Crédito: Jornalismo B/Reprodução
A análise do espaço urbano através da complexidade dinâmica que compõe a conflitualidade nos fornece outro retrato das cidades. Este é o foco deste artigo que analisa as lutas por regularização fundiária e produção habitacional em Curitiba. Tendo como pano de fundo o programa MCMV, o estudo aponta que apesar do volume significativo de recursos para a habitação, os conflitos aumentaram, expressando a inadequação das ações públicas.
O artigo “Protestos por Moradia e Política de Habitação em Curitiba: lutas por regularização fundiária e produção habitacional” foi apresentado no XVII ENANPUR, na Sessão Temática “Luta por moradia, ocupações e insurgências urbanas”. O estudo é assinado por José Ricardo Vargas de Faria, Ana Cláudia Stargarlin Fróes, Mayara Vieira de Souza e Simone Aparecida Polli — esta integrante do Núcleo Curitiba da Rede INCT Observatório das Metrópoles.
O artigo analisa as manifestações coletivas por moradia que se organizaram para reivindicar ações do poder público ou se contrapor a ações ou decisões tomadas no âmbito das políticas públicas de habitação. Ao mesmo tempo, destaca as contradições da política habitacional brasileira a partir da compreensão das causas dos conflitos e protestos, indicando que o discurso relativo à garantia do direito à cidade colidiu com os interesses mercantis da produção habitacional, resultando no baixo atendimento da demanda por moradia da população de 0 a 3 SM.
De acordo com os autores, apesar do volume significativo de recursos destinados à habitação, os conflitos não arrefeceram e sim aumentaram, concentrando-se principalmente em reivindicações relativas à produção habitacional e à regularização fundiária. Os protestos são a expressão periférica deste não atendimento aliado à inadequação das ações públicas.
ABSTRACT
The analysis of the urban space through the dynamic complexity that composes the conflict gives us another portrait of the cities. Besides the opportunity to understand the interests in dispute, the analysis of conflicts makes it possible to observe forms of organization and social mobilization, the political and social actors involved, the types of collective action undertaken and the social demands of urban populations. This article analyzes the collective manifestations demanding for housing that claim actions of the public power or to oppose to actions or decisions taken in the scope of the public policies of housing. At the same time, it highlights the contradictions of the Brazilian housing policy based on the understanding of the causes of the conflicts and protests, indicating that the discourse related to the guarantee of the right to the city collided with the mercantile interests of the housing production, resulting in the low production of housing for the population from 0 to 3 SM. Despite the significant volume of housing resources, the conflicts did not cool down but increased, mainly focusing on demands related to housing production and land regularization. Protests are the peripheral expression of this non-attendance coupled with the inadequacy of public actions.
INTRODUÇÃO
A moradia se constitui, sem dúvida, como objeto central de reivindicação dos movimentos sociais e organizações que militam pela reforma urbana no Brasil. O Fórum Nacional de Reforma Urbana – articulação de entidades constituída a partir de 1987 no contexto da formulação de uma proposta popular de política urbana para a Assembleia Constituinte que promulgou a Constituição Brasileira de 1988 – tem na sua coordenação nacional, desde a sua criação, movimentos sociais e organizações cujo propósito é garantia do direito à moradia (p.ex. Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), União Nacional por Moradia Popular (União), Habitat para Humanidade Brasil, entre outros). A Resistência Urbana – Frente Nacional, outra articulação de movimentos populares pela “reforma urbana e direitos dos trabalhadores nas cidades”, também enuncia, no batismo de seus movimentos, o tema da moradia de forma evidente: Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, Movimento Urbano Sem Teto de São José dos Campos, Movimento Sem Teto da Bahia, Movimento Popular por Moradia, para citar alguns exemplos.
Não apenas nos nomes, mas na prática política, nos objetivos e nas ações empreendidas, a luta pelo direito à moradia aparece sempre em destaque nas manifestações públicas e protestos contra despejos ou nas articulações institucionais que incidem sobre legislações e defendem determinados projetos. Como resultado, se observa a incorporação de demandas em diferentes níveis e formatos, a despeito de se verificar, em outros casos, a ausência de reconhecimento, a negação de direitos ou a baixa prioridade com que tais reivindicações são tratadas. Vale ressaltar, aqui que, apesar de importantes, não são apenas as ações dos movimentos sociais que levam ao reconhecimento das necessidades habitacionais, especialmente das parcelas mais pobres da população.
A centralidade deste tema decorre da integração sistêmica da autoconstrução habitacional, associada à irregularidade e à informalidade, na constituição do capitalismo no Brasil. Para Oliveira (2006, p.68), “a industrialização [brasileira] estava se fazendo com base na autoconstrução como um modo de rebaixar o custo de reprodução da força de trabalho”. Os baixos salários, aliados ao acesso restrito ao mercado imobiliário e à uma disfunção sistêmica na formulação de políticas habitacionais direcionadas à população de baixa renda, fortaleceram a autoconstrução como única alternativa para grande parte da população. A autoconstrução, aceita implicitamente pelo Estado, tornou-se regra no que tange à questão habitacional, dentro do processo de urbanização e produção da moradia no Brasil.
Esta urbanização precária se evidenciou nas mobilizações sociais que passam a ocorrer em resposta à insatisfação da população em relação aos serviços públicos. Os espoliados urbanos, personagens inseridos no universo da segregação socioespacial, oscilam entre a tragédia cotidiana e a estratégia dos espaços de luta pelo reconhecimento dos direitos de cidadania.
A questão urbana e a questão da moradia não escapam de definições que reconhecem como diagnóstico a desigualdade social, a segregação e a injustiça urbanas e a negação de direitos humanos fundamentais. Em face dessas ideias são também incorporados no arcabouço institucional princípios, conteúdos ou ferramentas destinados a transformar aquela realidade. Função Social da Propriedade e da Cidade, a justa distribuição dos ônus e bônus do processo de urbanização, Zonas Especiais de Interesse Social, Planos de Habitação, Programas Habitacionais compõe a coleção de utilidades da gestão pública – federal, estadual ou municipal – para enfrentar os problemas reconhecidos.
A instituição desses princípios e ferramentas, a aprovação de legislações favoráveis a resolução do problema da moradia e a criação de órgãos públicos são compreendidos como avanços ou conquistas, por parte dos reivindicantes e dos reivindicados, na construção de uma cidade mais justa e na garantia do direito à moradia. Atualmente são diversos os exemplos nesse sentido: Estatuto da Cidade, Ministério das Cidades, Plano Nacional de Habitação e seus corolários estaduais e municipais, Programa Minha Casa Minha Vida, PAC Habitação, apenas para citar alguns exemplos.
A despeito desses resultados, protestos e ações coletivas reivindicando moradia e regularização fundiária seguem vigorosamente constituindo o cotidiano nas cidades. Mais do que apenas não ceder, se avolumam. Por quê?
Parte da resposta passa, evidentemente, pela compreensão de que o conflito é parte constituinte da realidade social e, em maior ou menor grau, estará presente independente dos esforços de apaziguamento, harmonização ou atendimento de reivindicações. Na forma urbana, predominante no capitalismo, o espaço social é produto e produtor de conflitos entre as múltiplas forças que disputam a sua produção e seu uso (HARVEY, 1982). É neste espaço, também, que o Estado interfere, reproduzindo formas de dominação e opressão que conformam uma geografia do poder (HARVEY, 2005).
Destarte, uma análise sobre estas relações e dos conflitos decorrentes destas auxilia na compreensão da complexidade que caracteriza o urbano. Além da oportunidade de se compreender os interesses em disputa, a análise dos conflitos possibilita a observação de formas de organização e mobilização social, dos atores políticos e sociais envolvidos, dos tipos de ação coletiva empreendidos e das demandas sociais daspopulações urbanas.
Sendo assim, a análise do espaço urbano através da complexidade dinâmica que compõe a conflitualidade nos fornece um outro retrato das cidades. Retrato este composto por diferentes demandas sociais que são substancialmente evocadas e reivindicadas no cotidiano citadino, demonstrando as diferentes “formas através das quais a cidade expõe sua desigualdade e, mais do que isso: elabora as formas de enfrentá-la” (VAINER & CAMARA, 2011).
Contudo, essa parte da resposta não deve ser suficiente para compreender a natureza do problema que se enfrenta. Os conflitos devem ser compreendidos e superados, mesmo que deles se sucedam outros. Portanto, é preciso formular e verificar uma hipótese que elucide a ascensão de novos movimentos sociais de luta por moradia e a manutenção de níveis elevados de protesto por moradia na última década.
A análise que se pretende empreender neste trabalho considera as informações sobre manifestações relacionadas à moradia no período compreendido entre o ano de 2011 e 2015 em Curitiba e nos municípios do aglomerado metropolitano. As características e temas dos protestos permitem formular a hipótese de que, apesar do volume significativo de recursos destinados à habitação em nível nacional, a forma de implantação ou execução dos programas, com destaque para o Minha Casa Minha Vida (MCMV), baseado no modelo empresarial/mercantil, não conseguiu atender de forma efetiva a população que concentra o déficit habitacional e os conflitos são a expressão deste não atendimento.
Para defender essa hipótese o artigo está estruturado em quatro partes: (i) uma rápida retrospectiva das políticas habitacionais desenvolvidas no Brasil, passando pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) até chegar ao desenho do MCMV e as avaliações do MCMV Entidades; (ii) Análise dos casos de protesto por moradia nos meios de comunicação da grande imprensa, no período 2011-2015. (iii) Classificação segundo o agente instigador; (iv) Breves considerações sobre os conflitos e sua relação com a política habitacional.
Acesse no link a seguir o artigo completo “Protestos por Moradia e Política de Habitação em Curitiba: lutas por regularização fundiária e produção habitacional”.
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