despejos foram recorrentemente desconsiderados os vínculos dos moradores com o território que ocupavam (como o local de trabalho, de estudo, de atendimento médico, dentre tantos outros vínculos) e as redes sociais por ele construídas. Quando por vezes foi ofertado às famílias a possibilidade de reassentamento em novos espaços habitacionais, estes foram distantes da área central da cidade e desconsideraram os coletivos dos quais as famílias faziam parte.
Por exemplo, as ocupações da Rua do Livramento, despejadas em 2010, e os moradores da ocupação Marchado de Assis, despejados em 2012, tiveram como alternativa de reassentamento apresentada pela Prefeitura um conjunto habitacional do programa Minha Casa, Minha Vida em Senador Camará, bairro a cerca de 45km de distância do centro da cidade. Já aos moradores da ocupação Carlos Marighela, despejados em 2011, foi oferecido o acolhimento em abrigos localizados na Ilha do Governador ou em Paciência, ambos também distantes do antigo local de moradia e ainda em condição provisória, sem perspectiva de inclusão em políticas habitacionais.
Por vezes outras opções foram ofertadas como a indenização com base nas benfeitorias feitas aos imóveis ocupados (de modo geral referentes o custo com material para obras e reformas), a compra assistida e o auxílio aluguel (comumente chamado de “aluguel social”), sendo este último o procedimento mais comum nesta onda de remoções em curso. Aos moradores da ocupação Machado de Assis que não aceitaram a mudança para o bairro de Senador Camará, restaram as opções de receber a indenização em dinheiro, com valores que variavam de cinco a vinte mil reais, ou o auxílio aluguel no valor de 400 reais por um período determinado.
Dentre as ocupações que resistem na região central, algumas articulam-se em prol de projetos habitacionais que buscam garantir o direito à moradia aos seus membros. Adotando a estratégia de desenvolver projetos habitacionais a partir da autogestão, estes grupos buscam a participação de forma ativa nas principais etapas deste processo como projeto arquitetônico, trâmites burocráticos, obra e gestão do prédio. Para além da requalificação dos espaços ocupados, os grupos têm em perspectiva ainda a formação profissional de seus membros e a organização em torno de cooperativas profissionais.
Como forma de alcançar financiamento de políticas públicas para seus projetos, alguns destes grupos buscaram sua inserção na linha Entidades do Programa Minha Casa Minha Vida, direcionada para que grupos populares pudessem acessar financiamento para a produção de moradias por autogestão. A Ocupação Manuel Congo, do Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), foi uma das contempladas pelo edital desta linha de financiamento, estando hoje com obra de reforma em fase de finalização.
O caminho percorrido pelas famílias da Ocupação Manuel Congo, articuladas em torno do MNLM, pode ser entendido como uma demonstração da intensa luta por moradia nas nossas cidades. Esta ocupação demonstra-nos um caminho possível para a oferta de moradias populares em áreas centrais, destacando o papel central do estado, fazendo valer a exigência do cumprimento da função social de antigos prédios vazios e mostrando o potencial das mobilizações populares. Infelizmente, a Ocupação Manuel Congo tem se tornado cada vez mais uma exceção diante da forte onda de remoções forçadas que não garantiu aos antigos moradores da região central a sua reinserção em condições adequadas de moradia e da regressão nos níveis de investimento público para habitação de interesse social nos últimos anos. Projetos como os das ocupações Mariana Crioula e do grupo do Quilombo da Gamboa trilharam caminhos semelhantes aos da Manuel Congo, mas nestes casos as barreiras parecem ter sido construídas com mais solidez, deixando dezenas de famílias em situação de extrema vulnerabilidade pela precariedade da moradia.
O cenário atual nos aponta para a urgente necessidade de avançarmos no debate sobre esta grande população urbana sem acesso à moradia adequada e que, de um jeito ou de outro, precisa morar. Não cabem soluções paliativas que tenham como objetivo omitir esta enorme demanda, como a expulsão de pessoas em situação de rua das praças e calçadas ou os despejos forçados com uso da força policial, violando direitos humanos resguardados por nossos marcos normativos em vigor.
Faz-se necessário partir da recente tragédia no centro de São Paulo no sentido de encarar os reais problemas do déficit habitacional, avançar na democratização do acesso à terra, reconhecer a luta daqueles que a décadas vêm construindo projetos e possibilidades de moradia para as classes populares, fazendo da Ocupação Manuel Congo um exemplo positivo que se amplie e não apenas um “caso de sucesso” isolado, desconsiderando a luta política que ela carrega como objetivo central.
¹Adauto Cardoso é professor associado do Insituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Observatório das Metrópoles. Lattes.
²Luciana Ximenes é Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ). E integra o grupo de pesquisa do subprojeto da Linha II “Direito à Cidade e Habitação”, Projeto INCT AS METRÓPOLES E O DIREITO À CIDADE: conhecimento, inovação e ação para o desenvolvimento urbano. Lattes
REFERÊNCIAS
XIMENES, Luciana. Ocupações na zona portuária do Rio de Janeiro: soluções de moradia e ações de resistência. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: https://issuu.com/luciana.ufc/docs/mono_ppcis_uerj_-_luciana_ximenes