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A lógica do “arreglo” e do “arrego”: a organização dos vendedores ambulantes no Rio de Janeiro e em Buenos Aires

By 20/10/2011dezembro 18th, 2017Entrevistas

Por Breno Procópio, Assessor de Comunicação do Observatório das Metrópoles

Qual papel os ambulantes ocupam na dinâmica metropolitana do Rio de Janeiro em relação à troca de mercadorias, prestação de serviços e geração de renda para as classes populares? Como o governo municipal vê o mercado informal? O que representa a operação Choque de Ordem, lançada por Eduardo Paes para pôr fim à desordem urbana. Essas questões são discutidas por Lenin Pires, pesquisador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC), a partir da sua tese “Arreglar não é pedir arrego – uma etnografia de processos de administração de conflitos no âmbito da venda ambulante em Buenos Aires e Rio de Janeiro”. Em entrevista ao Observatório das Metrópoles, Lenin argumenta que enquanto a capital argentina garante apoio legal para os ambulantes, no Rio de Janeiro prevalece a lógica do arrego e do esculacho.

O interesse de Lenin Pires pela chamada economia popular surgiu na sua dissertação de mestrado, também orientada pelo professor Roberto Kant de Lima (NUFEP/UFF), na qual apresentou uma etnografia sobre o uso dos trens urbanos no Rio de Janeiro, enfatizando as atividades dos vendedores ambulantes. O estudo resultou no livro “Esculhamba, mas não esculacha”, lançado neste ano pela EdUFF. Segundo Lenin, o esculacho é um tratamento insultante que, em geral, é dispensado por agentes de controle para com os ambulantes. É a lógica da violência discriminatória que o trabalhador informal recebe no Rio de Janeiro, sem o reconhecimento de seus direitos a uma vida digna.

Acesse: Esculhamba, mas não esculacha – uma etnografia dos usos urbanos dos trens da Central do Brasil.

Em 2007, com a orientação de Kant de Lima e co-orientação da antropóloga argentina Sofia Tiscornia, o pesquisador foi recebido na Universidade de Buenos Aires (UBA) para realizar um estudo comparado sobre vendedores ambulantes na região metropolitana de Buenos Aires – constituída pela capital federal argentina e outras 23 cidades em seu entorno -, contrastando com os do Rio de Janeiro. Ao longo de seis meses, o antropólogo conviveu com múltiplos grupos, tanto em Buenos Aires, quanto em outras cidades que constituem a chamada Grande Buenos Aires. Acompanhou investigadores do Ministério Pública da Cidade de Buenos Aires em sua atividade cotidiana de controlar os atos de contravenção patrocinados por ambulantes ilegais; entrevistou policiais federais, funcionários dos governos portenhos e bonarenses, ambulantes nas ruas e nos trens, além de submergir fortemente no cotidiano daquelas cidades. No entanto, a maioria dos seus dados foram construídos no acompanhamento sistemático de dois grupos distintos: os agrupamentos de passageiros de trens, que reclamavam por melhorias no sistema de transporte, e vendedores ambulantes nos ambientes dos trens ao sul de Buenos Aires. Foi a partir dessa convivência etnográfica que ele percebeu a lógica do “arreglo”, ou negociação, que os trabalhadores informais argentinos precisam fazer com a Polícia Federal daquele país, que na época controlava a Cidade de Buenos Aires, conforme disposto na lei que institui o Código de Convivência Urbano daquela cidade autônoma.

Além disso, Lenin Pires mostra que em Buenos Aires e no Conurbano Bonarense, região onde vivem cerca de 13 milhões de pessoas, prevalece a negociação pelo espaço público; o trabalho ambulante, por exemplo, recebe garantias legais do Governo da Cidade, da Justiça e do Ministério Público da Cidade (instituições governamentais criadas para gerir a cidade de Buenos Aires), e até da Política Federal Argentina.
Nesta entrevista, o antropólogo e professor da UFF aponta as diferenças de tratamento destinadas aos trabalhadores ambulantes: o “arreglo” por um lado, e o “arrego” do outro (com sua correspondente, o esculacho), evidenciam duas realidades sociais distintas.

Entrevista

Lenin Pires, doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, pesquisador associado do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC) e bolsista de pós-doutorado pela FAPERJ, vinculado ao próprio InEAC. Tem experiência na área, com ênfase em Administração de Conflitos, pesquisando os temas: direito, mercado informal, violência e desigualdade.

Qual o objeto de estudo da tese de doutorado?

Trata-se de uma abordagem etnográfica que busca estabelecer um contraste entre minhas observações, vivências e reflexões sobre a venda ambulante em duas sociedades distintas. O problema central da tese é pensar de que maneira os conflitos inerentes ao exercício da venda ambulante podem ser administrados, em Buenos Aires e no Rio de Janeiro. Neste exercício, me interessou indagar sobre as representações e sentidos que podem ter os direitos civis, em cada uma das sociedades, em função da maneira como se articulam as práticas dos comerciantes e os agentes vinculados às instituições de controle do espaço público. Para falar sobre as distinções que visualizei com minhas pesquisas fiz utilização duas categorias nativas, inerentes às duas sociedades: arreglo, em Buenos Aires, e arrego, no Rio.

E o que significa o “arreglo” no caso de Buenos Aires?

Durante a minha estadia em Buenos Aires, eu convivi com diferentes segmentos sociais. O que percebi é que todo mundo usava a palavra “arreglo”. Pode significar “combinação” – combinar um encontro, por exemplo – ou “negociação” por debaixo do pano. Também pode significar conserto de uma peça de roupa. Ou seja, a palavra é polissêmica e contém vários sentidos. Na minha pesquisa de campo verifiquei que “arreglo” era uma categoria também recorrente no universo compartilhado por vendedores ambulantes, policiais, funcionários do governo da cidade autônoma de Buenos Aires, entre outros. Aí “arreglo” parecia imbricar vários desses sentidos, pois se “consertava” alguma “imperfeição” da legislação que gerava exclusão e, ao fazê-lo, se combinavam pagamentos, vantagens e garantias, tudo de forma mais ou menos clandestina.  Porque no mercado informal dos trens e da rua “arreglar con la polícia” era uma forma de garantir acesso a pontos de vendas que não eram possíveis, já que a lei que instituiu os pontos de venda ambulante na cidade, do Código de Convivência Urbana, destinava apenas uma quantidade limitada de pontos.

Lenin Pires

Quer dizer que o vendedor ambulante em Buenos Aires tem direito instituído por lei?

Na cidade do Rio de Janeiro a lei 1876/1992 também reconhece a atividade do vendedor ambulante e as normativas internas da Prefeitura do Rio igualmente estabelece um limite de, aproximadamente, 19.000 pontos em toda a cidade. A distinção fundamental é que em Buenos Aires existe uma lei que institui um Código de Convivência Urbana, que é uma lei da cidade de Buenos Aires, que define uma série de normas no tocante ao modo civilizado de viver de toda a população. Trata-se da Lei 1.472, formalmente conhecido como Código Contravencional da Cidade Autônoma de Buenos Aires. E é dentro dele que se prevê a existência da atividade do comércio ambulante. Esse código foi instituído na década de 90 e tem relação com a transformação de Buenos Aires em uma cidade autônoma. Essa autonomia significou, entre outras coisas, a retirada do monopólio da Polícia de editar as leis de conduta e regras de convivência. Antes disso era a Polícia quem definia a forma de convivência no espaço urbano, como frequentação das praças, proibição das pessoas de dormir em lugares públicos, etc. Sobre esse assunto, os pesquisadores do Equipo de Antropologia Política y Jurídica, coordenada pela professora Sofia Tiscórnia, publicaram inúmeros trabalhos. O que acontecia na década de 80 em Buenos Aires, parece acontecer cada vez mais conosco no Rio, com o advento da Secretaria de Ordem Pública. Essa Secretaria não é o legislativo, que se pressupõe ser a representação popular. Ela não pode estabelecer leis para uso do espaço público, não pode definir o que pode e o que não pode ser feito na rua. Tampouco ela é a Polícia ou a Justiça, para utilizar a força de maneira progressiva e legítima ou para punir pessoas por supostas faltas. Isso acontece porque temos uma cultura repressiva, hierarquizante, e que se coaduna com formas particularistas de defesa do interesse privado em “limpar” o espaço urbano; parece-se ser esta a essência do chamado Choque de Ordem que vem sendo imposto sobre a população do Rio sem discussão da essência do caráter público dessas investidas.

Em Buenos Aires é distinto. A capital autônoma é composta pelo Governo da Cidade, pela Justiça da Cidade e pelo Ministério Público com função de fiscalizar o cumprimento dessas regras. Além disso, indivíduos nas sociedades portenha e bonarense costumam se organizar e se mobilizar. Por conta disso, a venda ambulante é legal em Buenos Aires. O Código estabelece tantos pontos de venda na rua tal, em tal bairro etc; os trabalhadores vão lá, pagam uma taxa e podem se estabelecer. Isso garante direitos, significando fundamentalmente que o vendedor ambulante, uma vez legalizado, não pode sofrer abuso e nem coação da polícia. Agora veja bem, a concessão é legal e, igualmente, considerada precária; mas a atividade não. O que isso significa? Que a pessoa pode ser removida de um determinado ponto em função do interesse público, mas isso será objeto de negociação e de remanejamento, de acordo coma previsão de conversas a serem estabelecidas entre o poder público e as representações classistas desses ambulantes. Em Buenos Aires, na época de minha pesquisa, havia dois sindicatos que representavam esses trabalhadores. Mas a lei, é claro, gerou exclusão, porque a demanda por aquele espaço público é muito maior. Daí há uma quantidade significativa de ambulantes que precisam “arreglar”, negociar com a Polícia para se estabelecer em pontos alternativos de venda. No entanto, essa negociação via de regra assume como referência o estabelecido pela lei e não a vontade arbitrária do agente.

E se o ambulante não tiver dinheiro para pagar, para fazer o “arreglo”?

Se o sujeito não tiver recursos para negociar, ele terá que sair do ponto de venda, como estabelece a lei Ou seja, para fazer valer sua autoridade o policial, a quem cabe em útlima instância fazer valer o disposto pela lei e exigido pela fiscalização da Justiça e do Ministério Público, não precisa recorrer a particularização do uso da violência física, o que sempre vem acompanhada de uma carga subjetiva muito forte. Em outras palavras, não tem essa coisa de esculacho em Buenos Aires.

E quais são as diferenças entre o mercado informal de Buenos Aires e o do Rio de Janeiro?

É a partir do esculacho que construí a comparação contrastiva entre Buenos Aires e Rio de Janeiro. Porque aqui predomina a lógica do arrego. No arrego a suposta autoridade vai lá e impõe a taxa que ele quer, define numa relação pessoal a regra que vai existir na rua. E se o ambulante não quiser pode levar a pior, pois têm outro ambulante que vai querer, que vai se sujeitar. Em alguns contextos a violência física pode chegar a situações extremas. A gente sabe que isso acontece. E esse esculacho se dá pela apropriação particularizada, por parte de alguns agentes, da autoridade da Guarda Municipal, da Polícia Militar, entre outras agências que disputam o controle do espaço público na região metropolitana do Rio. Tudo isso, e o que é muito significativo, sem acompanhamento estrito de instâncias judiciárias.

Na sua opinião, por que não existe essa realidade em Buenos Aires? O que a sociedade conseguiu fazer para acabar com a lógica da violência?

É uma conquista da sociedade mesmo. A sociedade portenha decidiu que, por tudo que a Polícia Federal argentina simbolizava no tocante à ordem pública e o seu papel de apoio à ditadura militar, ela não poderia ter o poder que tinha. Foi a partir daí que a sociedade construiu essa idéia de ter um Código de Convivência para a cidade de Buenos Aires, que é por assim dizer uma Cidade-Estado. Na América do Sul, salvo engano, e a única a ter um Governo, uma Justiça e um Ministério Públicoda Cidade, instâncias formalmente responsáveis pela administração e cumprimento das leis. E a sociedade argentina também se representa como sendo mais igualitária que a nossa, com organismos sociais – conselhos, associações, etc – que atuaram fortemente na elaboração de leis para o uso comum do espaço público.

Mas sob essa ótica as diferenças de tratamento para o mercado informal também estão relacionadas à questão social e ao funcionamento do sistema do Estado?

O professor Michel Misse cunhou um conceito interessante que é o de mercadoria política. O conceito significa mais ou menos o seguinte: quando um agente do Estado particulariza a ação do Estado na sua pessoa ele passa a ter a possibilidade de colocar a venda o fazer ou o não fazer daquilo que é responsabilidade do Estado, para a garantia da ordem. É o que vemos, por exemplo, nas Polícias, quando determinados agentes utilizam da violência para punir, marcar ou mesmo eliminar pessoas; acaba que essa instituição, em função dessas formas de particularização do poder do Estado, acaba por se constituir num estabelecimento no qual se constrói e se veicula mercadorias políticas, porque se o sujeito não pagar, pode apanhar, etc. No mercado ambulante, como é sabido, isso acontece com frequência.

Há uma falta de clareza sobre como proceder com o vendedor ambulante no Brasil?

Sim. Ninguém sabe o que fazer em relação ao chamado mercado informal. Por exemplo, na Rua Uruguaiana, os vendedores que estão ali são ou não são legais? Elas não são totalmente legais para o município, apesar de estarem todos os dias ali, de pagarem para estar ali. São sempre alvo da suspeição e da ação arbitrária de diferentes agências. Mas as pessoas pagam regularmente taxas para estar ali. Elas não possuem nenhum direito? Como elas pagam? E para quem elas pagam? Muitas vezes, na Prefeitura do Rio isso é uma incógnita.

Você usa o termo “precariedade” na sua pesquisa. O que isso quer dizer para o mercado informal?

No Brasil o governo costuma dizer que as pessoas que trabalham no espaço público, quando obtém uma autorização, estão em situação precária. Porque o espaço pertence à União e quando o Estado resolver, “em prol do interesse público” fazer alguma coisa, ele vai fazer. O problema é que essas pessoas são consideradas precárias, para além da concessão que possuem. Como tal, elas estão fora do padrão, ou seja, não são sujeitos de direito. Minha pergunta é: o que o Estado pode fazer para tirá-las da situação de precariedade? Não há uma resposta pra isso. Falta uma política cidadã – um conceito permanentemente em disputa – para pensar como organizar esse mercado, para que os vendedores, ganhando seus recursos mediante o trabalho, possam se estabelecer, ter mobilidade social e sejam tratados com dignidade e igualdade. Os vendedores ambulantes estão espalhados nos variados espaços da região metropolitana, sendo hoje responsáveis não só por uma ampla circulação de mercadorias e serviços, mas também por serem parte de segmentos sócio-econômicos responsáveis pela expansão de um “direito à cidade” para além das áreas cobiçadas da Cidade do Rio de Janeiro e de algumas outras na região metropolitana. Afinal, eles estão se estabelecendo em lugares e contribuindo para a organização política, para a urbanização cada vez maior de amplas áreas da região metropolitana. Esse território precisa abrigá-los com decência, respeitar seus direitos e inseri-los numa perspectiva cidadã.

Última modificação em 20-10-2011